Agrotóxicos. Defensivos agrícolas ou veneno?
Em tempo de inseguranças alimentares entre os brasileiros, há um tema persistente – e carregado de controvérsias – na pauta da discussão de famílias, profissionais de saúde e autoridades governamentais envolvidas na liberação de produtos para consumo humano: afinal, é possível o uso seguro de agrotóxicos?
Chamados de “defensivos agrícolas” por setores interessados na aplicação e por aqueles que os veem como um “mal necessário” para dar conta da demanda de alimentos – e, pura e simplesmente, de “veneno”, pela parcela de pesquisadores e ativistas em prol da vida e meio ambiente, indignados pelo emprego generalizado, incorreto ou exagerado –, “os pesticidas são potencialmente tóxicos para organismos, incluindo o dos seres humanos, e precisam ser usados com segurança e descartados adequadamente”, determina a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Foram adotados em maior escala desde a década de 1950, no decorrer da “revolução verde” – quando o processo tradicional de produção agrícola sofreu drásticas mudanças, objetivando aumentar a oferta aos mercados interno e externo. Seu abuso pode interessar especialmente aos brasileiros, pois vivem no País que, desde 2009, desponta no ranking como “o maior consumidor de agrotóxicos no mundo”, conforme o Ministério do Meio Ambiente.
Tais substâncias têm a função de alterar a composição da flora e da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados “nocivos”. Chegam às pessoas pelo ar, água ou alimentos, por meio de resíduos presentes em uma cadeia que envolve produção, estocagem e transporte, entre outros meios.
Hormônios
Como outros desreguladores endócrinos (DEs) – agentes produzidos fora do organismo, capazes de interferir na síntese, secreção, transporte, metabolismo, ação ou eliminação de um ou mais hormônios –, os agrotóxicos podem prejudicar a saúde, segundo Elaine Maria Frade Costa, chefe da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento da Divisão de Endocrinologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Os fatores mais relevantes são tempo e época de exposição, além da quantidade de substâncias misturadas, utilizadas contra as pestes na agricultura.
Os DEs agregam grande variedade de classes químicas e não apenas os agrotóxicos. Eles chegam até o homem por meio de nutrientes contaminados por substâncias como o bisfenol A e os ftalatos, presentes nos plásticos policarbonatos, utilizados para acondicionar alimentos; revestimentos internos de latas, cosméticos, sabões, PVC e resina dentária etc. A migração dos DEs ao homem se dá especialmente quando os produtos são expostos a altas temperaturas.
As fases do desenvolvimento mais susceptíveis aos efeitos dos DEs correspondem às de maior plasticidade celular (e, portanto, vulnerabilidade a interferentes), como vida uterina, infância e adolescência. “Estudos em animais demonstram que os agrotóxicos resultaram em diversas consequências como alterações do desenvolvimento sexual de machos e fêmeas, ovários policísticos, infertilidade, câncer de próstata, aumento de tecido adiposo e gordura visceral, dentre outras”, explica Elaine.
Trabalhos de correlação com humanos mostram maior efeito de causalidade dos DEs em doenças como obesidade, infertilidade, síndrome dos ovários policísticos e doenças da tireoide. “Pelo modo de ação, através de receptores hormonais, pequenas doses podem ser mais prejudiciais do que altas”, diz a endocrinologista. Ou seja, os DEs não respeitam a lógica de quanto maior a quantidade de certa substância, mais tóxico o produto.
Restrições não respeitadas
Durante audiência pública relativa ao tema – uma das iniciativas promovidas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo para entender o crescimento das ações vinculadas aos agrotóxicos –, a vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), pediatra Patrícia Rondó, classificou como “grave problema de saúde pública” as intoxicações e doenças provocadas pela exposição aos agrotóxicos, por causarem alterações neurocomportamentais, dermatoses, alergias, problemas respiratórios e depressão imunológica, entre outras.
No Brasil, as regras são claras: o registro de agrotóxicos é proibido, entre outras circunstâncias, a substâncias que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, e/ou que provoquem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor, “de acordo com resultados atualizados de experiências da comunidade científica”.
Porém, estudos apontam a alta presença de agrotóxicos na dieta dos brasileiros, inclusive os mais tóxicos. Em levantamento feito em 2011, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), identificou a presença de agrotóxicos em 63% das análises de amostras vindas de 26 Estados brasileiros – sendo que 28% apresentaram ingredientes ativos não autorizados para determinado cultivo e/ou ultrapassaram os Limites Máximos de Resíduos (LMRs), ou seja, os níveis “aceitáveis” ao organismo.
Outro estudo, promovido na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, revelou o risco de exposição crônica de agrotóxicos em cultivos como arroz, feijão, soja e frutas, identificando 68 compostos que excediam o valor da ingestão diária aceitável, também de acordo com os limites determinados pela Anvisa.
Apenas para ilustrar, a pesquisadora Jacqueline Mary Gerage identificou que dentre os 283 agrotóxicos estudados, o brometo de metila (BM) – pertencente à classe dos inseticidas, formicidas e fungicidas, e listado como extremamente tóxico – foi a substância com maior estimativa de frequência, segundo informa a Agência USP.
Tais dados foram contestados, posteriormente, por alguns especialistas atuantes no chamado “agronegócio consciente”. É o caso do engenheiro agrônomo José Otávio Menten, professor da Esalq e presidente do Conselho Científico para Agricultura Sustentável (CCAS) que, no artigo Agroquímicos e Alimentos Saudáveis, informou: relatório de 2016 do próprio PARA usou metodologia diferente de anos anteriores.
O novo método “baseou-se na avaliação e comunicação do risco dietético em conformidade com os padrões internacionais”, concluindo que 99% das mais de 12 mil amostras de alimentos de amplo consumo, coletadas entre 2013 e 2015, “estavam livres de resíduos que representam risco agudo à saúde dos consumidores”.
Contudo, o amplo dossiê Um Alerta Sobre os Impactos dos Agrotóxicos na Saúde, publicado em 2012 e atualizado em 2015, pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), faz um contraponto. Segundo o documento, mesmo que alguns ingredientes ativos (IAs), de acordo com seus efeitos agudos, possam ser classificados como pouco ou medianamente tóxicos, “não se podem perder de vista os efeitos crônicos possíveis de ocorrer meses, anos ou até décadas após a exposição”.
Monitoramento
Monitorar, isto é, avançar na vigilância, adotando ações proativas, corresponde a uma das formas de prevenção ao excesso (ou utilização indevida) de agrotóxicos. Isso é especialmente importante frente ao aumento de consultas apresentadas à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e intermediadas pelo Ministério Público Estadual.
“Nos últimos dois anos, cerca de 60 demandas relativas ao tema, provenientes de municípios pequenos entre os 645 do Estado, chegaram a nós. Trata-se de um crescimento expressivo de questionamentos no período”, observa Isabel de Lelis, diretora técnica da divisão de produtos relacionados à saúde do Centro de Vigilância Sanitária de São Paulo (CVS-SP), órgão subordinado à Coordenadoria de Controle de Doenças (CCD-SP).
Entre as ações efetivadas pelo CVS-SP figuram a avaliação e o controle da qualidade dos alimentos e da água para consumo humano, levados à frente por programas específicos. A testagem das amostras é centralizada no Instituto Adolfo Lutz.
Cogitam-se duas hipóteses para explicar o aumento dos questionamentos do Ministério Público paulista em relação aos agrotóxicos, desde 2015. A primeira: trata-se de consequência da Portaria nº 204, publicada, em fevereiro de 2016, pelo Ministério da Saúde, que obriga a notificação de casos suspeitos de intoxicação por substâncias químicas, dentre as quais, os agrotóxicos. Vale citar ainda que pode ser resultado do dossiê da Abrasco que, em mais de 600 páginas, esboça uma visão bastante crítica a respeito do uso indiscriminado dessas substâncias (confira endereço eletrônico para download no final desta matéria).
As incertezas continuam
Para se ter uma dimensão dos números trazidos pelo compêndio da Abrasco, é suficiente citar que, em 2011, foram plantados no Brasil 71 milhões de hectares em lavouras como as de soja, milho, café e frutas. Nelas, foram pulverizados cerca de 853 milhões de litros de agrotóxicos, representando uma média de exposição ambiental/ocupacional/alimentar de 4,5 litros de agrotóxicos por habitante.
Porém, de acordo com os autores do dossiê, permanecem muitas incertezas científicas na definição do que sejam os limites considerados “aceitáveis” ao organismo. Como em toda discussão que envolve polêmicas, opiniões não correspondem a consenso. Multinacional americana do setor de agricultura e biotecnologia, que domina mais da metade do mercado mundial de herbicidas, e detentora de agrotóxico cujo princípio ativo é o glifosato, defende “não haver evidências científicas que associe seu uso com casos de câncer”. Contraria assim notícias veiculadas no ano passado nos EUA e União Europeia.
É preciso levar em conta, ainda, que a produção – e, em consequência, o consumo – é facilitada por benefícios tributários concedidos aos agrotóxicos, dos quais não é cobrado o imposto sobre os produtos industrializados (IPI) e em relação aos quais vigora a isenção de 60% de incidência do imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Há uma tendência, atualmente, de defender que tais produtos são importantes para assegurar a baixa nos preços dos alimentos, uma vez que não há outra opção eficaz e disponível em larga escala para o setor. Alega-se, ainda, que alimentos livres de agrotóxicos são mais caros e, por isso, consumidos por uma pequena elite.
Ao abordar o tema, recentemente, Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e uma das autoras do dossiê da Abrasco, explicou que para efetivar, de forma “consequente e responsável”, o paradigma do “uso seguro” dos agrotóxicos, seria necessário um vultoso e complexo programa.
Entre outros pontos, tal programa careceria de formação de trabalhadores para atuar com agrotóxicos; assistência técnica; financiamento das medidas e equipamentos de proteção; estrutura para o monitoramento, vigilância e assistência pelos órgãos públicos. “Quanto tempo levaria isso? Os recursos estariam garantidos e disponibilizados? Nesse período, quantas vidas seriam ceifadas?” argumentou.
Definições
A legislação brasileira (Lei nº 7.802/89, regulamentada por decreto de 2002) define agrotóxicos como “os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos”.
Já a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera pesticidas como “compostos químicos usados para matar pragas, incluindo insetos, roedores, fungos e plantas indesejadas (ervas daninhas)”. Em Saúde Pública, adquirem a função de matar vetores de doenças, como mosquitos, e na agricultura, para matar pragas que danificam as culturas.
Dilemas Bioéticos
Como qualquer substância vista, por parte das pessoas, como “mal necessário”, a questão dos agrotóxicos cabe em discussões no campo da Bioética, nas quais se utilizam diversos conceitos.
Para dar suporte ao debate, é possível usar, por exemplo, a interpretação ética quanto à Responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas: “com aquilo que fazemos aqui e agora e, quase sempre, com um olhar sobre nós mesmos, influenciamos massivamente a vida de milhões em outros lugares e no futuro, que não tiveram voz aqui e agora”.
Em outras palavras, Responsabilidade é essencial, pois cada ação de hoje pode levar a grandes malefícios não só a esta, como a gerações futuras, e ao fim do planeta. “Sobre o mal não temos incertezas quando o experimentamos; sobre o bem temos certeza, na maioria das vezes, quando dele nos desviamos”, ensina Jonas.
Em seu dossiê, a Abrasco cita o Princípio de Precaução, que orienta: medidas precaucionárias devem ser adotadas quando não é possível estabelecer plenamente as provas científicas de causa e efeito. “Não cabe às agências regulatórias provar que um agrotóxico é tóxico. Deveria caber às empresas demonstrar com mesmo rigor que não são nocivos para a saúde humana e/ou para o meio ambiente”.
Suicídios no Rio Grande do Sul?
A associação entre o uso de pesticidas e aumento do risco de suicídio é questão controversa, mencionada em vários estudos científicos mundiais.
No Brasil, as regiões agrícolas do Rio Grande do Sul figuram entre as que captam mais a atenção dos pesquisadores. Por exemplo, artigo envolvendo microrregiões agrícolas daquele Estado – publicado em 2014, na revista científica estrangeira NeuroToxicology, por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas –, reforçou a hipótese de relação entre o uso de pesticidas e suicídio, tanto em relação à exposição quanto à ingestão dessas substâncias. Porém, concluiu que “limitações do projeto tornam necessários novos e mais aprofundados estudos”.
Conforme Hamer Palhares, psiquiatra da rede de apoio ao Cremesp da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), as pesquisas científicas estão apenas ”arranhando” a superfície desse tema, e apontando à “possibilidade de que a exposição, pelo pessoal que trabalha na aplicação de alguns desses produtos, especialmente na falta ou inobservância do uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), possa ter consequências neurotóxicas, eventualmente culminando em risco elevado de tentativas de suicídio e suicídio consumado”. Porém, segundo ele, até o momento não há indícios de que esse tipo de efeito possa acontecer com o consumidor final.
A endocrinologista Elaine Costa, do HCFMUSP, também é precavida quanto ao assunto, ao dizer que a ação neurotóxica dos pesticidas, em especial, organoclorados, é relatada em literatura científica, vinculando-os a doenças neurodegenerativas, como Parkinson e depressão. “No entanto, a comprovação de causalidade ainda não está estabelecida em humanos”.
O download do dossiê da Abrasco pode ser feito no endereço: ver aquí (pdf).
Por Concília Ortona - Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp. Especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)
Fonte: CREMESP