A biodiversidade e o feminismo. Entrevista especial com Neide Miele
Devido ao papel de mãe que assume, a mulher, no geral, é aquele que protege a biodiversidade, que tem uma relação mais íntima com o meio ambiente.
Embora essa seja uma verdade, a professora Neide Miele diz que “o problema da proteção à biodiversidade não pode ser colocado mecanicamente na polaridade homem x mulher, mas na predominância de um determinado princípio sobre o outro. Neste sentido, eu diria que o princípio feminino protege mais a natureza, visto que o cuidado em relação ao outro é sua característica predominante”. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por email, Miele analisa a compreensão que a mulher tem da biodiversidade e a forma como ela se posiciona nas decisões sobre meio ambiente e agricultura.
Miele afirma também que o ecofeminismo “é um passo importante e necessário na luta pela preservação da natureza para as futuras gerações, mas não é o objetivo final. A luta será vencida quando homens e mulheres se conscientizarem do mea culpa e se reconhecerem opressores”.
A assistente social Neide Miele é mestre em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e doutora em Sociologia pela Université de Picardie Jules Verne (França). Atualmente, é professora na UFPB. Entre seus livros, destacamos: Relações de Gênero – Um olhar diferente (João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como você vê a compreensão feminina da biodiversidade?
Neide Miele – “As mulheres sustentam metade do céu”, diz um provérbio chinês. O céu é uma totalidade sustentada por duas forças em equilíbrio, o princípio masculino e o princípio feminino. O mesmo se pode dizer do ser humano, ele também é uma totalidade. Assim como o céu, ele também é um amálgama dos princípios feminino e masculino. O problema é que o ser humano foi submetido a uma “cirurgia cultural”, da qual resultou um ser fragmentado, enfraquecido, desequilibrado, metade da totalidade que ele já foi. Homens e mulheres foram igualmente vítimas da cultura, da história, dos preconceitos sexistas.
Certamente isto se reflete na compreensão que temos hoje da biodiversidade, sejamos homens ou mulheres. Biodiversidade significa diversidade da vida, e a vida não é prerrogativa da mulher ou do homem, nem mesmo de ambos. A vida não se sustenta a não ser em contato profundo e respeitoso com a natureza, com o mundo que nos cerca. Embora óbvia, esta realidade foi sendo esquecida pelo homem ao longo da história, no seu afã de conquistar, de dominar, de possuir, não apenas a mulher mas a Mãe-natureza, e o resultado é este que temos aí: catastrófico.
IHU On-Line – As mulheres protegem a biodiversidade mais do que os homens?
Neide Miele – No geral sim, certamente devido ao seu papel de mãe, mas há que se tomar cuidado com esse tipo de resposta para não cairmos numa caricatura. Quantos de nós conhecemos mulheres capazes de matar a própria prole e homens que cuidam da mesma melhor do que uma mãe? O problema está em tomar o princípio feminino como mulher e o princípio masculino como o homem. Tais princípios são forças definidoras de aspectos da personalidade do ser humano e não podem ser confundidas com o sexo biológico.
Eles são aquilo que Carl Gustav Jung [1] definiu como anima-animus, ou seja, anima é a contraparte feminina da personalidade masculina e animus a contraparte masculina da psique feminina. Anima e animus são contrapartes que fazem da psique uma totalidade. A contraparte anima-animus poderia ser comparada a uma folha de papel, ela é o verso da folha, a parte não aparente, mas está lá e cumpre uma função.
Assim como é impossível eliminar o verso da folha de papel sem destruí-la, é impossível eliminar a contraparte da personalidade de qualquer ser humano. Entretanto, muitas vezes ocorre que a contraparte atua como parte, fazendo com que as atitudes e escolhas ganhem um caráter tido como bizarro. Nem toda mulher tem o princípio feminino como o preponderante, assim como nem todo homem é regido exclusivamente pelo princípio masculino. Observe que não estou me referindo apenas às escolhas sexuais de cada um, mas ao comportamento como um todo.
O princípio feminino é o fluido que organiza, dá forma e cuida, assim como o princípio masculino é a centelha de criação, que impõe a ordem e domina. O desvio está em considerar que o único detentor do princípio masculino é o homem, assim como o princípio feminino é exclusividade da mulher. Isso não é verdade! Por exemplo, quando a Mãe-natureza distribuiu os hormônios nos corpos humanos, ela não o fez separando: Hormônios masculinos para os homens, hormônios femininos para as mulheres. Seja homem ou mulher, circu1am no corpo de cada ser humano, hormônios femininos e masculinos. O que varia é a proporção, sendo o equilíbrio entre ambos a garantia da saúde.
Neste sentido, podemos afirmar que homem e mulher não existem. Eles são apenas uma construção cultural. Como duas faces da mesma moeda, o homem e a mulher estão para o SER, assim como o meio-dia e a meia-noite estão para o DIA, ou como as duas metades dos cromossomos estão para o DNA, ou como frente e verso estão para a folha de papel. Segundo o físico David Bohm [2], “a realidade é um inteiro não dividido”. Esta maneira de conceber a realidade exige que ultrapassemos a velha noção de homem versus mulher para enxergarmos o SER HUMANO, único. Sob este prisma, o problema da proteção à biodiversidade não pode ser colocado mecanicamente na polaridade homem x mulher, mas na predominância de um determinado princípio sobre o outro. Neste sentido, eu diria que o princípio feminino protege mais a natureza, visto que o cuidado em relação ao outro é sua característica predominante.
IHU On-Line – Como você analisa a posição das mulheres na tomada de decisões sobre agricultura e biodiversidade?
Neide Miele – Mais uma vez temos que procurar fugir dos rótulos. O fato de pertencer ao sexo feminino não é garantia de maior consciência em relação à agricultura sustentável ou à proteção da biodiversidade. Homens e mulheres que conseguiram desenvolver em si mesmos o princípio feminino, relacionado com o cuidado ao outro, estão mais aptos a construir uma relação harmoniosa para com a natureza. Obviamente o homem tem mais dificuldade visto que a sociedade exigiu dele um comportamento agressivo e dominador fazendo com que ele atrofiasse seu lado “cuidador”. Mas isto está mudando.
O homem já deixou de ser o provedor em exclusividade da família, as conquistas femininas no mercado de trabalho trouxeram para a mulher, não apenas sua independência financeira, mas um novo papel no seio da família. Os homens têm sentido a necessidade de dar alguns passos em direção à conquista do espaço da paternidade responsável e participativa. Assim como as mulheres conquistaram espaços públicos, os homens já começaram a empreender uma viagem para o interior do lar e, principalmente, de si mesmos.
Dentro do novo paradigma, dos novos relacionamentos e da nova sociedade, não há mais sentido lutar apenas pela libertação feminina. A tônica agora é a libertação do ser humano, buscada por homens e mulheres. Às denúncias feministas de opressão da mulher seguiu-se a conscientização de que, finalmente, todos os seres humanos foram vítimas do modelo imposto pela cultura machista. Ao oprimir a mulher, o homem não se tomou um vencedor, ao contrário, ele apenas revelou o que havia de pior em si mesmo, seu lado negro. Igualmente nefasta, a predominância feminina sobre o homem não faria mais do que substituir o opressor por uma mulher. A salvação do planeta, da agricultura e da biodiversidade está na cooperação entre homens e mulheres, livres, independentes, inteiros, conscientes.
IHU On-Line – Há diferenças entre mulheres dos países em desenvolvimento e em países desenvolvidos na relação com a biodiversidade?
Neide Miele – Se tomarmos a atitude de proteger os recursos naturais oferecidos pelo planeta Terra como a característica fundamental do princípio feminino, que pode ser definido como o “cuidado em relação ao outro”, veremos que a preocupação com a biodiversidade não pode ser configurada na disputa entre homem/mulher para saber quem cuida mais. E ainda menos na separação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Em ambos os casos, encontraremos homens e mulheres muito ricos profundamente preocupados com a biodiversidade, assim como homens e mulheres pobres sem a menor consciência suas ações destrutivas. O inverso é igualmente verdadeiro.
IHU On-Line – Qual a sua avaliação sobre o ecofeminismo?
Neide Miele – Estando o princípio feminino associado unicamente à mulher é natural interpretar que a mulher tem uma consciência maior que a do homem quando se trata da preservação da Natureza. Isto é parcialmente verdadeiro. No geral, as mulheres têm o sentimento de cuidado em relação ao outro mais do que os homens. Porém, isto não pode ser tomado como regra, sobretudo porque as exceções são abundantes.
É inegável a importância do movimento feminista para a tomada de consciência da opressão machista e na luta pela conquista dos direitos da mulher. Entretanto, décadas depois de 1968, entendo que é chegada a hora de darmos mais um passo na luta contra o machismo. Sem deixar de lutar pela libertação da mulher, deveríamos partir para a libertação do ser humano. Ser opressor não faz bem a ninguém, seja homem ou mulher. E, infelizmente, as pesquisas mais recentes demonstram que as mulheres (sobretudo as mães) exercem esse nefasto papel em relação aos filhos. Os homens batem nas mulheres e estas nos filhos. Um menino que cresceu apanhando, baterá. Um menino que foi violentado, violentará. Este mesmo menino que apanhou de sua mãe baterá em sua esposa. Embora tenha exceções, esta é a regra. É contra isso que temos que lutar.
Entendo que a bandeira do ecohumanismo é mais abrangente do que a do ecofeminismo. Este último é um passo importante e necessário na luta pela preservação da Natureza para as futuras gerações, mas não é o objetivo final. A luta será vencida quando homens e mulheres se conscientizarem do mea culpa e se reconhecerem opressores. Este é o primeiro passo para a mudança em relação a si mesmo, ao outro, à sociedade e à Natureza.
Notas:
[1] Carl Gustav Jung foi um psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, também conhecida como psicologia junguiana.
[2] David Joseph Bohm foi um físico quântico norte-americano. Viveu no Brasil onde ocupou uma cátedra em Física na USP. Em 1955 mudou-se para Israel, onde ficou dois anos e conheceu sua esposa Saral, que teria papel importante no desenvolvimento de suas ideias. Em 1957 mudou-se para a Grã-Bretanha. Obteve uma bolsa de pesquisa na Universidade de Bristol até 1961, quando se tornou professor de Física Teórica na Universidade de Londres, onde ficou até sua aposentadoria em 1987.
Fuente: Instituto Humanitas Unisinos