A ecologia deles e a nossa. A profecia de Gorz
"Há mais de 40 anos, o filósofo André Gorz alertava: o capitalismo tentaria capturar causas ambientais. Antídoto: a ideia radical de que uma boa vida não está ligada a privilégios, mas à construção do Comum", escreve Razmig Keucheyan, professor de sociologia na Universidade de Bordeaux (Centre Émile Durkheim), autor do livro La nature est un champ de bataille: Essai d'écologie politique, 2014 (em tradução livre, A natureza como campo de batalha. Ensaio de ecologia política), em artigo publicado por OutrasPalavras, 24-11-2016.
A tradução é de Inês Castilho.
Eis o artigo.
Há 42 anos, em 1974, André Gorz publicava na revista Le sauvage um texto famoso, intitulado Leur écologie et la nôtre. Le Monde diplomatique reeditou em 2010 extratos desse texto. E compreende-se porque: é simplesmente espantosa a previsão de Gorz, sua capacidade de antecipar a evolução das relações entre o capitalismo e a natureza. Gorz descreve desde 1974 o mundo em que o nosso está se transformando.
Veja o que diz Gorz:
“A consideração de exigências ecológicas (…) já tem bastante adeptos capitalistas, porque sua aceitação por parte do poder do dinheiro torna-se uma séria probabilidade. [A luta ecológica] pode criar dificuldades para o capitalismo e forçá-lo a mudar; mas, depois de resistir por muito tempo na base da força e da astúcia, o capitalismo finalmente cederá, porque o impasse ecológico terá se tornado inelutável; ele absorverá essa restrição, como absorveu todas as outras.”
O argumento de Gorz é simples: o capitalismo é um sistema resiliente. Pode encontrar dificuldades por causa da crise ecológica, mas no final se adaptará. Por que Gorz diz isso? Se o capitalismo conseguiu existir durante três séculos, é porque beneficiou-se de uma natureza gratuita, uma natureza que não era preciso “reproduzir”. Essa natureza gratuita, o capitalismo a utilizou como input e como output ao mesmo tempo. A natureza constituiu-se em fonte de inputs gratuitos para o capitalismo, pois, desde que existe, o sistema captura os recursos naturais “brutos” para transformá-los em produtos. Mas a natureza constituiu-se também em output, uma “cesta de lixo global” onde são despejados os dejetos da acumulação do capital, isso a que os economistas neoliberais chamam pudicamente de “externalidades negativas”.
Com a crise ambiental, a natureza não exerce mais essa dupla função de input e outputgratuitos para o capitalismo. A dialética do sistema e da natureza entra em crise. Certos recursos naturais cruciais para a vida das sociedades modernas (água, combustíveis fósseis, ar não poluído etc.) estão desaparecendo, enquanto a manutenção ou limpeza do meio ambiente tornam-se mais e mais caros. Por exemplo, o custo da poluição para o sistema de saúde não para de crescer, pesando sobre a taxa de lucro. A conclusão que alguns tiram desse fato é clara: o capitalismo não vai durar muito mais tempo, precisamente porque tem uma necessidade imperativa dessa natureza gratuita. Sem ela, a acumulação do capital perde seu substrato material.
Gorz não está de acordo com esse raciocínio, ainda muito comum na esquerda – ele acha que o capitalismo saberá absorver a restrição ambiental. Com a crise ecológica, a natureza deve agora ser “reproduzida”, tal como a força de trabalho. “Reproduzida” significa que volumes crescentes de capital terão de ser investidos para despoluir ou proteger as populações – ou determinadas porções privilegiadas da população – das catástrofes naturais.
Um exemplo é o projeto de gestão “ecológica” do East River em Nova York, o East Side Coastal Resiliency Project. Com o custo de meio bilhão de dólares, é a primeira etapa da adaptação da cidade às mudanças climáticas e a catástrofes naturais, cada vez mais numerosas e intensas. Foi lançado após a devastação provocada na cidade pelo furacão Sandy, em outubro de 2012. É liderado pela estrelada empresa BIG, de arquitetos dinamarqueses (a arquitetura “verde” é um negócio florescente), e está voltado à proteção das áreas mais ricas de Manhattan.
O capital mobilizado para a “reprodução” da natureza terá dois efeitos possíveis sobre o sistema: ou a taxa de lucro baixará, pois essa reprodução será pouco rentável; ou então o preço das mercadorias produzidas dessa maneira aumentará, de forma que o lucro seja mantido, ou até aumente. Essa segunda eventualidade é a mais provável, diz Gorz. O imperativo de reprodução da natureza levará a uma alta geral dos preços, as mercadorias ou as infraestruturas se tornarão inacessíveis à população – mas acessíveis aos endinheirados. O poder de compra dos mais pobres será comprimido e as desigualdades aumentarão devido à crise ambiental.
Gorz conclui assim:
“Levar em conta os custos ecológicos terá, em resumo, os mesmos efeitos sociais e econômicos da crise do petróleo. E o capitalismo, longe de sucumbir à crise, irá geri-la como sempre fez: grupos financeiros bem situados lucrarão com as dificuldades de grupos rivais para absorver a preço baixo e expandir sua apropriação sobre a economia. O poder central reforçará o controle sobre a sociedade: tecnocratas calcularão normas “ótimas” de despoluição e produção, elaborarão as regulamentações, estendendo os domínios da ‘vida programada’ e o campo de ação dos aparelhos de repressão.”
Aquilo que Gorz podia somente imaginar, extrapolar, é o que vemos tomar forma diante dos nossos olhos. Assistimos hoje à adaptação do capitalismo à crise ambiental, uma adaptação de duas ordens. A primeira, reflexo do capitalismo em situação de crise, é sempre mercantilizar, mercantilizar a natureza. Essa mercantilização opera hoje, por exemplo, por meio da criação de produtos financeiros “segmentados” sobre a natureza, as catástrofes naturais ou a biodiversidade. Os mercados de carbono, os derivativos climáticos, os títulos de catástrofe ou ainda os bancos de ativos de biodiversidade estão entre esses produtos financeiros [1].
Mas o capitalismo não se contenta em mercantilizar a natureza, é mais esperto que isso. Contrariamente ao que a esquerda frequentemente imagina, os capitalistas são bem capazes de pensar a longo prazo, em especial quando seus lucros estão em jogo. Mais exatamente, em épocas de crise como hoje, as racionalidades capitalistas de curto e longo prazo entram em conflito – e as atuais hesitações das classes dominantes em relação à crise climática são testemunhas disso.
É o que demonstra o caso da BlackRock — a mais importante gestor de ativos financeiros do mundo. Ele gere cerca de 5 trilhões de euros. Publicou, em setembro passado, um relatório intitulado Adapting portfolios to climate change [2], no qual diz que os investidores devem a partir de agora incluir, em suas estratégias de investimento, o respeito ao ambiente nas empresas em que investem: emissão de gases de efeito estufa, danos à biodiversidade, consumo de água etc. A BlackRock lhes diz, preto no branco: é preciso investir somente nas empresas que se colocam seriamente a questão das mudanças climáticas e de seus efeitos sobre sua rentabilidade.
Esses fundos de investimento por certo não foram subitamente convertidos ao ambientalismo. O argumento da BlackRock é que, depois da COP21, a pressão da opinião pública e dos governos sobre as corporações vai aumentar, e a regulamentação ambiental será mais estrita. Isso significa que as empresas que não levam a sério essa dimensão irão ver-se em dificuldades e serão, portanto, menos lucrativas aos investidores. A expressão consagrada pelos financistas em inglês é “strand assets”, um termo que designa os ativos financeiros cujo valor diminuirá à medida que a regulação ambiental se tornar mais exigente. O relatório da BlackRock vai considerar como inevitável até a redução futura dos subsídios estatais para as indústrias fósseis.
Essa inesperada virada ecológica da BlackRock, contudo, entra rapidamente em contradição com a necessidade de realizar lucros aqui e agora. A imprensa financeira relata que, alguns meses antes da publicação desse relatório, a BlackRock impediu a votação de uma resolução “ecológica” durante a assembleia anual de acionistas da ExxonMobil. [3] A ExxonMobil é uma gigante do petróleo, o segundo valor de mercado do mundo, atrás apenas da Apple. O volume de negócios chega ao nível do PIBda Áustria. A BlackRock e outra gestora de ativos, a Vanguard, são os dois maiores acionistas da Exxon; juntas, possuem 11% do capital.
Um grupo de acionistas “ético”, que detém ações da Exxon, submeteu no início do ano à assembleia uma resolução pela qual a Exxon deve explicitar sua estratégia pós COP21.Como o conselho de administração da Exxon enxerga os efeitos do acordo de Parissobre seus investimentos futuros, em matéria de energias fósseis? Não seria tempo de reorientar esses investimentos em direção a energias renováveis?
Os representantes da BlackRock na assembleia de acionistas votaram contra essa resolução. Eles não se opuseram apenas a que a Exxon renuncie às energias fósseis. Também impediram sua direção de explicar para os acionistas quais as consequências do acordo de Paris para a estratégia de investimento futuro da corporação. Em resumo, a BlackRock fez exatamente o contrário do que preconiza seu relatório.
Como explicar essa esquisofrenia dos capitalistas, da qual poderíamos dar numerosos exemplos? De um lado, publica-se um documento afirmando que os parâmetros ambientais devem entrar em consideração nas estratégias de investimento; de outro, opõe-se a uma resolução “minimalista” que convida a direção de uma major do petróleo a refletir sobre o pós COP21. Claro, sempre é possível dizer que os dirigentes da BlackRock são hipócritas, ou que fazem a chamada “lavagem verde”, ou greenwashing: eles dizem à opinião pública o que ela quer ouvir em matéria ambiental, mas paralelamente praticam business as usual.
Há talvez uma parte disso, mas não há razão para subestimar o fato de que os capitalistas se colocam, de fato, perguntas quanto à atitude a adotar no contexto da crise climática.
Há três coisas para analisar, aqui. Primeiro, a lógica do curto e do longo prazo entraram em conflito. O capital financeiro tem uma tendência congênita ao curto-prazismo, a buscar lucros imediatos. As instituições que permitiriam disciplinar esse curto-prazismo em matéria ambiental ainda não foram inventadas, e portanto o curto prazo venceu. Mas no passado, para sair de outras crises – como a dos anos 1930, por exemplo — o capitalismo soube perfeitamente disciplinar-se, ou ser disciplinado pelo Estado. Não há razão para pensar que será incapaz desta vez. Mas para isso são necessárias novas instituições.
Em segundo lugar, o relatório BlackRock tem o mérito de enviar um sinal às corporações. “O limite ambiental vai tornar-se mais premente depois da COP21. Se querem que a gente invista em seu negócio no futuro, reflita sobre os seus efeitos sobre a rentabilidade e tome as medidas que se impõem. Caso contrário, não lhe confiaremos nosso dinheiro”, é a mensagem enviada pela BlackRock.
Finalmente, esses fundos de investimento investem paralelamente em setores da economia que sofrem os efeitos das mudanças climáticas. Se um fundo de investimento possui ações de uma seguradora, tipo Allianz ou Axa, ele vê a curva de remuneração paga aos segurados subir como uma flecha depois de várias décadas, devido ao aumento das catástrofes naturais. Tem, portanto, um interesse objetivo na existência de menos catástrofes naturais, e portanto em reduzir as emissões de gases de efeito estufa das empresas em que investe, em outros lugares.
Voltemos a Gorz. Quando o capitalismo assimilar a pressão ambiental, diz Gorz, ele o fará em seu próprio interesse, e não no interesse das populações. Há a ecologia “deles”, a dos capitalistas, e há a “nossa”, das populações. Mas o que distingue a economia deles da nossa? A resposta de Gorz é muito estimulante, ela esboça um programa de trabalho político que devemos elaborar coletivamente.
Segundo Gorz, a divisa da sociedade capitalista é a seguinte: Aquilo que é bom para todos não vale nada. Você só será respeitável se for “melhor” do que outros. A esse slogan capitalista é preciso opor um outro, uma divisa ecológica: Só é digno de você aquilo que é bom para todos. Só merece ser produzido o que não favorece nem diminui ninguém.
O que distingue, para Gorz, “a ecologia deles da nossa” é a concepção de necessidade humana que sustenta cada uma. Na sociedade capitalista, a escolha daquilo que um indivíduo necessita para viver uma “boa vida” é da alçada do próprio indivíduo — ou seja, em última instância é do mercado, pois a vontade individual frequentemente não pode muita coisa diante do poder de persuasão do mercado. E a lógica do mercado é a da diferença: eu não sou respeitável a não ser que seja “melhor” que os outros. Claro, essa discussão é enganosa, pois o mercado promete a mesma “diferença” a milhões de indivíduos, isso que tende, em última instância, a homogeneizar tudo, e estabelecer “vidas programadas”, como diz Gorz.
Para pensar nossas necessidades fora da lógica do mercado, para romper com as subjetividades consumistas, é preciso opor a ele uma força de poder equivalente. Essa força não pode ser outra além da deliberação coletiva, a democracia, uma democracia radical. Às necessidades criadas artificialmente pelo mercado, é preciso opor necessidades coletivamente discutidas e articuladas: “Só é digno de você aquilo que é bom para todos”. A partir disso, trata-se – e isso é o mais difícil – de colocar-se de acordo sobre aquilo que é “bom para todos” — algo que só aparece por meio da deliberação coletiva.
A questão que Gorz não aborda, e da qual deveríamos nos ocupar nos anos que virão é: em quais tipos de coletivos, em quais “conselhos cidadãos” as necessidades “boas para todos” — aí incluído o meio ambiente — poderiam ser colocadas em discussão? Aqui é preciso inspirar-se nos “grupos de reflexão” feministas dos anos 1970. Nesses grupos, discutiam-se os aspectos mais íntimos da vida, pensando-os em sua ligação com a política. Esses grupos permitiram que as mulheres saíssem do isolamento, discutissem a opressão de que eram vítimas, e também tomassem consciência de sua força quando se organizavam.
Colocar-se de acordo sobre necessidades “autênticas”, que escapem à falsa diferença prometida pelo mercado e que sejam ecologicamente duráveis, poderia ser algo a fazer em coletivos do mesmo tipo. Combatendo o consumismo de que somos todos vítimas em níveis diversos, esses coletivos poderiam também pronunciar-se sobre o tipo e a quantidade de bens produzidos, tal como faziam, antes, os conselhos de trabalhadores. Este é talvez um dos futuros caminhos da radicalização da democracia, e também da superação do capitalismo.
Notas
[1] Sobre isso, ver Razmig Keucheyan, La nature est un champ de bataille. Essai d’écologie politique, Paris, editora Découverte, 2014, cap. 2.
[2] Disponível no endereço: https://www.blackrock.com/investing/literature/whitepaper/bii-climate-change-2016-us.pdf
[3] Ver Financial Times, 6 de setembro de 2016.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos