Agricultura camponesa: entre a onipresença e a invisibilidade
A história das vertentes teóricas do pensamento social agrário pode ser associada em grandes traços à evolução da polêmica sobre a existência e o lugar da agricultura camponesa nas sociedades capitalistas. Até o século XVIII, o modo camponês de agricultura se apresentava como um elemento tão evidente da realidade que não suscitava qualquer questionamento quanto à sua vigência histórica e ao seu papel social.
Mas as grandes transformações sociais, econômicas, técnicas e culturais que se processaram no mundo rural com a emergência e a expansão do capitalismo nos últimos dois séculos motivaram o surgimento e a evolução de um complexo corpo teórico a esse respeito no campo das ciências sociais.
Nos marcos desse processo, a agricultura camponesa foi e permanece sendo apresentada pelas teorias dominantes como um obstáculo ao progresso e à modernidade, duas noções vagas, mas extremamente funcionais como alavancas ideológicas para a legitimação de políticas anticamponesas. Para esse posicionamento convergiram tanto teóricos liberais como marxistas, o que explica o fato de que até hoje as formas de produção e reprodução da agricultura familiar camponesa sejam tão mal compreendidas e tão desvalorizadas como esteios do desenvolvimento rural e como estratégias para o abastecimento alimentar das sociedades contemporâneas.
O economista russo Alexander Chayanov foi um dos poucos autores que, ainda no início do século XX, desviou do consenso desqualificador do modo camponês que já se consolidava à época. Com sua Teoria dos sistemas econômicos não capitalistas, que data de 1924, deu grande contribuição para o discernimento das peculiaridades da economia camponesa, ao descrever um conjunto de princípios que regem o funcionamento interno das unidades agrícolas familiares e que as diferenciam do modo de produção capitalista. A principal distinção apontada por Chayanov é que a força de trabalho que aciona o capital mobilizado na unidade camponesa é a própria família. Isso significa que a agricultura de base familiar não se organiza para extrair e se apropriar da riqueza gerada pelo trabalho alheio, ou seja, pela extração de mais-valia. Além disso, por não ser apenas um trabalhador, mas também o proprietário dos meios de produção, o agricultor familiar depende da preservação – e, se possível, da ampliação – do patrimônio produtivo, o que implica uma racionalidade peculiar na gestão dos recursos locais. Desse ponto de vista, a lógica que orienta a economia camponesa visa à otimização a longo prazo das rendas geradas pelo trabalho familiar, diferindo diametralmente dos critérios da empresa capitalista, estruturada para a obtenção de lucros a curto prazo.
Definida por Chayanov (1981) simultaneamente como um modo de produção e um modo de vida, a agricultura camponesa estrutura suas estratégias de produção e reprodução buscando integrar as esferas da vida econômica, social, ambiental e cultural em um todo coerente e indivisível. Nesse sentido, o modo de produção camponês é irredutível a uma racionalidade econômica exclusivamente voltada para a geração de riqueza material expressa em dinheiro.
Apesar desse promissor caminho teórico aberto por Chayanov, as principais orientações intelectuais dos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo na agricultura permaneceram amplamente insensíveis aos fenômenos empíricos. Essa postura fez com que, no decorrer da história, as contradições entre a teoria e a prática se acentuassem. Dessa forma, o pensamento social dominante mostrou-se cada vez mais defasado e inoperante para explicar os fenômenos sociológicos e econômicos correntes no mundo rural, em particular as estratégias pelas quais a agricultura camponesa persevera e se renova continuamente. Explica-se, assim, um dos maiores paradoxos do mundo rural dos dias de hoje: a onipresença e a invisibilidade da agricultura camponesa.
Discernindo o mistério do campesinato contemporâneo
No passado, o conceito-chave para compreender a condição camponesa era subordinação ao capital. Essa interpretação, no entanto, vem sendo questionada por estudiosos de diferentes lugares do mundo. Para eles, o campesinato do século XXI só pode ser compreendido a partir de suas múltiplas expressões de existência que enfeixam variadas formas de luta orientadas a explorar as margens de manobra de que dispõe para aumentar seus níveis de autonomia, renda e dignidade diante de contextos sociopolíticos e econômicos que o condenam à subordinação (PLOEG, 2008).
Um elemento essencial nessas lutas por emancipação é o contínuo processo de construção, aperfeiçoamento, ampliação e defesa de uma base de recursos autocontrolada, composta pela combinação de recursos naturais e sociais localmente disponíveis – terra, agrobiodiversidade, recursos hídricos, estruturas produtivas, conhecimentos locais, força de trabalho familiar, redes sociais baseadas nos princípios da cooperação e da reciprocidade, etc.
A gestão estratégica dessa base de recursos, caracterizada por dinâmicas de coprodução entre a natureza e as instituições sociais, propicia a reprodução da agricultura camponesa, ao assegurar a geração de riquezas de forma relativamente autônoma com relação aos mercados globalizados e às políticas de preço neles definidas. Em condições estruturais adequadas – disponibilidade de terra, livre acesso a recursos naturais, participação nos mercados, vida comunitária e cultural ativa, etc. –, tais estratégias produtivas fundadas na coprodução tendem a alargar a autonomia das famílias agricultoras, na medida em que retroalimentam e fortalecem a base de recursos, promovendo círculos virtuosos de emancipação e desenvolvimento.
A compreensão das trajetórias de desenvolvimento da agricultura camponesa a partir de suas lutas por autonomia permite que a mesma seja ressituada no processo histórico, evidenciando que o sentido desse processo não é unidirecional e conducente à inexorável dissolução do campesinato, como desde sempre proclamam os arautos da modernização agrícola. Por essa razão, a defesa da agricultura camponesa não pode em absoluto ser confundida com uma proposta passadista. Pelo contrário, ela indica caminhos consistentes para que a crise agrária sistêmica que se alastra e se aprofunda em todos os quadrantes do planeta seja estruturalmente enfrentada.
Diferente da racionalidade da agricultura empresarial, calcada exclusivamente em regras comerciais e relações de preços definidas alhures – gerando assim estilos de produção desconectados das realidades socioecológicas e culturais dos territórios em que se implanta –, a agricultura familiar camponesa constrói o seu futuro a partir do emprego de seu próprio trabalho e de sua inteligência criativa na valorização e no uso cuidadoso dos recursos endógenos aos territórios rurais. Assim orientado, seu progresso contribui diretamente para o progresso geral da sociedade em que está imersa, já que desempenha um conjunto integrado de funções de interesse público: além de produzir alimentos em quantidade, qualidade e diversidade, a agricultura camponesa molda estilos de desenvolvimento rural que mantêm relações positivas com os ecossistemas e dinamizam as economias regionais, por meio da criação de empregos estáveis e dignos e da diversificação de atividades, demonstrando ainda flexibilidade para se adaptar a mudanças climáticas, econômicas e socioculturais. Em suma: o modo de produção camponês induz processos de desenvolvimento triplamente vencedores – social, econômica e ambientalmente –, dando assim concretude ao ideal de desenvolvimento sustentável.
A insustentabilidade sustentada
A explicitação dos contrastes entre os modos de produção camponês e empresarial põe em xeque os fundamentos da modernização, segundo os quais a permanência e a reemergência da agricultura camponesa são consideradas impossíveis ou, no mínimo, indesejáveis. Com a irradiação e o aprofundamento da crise multidimensional que se abate sobre a agricultura mundial, os postulados econômicos, agronômicos e sociológicos da modernização vêm sendo radicalmente contestados na teoria e na prática. A relativização do dinheiro como solvente universal das trocas econômicas e da monetarização como parâmetro referencial exclusivo para a regulação da vida social e definição dos padrões produtivos e distributivos que moldam os sistemas agroalimentares modernos apresentam-se como aspectos centrais desses questionamentos. Alimento não pode ser mercadoria sujeita à volatilidade especulativa dos mercados internacionais liberalizados. Além de expressar uma bandeira de luta de movimentos camponeses contemporâneos, essa noção é coerente com a defesa do direito humano básico à alimentação, direito este negado atualmente a mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do planeta.
No entanto, em que pesem os imperativos éticos universais e os cada vez mais contundentes alertas emitidos por organismos multilaterais internacionais quanto aos agudos desafios alimentares, ambientais, energéticos e climáticos que nos colocam em uma verdadeira encruzilhada civilizacional, as grandes corporações seguem dando as cartas no jogo político. Com o argumento de que os mercados induzirão e regularão dinâmicas de desenvolvimento sustentável, procuram impor, sob o manto da chamada Economia Verde, novos marcos institucionais que permitirão mercantilizar bens da natureza que até hoje estiveram fora da esfera das trocas monetárias. E, assim, com seu poder político, econômico e ideológico, permanecem sustentando a insustentabilidade do agronegócio e suas monoculturas industrializadas produtoras de junk food.
Um desafio à ciência e à política
Para que a agricultura camponesa seja social e politicamente reconhecida e promovida, as ciências estão convocadas a exercer uma postura decisiva ao abordar a realidade atual por ângulos distintos dos propostos pela teoria da modernização. Mudanças nessa direção estão em curso: em vez de continuar decretando o inevitável desaparecimento da agricultura camponesa, as ciências sociais têm contribuído para o entendimento de que os camponeses estão entre nós para ficar, e que o mundo estaria muito pior se eles houvessem efetivamente desaparecido; as ciências agrárias, por sua vez, em vez de continuarem se fiando na crescente capacidade humana de controlar a natureza por meio do aporte intensivo de energia e insumos industriais, vêm incorporando a compreensão de que a agricultura é a arte da coprodução entre o ser humano e a natureza e que os camponeses são os grandes mestres dessa arte.
Novos paradigmas científicos emergem e se consolidam academicamente como respostas adaptativas à crise multifacetada da agricultura mundial, que se posiciona no epicentro da crise civilizacional vigente. O desafio de traduzir os conceitos e as metodologias desses novos paradigmas científicos para a esfera da ação política reside justamente na criação de novos arranjos institucionais que reconheçam e revalorizem o papel da agricultura camponesa nas sociedades atuais.
Essa nova institucionalidade deve ser informada por uma ciência fundamentada em uma epistemologia capaz de fazer uma releitura das experiências endógenas cuja relevância vem sendo negligenciada pelo paradigma dominante nas ciências sociais e agrárias. Essa ideia é coerente com as premissas do projeto de pesquisa coordenado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos intitulado A reinvenção da emancipação social.
Em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada. É deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim, e outras semelhantes. Em terceiro lugar, para combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim das contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade (SANTOS, 2002, p. 238).
Entre outros aspectos, essa outra racionalidade reclamada por Boaventura deve superar a tirania do dinheiro em estado puro – para citar a feliz expressão do geógrafo Milton Santos –, que padroniza e empobrece a experiência humana sobre o planeta. Uma nova racionalidade para os sistemas agroalimentares deve revalorizar sabedorias camponesas ao reconciliar natureza e (agri)cultura (PETERSEN, WEID, FERNANDES, 2009) como elementos que se estruturam dialeticamente na conformação de dinâmicas alternativas de desenvolvimento rural, por meio de processos coevolutivos que alimentam a heterogênese do mundo.
Cabe nesse ponto relembrar o pensamento que Marx nos legou em seus manuscritos econômico-filosóficos:
Algum dia a ciência natural se incorporará à ciência do homem, do mesmo modo que a ciência do homem se incorporará à ciência natural. Haverá uma só ciência. (MARX, 1984, p. 153)
Avanços nessa direção vêm sendo dados por meio dos aportes da Ecologia, uma ciência integradora por excelência. Mas, mesmo antes do surgimento da Ecologia, no final do século XIX, o espírito privilegiado e metódico de Marx percebeu a importância, no processo econômico, das trocas de matéria e energia entre a sociedade e a natureza, designadas por ele de metabolismo. O metabolismo social capta aspectos fundamentais da existência biológica e social do ser humano, realçando que ela depende tanto de leis naturais que governam os processos ecológicos quanto de arranjos institucionais que governam a divisão do trabalho e a distribuição da riqueza social.
O modo de produção camponês, sempre que operando com margens de liberdade suficientes, reproduz metabolismos agrários mais sustentáveis exatamente porque imprime em seus arranjos técnico-institucionais um conjunto de princípios comuns às leis naturais: a diversidade; a flexibilidade adaptativa; a natureza cíclica dos processos; a interdependência; e os vínculos associativos e de cooperação. Esse conjunto de princípios está inscrito nas memórias bioculturais das comunidades camponesas. Sem lugar a dúvidas, essas memórias são um dos principais elos entre o passado, o presente e o futuro da Humanidade. Por essa razão, a proteção e o cultivo das mesmas são tarefas urgentes que cobram uma nova ciência: a Agroecologia.
Por Paulo Petersen
Referências bibliográficas:
CHAYANOV, A. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas [1924]. In: SILVA, J. G. da; STOLCKE, V. (Org.). A Questão Agrária - Weber, Engels, Lenin, Kautsky, Chayanov, Stalin. São Paulo: Brasiliense, 1981.
MARX, K. Manuscritos de economía y filosofía. Madrid: Alianza Editorial, 1984.
PETERSEN, P. F.; WEID, J. M. von der; FERNANDES, G. B. Agroecologia: reconciliando agricultura e natureza. Informe Agropecuário, Belo Horizonte, v. 30, n. 252, p. 7-15, set./out. 2009.
PLOEG, J.D van der. Camponeses e impérios alimentares; lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2008.
SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: Revista crítica de ciências sociais. N.63, 2002. p. 237-80 (Edição dedicada ao tema Globalização: fatalidade ou utopia) Disponível aqui
***
PAULO PETERSEN é coordenador executivo da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia e vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia. Engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal de Viçosa e Mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural pela Universidade Internacional de Andaluzia, integra o Fórum Permanente de Agroecologia da Embrapa e a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, órgão vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República. Atua como editor da revista Agriculturas: experiências em agroecologia e é membro do conselho editorial da Revista Brasileira de Agroecologia e da Agroecology and Sustainable Food Systems.
- Ver más aquí