Apontamentos gerais sobre agronegócio e sindemia no Brasil
Neste artigo, apresentamos uma caracterização sintética dos impactos decorrentes dos cultivos geneticamente modificados e agrotóxicos associados, bem como de suas relações com os retrocessos que vêm sendo efetivados nos arranjos institucionais correspondentes.
Introdução
Nas discussões em curso acerca da evolução do agronegócio no Brasil, seus aspectos positivos são geralmente colocados em primeiro plano. Apoiadas numa visão de curto prazo e alimentadas pelo boom da produção de commodities (Sauer & Leite, 2012), essas análises concentram-se nas supostas vantagens econômicas comparativas da inserção do País na economia globalizada por meio de uma economia primário-exportadora (CNA, 2018; Cruvinel, 2009; Cadernos FGV Projetos, 2019; MAPA, 2019).
Entretanto essas crenças vêm sendo contestadas por um número crescente de intérpretes que insistem na necessidade de uma avaliação mais rigorosa das múltiplas externalidades negativas geradas pela adoção desse modelo produtivo (Delgado, 2012; Domingues et al., 2014; Delgado & Bergamasco, 2017; Pompeia, 2020). Como exemplos, podemos citar a contaminação das águas (Alonso et al., 2018), a erosão biocultural (Toledo & Barrera-Bassols, 2015), a intensificação dos conflitos pela posse de áreas agricultáveis (Sassen, 2016), o aumento da concentração fundiária (Santos & Glass, 2018) e dos desmatamentos (Domingues et al., 2014), além do comprometimento da segurança alimentar de amplos setores marginalizados da população e mesmo da soberania nacional (CONSEA, 2014; Santos & Glass, 2018). Esta abordagem crítica associa também as ameaças à saúde individual e coletiva ao comprometimento acelerado dos sistemas de suporte da vida no planeta (Fernandes et al., 2013; Carneiro et al., 2015; UNCTAD, 2013; IAASTD, 2016; Hallmann et al., 2017; Bombardi, 2017; Sánchez-Bayo & Wyckhuys, 2019; Acción por la Biodiversidad, 2020; WEF, 2020a; 2020b).
Mais recentemente, as complexas relações envolvendo a dinâmica de sistemas agroalimentares, as mudanças climáticas e as políticas de promoção da saúde vêm adquirindo uma projeção mundial, a exemplo da publicação do relatório da Comissão Lancet (Swinburn et al., 2019). Nesse documento, o cenário atual é caracterizado em termos de uma sindemia global de produção e consumo de alimentos envenenados, obesidade, subnutrição e intensificação de distúrbios climáticos. No tratamento da temática relacionada aos critérios de racionalidade pressupostos nos sistemas dominantes de produção agropecuária, emergem novas abordagens que desvelam o perfil interdependente das dimensões socioeconômica, sociocultural, sociopolítica e socioecológica. As evidências disponíveis tendem a confirmar que o modelo dominante de extrativismo agrário (McKay, 2017), inspirado na tradição das plantations (McKittrick, 2013), apoia-se em mecanismos que ameaçam o presente e o futuro da humanidade (Zanoni et al., 2011; UNEP, 2016; Fernandes, 2019; ACB, 2019; UNEP & ILRI, 2020). Além de pressupor uma utilização intensiva de agrotóxicos e transgênicos, esse modelo é visto como um dos fatores determinantes da tendência de aquecimento global (UNEP, 2016) e da irrupção de novas zoonoses e pandemias – a exemplo da COVID-19 (UNEP, 2016; UNEP & ILRI, 2020; WEF, 2020a; 2020b; Fiebrig et al., 2020).
A consolidação desse modelo produtivo atende a interesses específicos de grupos e corporações em detrimento do atendimento de necessidades básicas de povos e nações submetidos às coações impostas pela globalização neoliberal (Shiva, 2003; Santos & Glass, 2018; ACB, 2019; Acción por la Biodiversidad, 2020; Shiva et al., 2020). Trata-se, de uma estratégia renovada de ingerência neocolonialista que substitui as ocupações militares convencionais (Mattis & Hoffman, 2005; Korybko, 2018) por novas formas de controle de dinâmicas territorializadas de desenvolvimento rural excludente. No caso do Brasil, desde a época da destituição forçada da então presidente Dilma Rousseff, vêm se intensificando as evidências de ecocídio que acompanham o avanço acelerado dessa opção de dinamização do meio rural (FIAN et al., 2018). A edição do “Dia do fogo” em 2019, quando grileiros realizaram uma ação orquestrada para incendiar diversas áreas de floresta na região amazônica, exprime de forma exemplar uma tendência destrutiva que está se disseminando não só pelo território nacional como por outros países latino-americanos (Acción por la Biodiversidad, 2020; Zanoni et al., 2011; Castilho, 2012; Carneiro et al., 2015; Bombardi, 2017; Barcelos,2018; Souza & Folgado, 2019).
Neste artigo, apresentamos uma caracterização sintética dos impactos decorrentes dos cultivos geneticamente modificados e agrotóxicos associados (Ferment et al., 2015; Carneiro et al., 2015; Almeida et al., 2017; Bombardi, 2017), bem como de suas relações com os retrocessos que vêm sendo efetivados nos arranjos institucionais correspondentes (Folgado, 2017; Souza & Folgado, 2019; Acción por la Biodiversidad, 2020). Na segunda parte, abordamos as perspectivas de surgimento de novas crises zoonóticas de corte pandêmico, relacionadas ao agravamento da crise global (UNEP, 2016). Na terceira, colocamos em discussão a necessidade de avançarmos na formulação de políticas de suporte a novos métodos de produção agropecuária inspirados no Princípio de Precaução (Myhr & Traavick, 2002; Ferment et al., 2015). Argumentamos que deveriam ser priorizadas novas modalidades de apropriação e uso dos recursos naturais comensuradas à promoção de resiliência agroecossistêmica – indo além das medidas de corte curativo.
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