Agronegócio, dependência e morte?
Em 7 de setembro de 2020, dia que se comemorou a Independência do Brasil, no contexto de destruição crescente da Amazônia, Pantanal, Cerrado, Pampa, Mata Atlântica e Caatinga, com ataque aos povos indígenas, campesinos e ambientalistas, nada mais ilustrativo que mostrar os preços dos alimentos. O agronegócio e a política econômica impulsionam para cima os preços de feijão e do arroz. Alguns tipos de feijão ultrapassam 20 reais o Kg, enquanto o arroz chega a mais de 5 reais o Kg. Afinal, o agronegócio produz alimentos?
Na realidade, o agronegócio é fomentado para a exportação de grãos e demais commodities. Como agravante, o valor do dólar nas alturas acaba empurrando para cima o preço de alimentos. Sendo melhor pagos no exterior, e com áreas em redução, terminam sofrendo escassez no País, o que os torna ainda mais caros, com prejuízos evidentes à população mais pobre, que luta para se sustentar com saúde frente à pandemia. E com a progressiva desindustrialização do país, ficamos cada vez mais reféns da exportação de matérias primas, como no caso os grãos, em especial a soja. Um círculo vicioso é estimulado por políticas governamentais que beneficiam corporações e setores especulativos do mercado de alimentos. A bancada ruralista aproveita para receber apoios do setor empresarial ligado à venda de insumos.
Quanto à oferta de grãos, em dez anos, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimentos (CONAB), tivemos enorme redução na área plantada de alimentos para os seres humanos, como no caso de arroz, feijão, mandioca e trigo. Tal situação do Brasil é semelhante à de outros países do Cone Sul exportador, fornecedores de commodities.
Nas áreas de plantios de arroz e feijão (alimento dos brasileiros), entre as safras de 10/11 e 19/20, reduziu-se, respectivamente, de 2,733 a 1,666 milhões de hectares (- 39%), e de 3,592 a 2,920 milhões de hectares (-19%) (Figura 2). A situação do feijão, produzido pela agricultura familiar, mas que sofre o êxodo rural, pela falta de apoio aos pequenos no campo, exige que em alguns anos o Brasil tenha que importar o grão da Argentina ou da China.
Enquanto isso, a área dos gigantescos plantios de soja, fundamentalmente para exportação e alimentação de animais confinados, saltou de 24,078 para 36,949 milhões de hectares (+53%). O milho, também usado principalmente para alimentação animal, principalmente em confinamentos industriais, cresceu de 12,683 para 18,505 milhões de hectares (+46%). Outro alimento para seres humanos, o trigo segue praticamente com a mesma área plantada há 10 anos, alcançando atualmente 2,330 milhões de hectares, exigindo importação do produto, apesar do crescimento da população brasileira em 11,6%, entre 2010 e 2020.
Curiosamente, a soja e o milho correspondem, quase totalmente, a sementes transgênicas que pertencem (98%), a gigantescos oligopólios transnacionais estrangeiros, que vêm transformando ecossistemas diversos em paisagens uniformes, com crescente uso de insumos e contaminação por agroquímicos (Figura 3).
O Brasil vem sendo o país com maior consumo absoluto de agrotóxicos desde 2008, impulsionado pelas culturas de exportação soja, mesmo com a promessa de que os transgênicos iriam diminuir o uso destes produtos. A contaminação dos agrotóxicos dá-se nos ecossistemas, nos agricultores e prejudica cronicamente os consumidores.
O Mercado de agrotóxicos no Brasil corresponde a cerca de 10 bilhões de dólares, ou seja, alcança mais de 50 bilhões de reais, gozando de isenções ficais.
Segundo a Organização Mundial da Saúde o uso de pesticidas causa cerca de 70.000 mortes por envenenamento a cada ano e pelo menos sete milhões de casos de doenças não fatais agudas e de longo prazo, conforme declarado na avaliação. No Brasil, segundo o Relatório Nacional de vigilância em Saúde de Populações Expostas aos Agrotóxicos, do Ministério da Saúde (2018), ocorreram notificações de intoxicação humana por agrotóxicos em número de 84.206 casos, entre 2007 e 2015, segundo o Ministério da Saúde, vindo a óbito oficialmente 2.804 pessoas devido a contaminações diversas. Cabe lembrar que existe estimativas de subnotificações, sendo que para carda registro considera-se que outros 50 casos não sejam notificados. Os agrotóxicos podem causar uma série de doenças, como o câncer, dependendo do produto utilizado, tempo de exposição e quantidade absorvida pelo organismo. Atualmente, também a situação da contaminação de colmeias está trazendo a morte de centenas de milhões destes organismos no Brasil e no mundo.
A agricultura moderna e industrial, tratada por setores da grande mídia como a “locomotiva da economia”, vem gerando grande volume de problemas ambientais, além do uso crescente de agrotóxicos, verifica-se a perda da biodiversidade e do próprio estrangulamento da diversidade de atividades geradoras de renda, com concentração crescente de terras na mão de grandes empresas nacionais ou transnacionais. A condição de nos mantermos reféns da exportação de grãos e de commodities em algum momento vai ter problemas decorrentes da dependência do mercado externo e das flutuações desses produtos no mercado. Como consequência disso, aproximadamente 75% da diversidade agrícola mundial já foram perdidas no último século (FAO, 2013). A lógica da priorização da agricultura empresarial ou industrial e a grande escala da produção agrícola deixa os agricultores com poucas alternativas para se desvencilharem do modelo de dependência atrelado às monoculturas de exportação.
A pesada produção mecanizada, quimificada (dependente do petróleo) e insustentável de soja e de outros grãos, que promove monoculturas e homogeneização desde o Pampa até a Amazônia, faz sucumbir nossa biodiversidade. Paralelamente aos grãos de exportação, muitas dezenas de milhões de cabeças gado estão em áreas originalmente florestais e de savanas (cerrados), sem falar nos milhões de hectares de lavouras de madeira para celulose. Compromete-se a funcionalidade ecossistêmica necessária em nossos biomas, que necessitam da diversidade de flora e fauna, e prejudica-se a funcionalidade da cultura alimentar e da ecologia humana. A produção de alimentos é também uma função social, assegurada pela Constituição Federal. No Art. 225 da Constituição é assegurado o direito ao meio ambiente equilibrado, com proteção à diversidade biológica e aos processos ecológicos.
Urgentemente, temos que resgatar plantas do Brasil, arraigadas à agricultura familiar e tradicional, como no caso a mandioca, uma planta eminentemente do Brasil e de países vizinhos, desenvolvida ao longo de milhares de anos por culturas de povos indígenas, e que não sofre dependência de insumos. Entretanto, em nosso país tem uma área reduzida para 1,6 milhões de hectares. A área de mandioca no Brasil é quatro vezes menor do que a área de plantios da cultura na Nigéria, maior produtora de uma planta emprestada da América do Sul.
Triste situação também é a de plantas alimentícias e produtos com alto potencial nutracêutico venha a perecer ou perder espaço frente aos monocultivos (Figura 6).
Para assegurar a verdadeira soberania, o país deve resgatar sua riqueza que vem sendo destruída ou acaba sendo alvo de biopirataria. No Brasil, é necessário o investimento em agroecologia, com base nas nossas plantas. Estima-se que pelo menos 10% de todas as floras do mundo apresentem plantas alimentícias nativas ou autóctones, o que corresponderia no Brasil a pelo menos 3.500 espécies. O pesquisador alemão Günther Kunkel (1984) foi o pioneiro no levantamento de plantas alimentícias de mundo todo, tendo citado 12,5 mil espécies com este potencial para todos os continentes. Edward Wilson (1988) estimou que ocorressem no mundo 75 mil espécies alimentícias, e destacou que muitas são superiores em vários aspectos nutricionais às plantas cultivadas convencionalmente. Eduardo Rapoport e colegas da Argentina (2009) chegaram a uma estimativa semelhante a de Wilson, reconhecendo que 25% das plantas de muitas floras são representadas por plantas alimentícias. Estudo de Valdely Kinupp (2007) obteve como resultado 311 espécies com uso atual ou potencial alimentício da flora nativa da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o que representa cerca de 20%, da flora da região.
Referências:
KINUPP, V.F. (2007) Plantas Alimentícias Não-Convencionais da Região Metropolitana de Porto Alegre, RS.Tese (Doutorado em Fitotecnia) Programa de Pós-Graduação em Fitotecnia, Faculdade de Agronomia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
KUNKEL, G.W.H. (1984) Plants for human consumption: an annotated checklist of the edible phanerogams and ferns. Koenigstein: Koeltz Scientific Books.
RAPOPORT, E.H; MARZOCCA, A.; DRAUSAL, B.S. (2009) Malezas comestibles del Cono Sur y otras partes del planeta. Bariloche: INTA.
WILSON, E. (1988) The current state of biological diversity. In: WILSON, E.O. & PETER, F.M. Biodiversity. 521 pp. Washington, D.C.: National Academy Press.
Fonte: Via Biodiversa