A Venezuela Profunda e as contradições da Revolução Bolivariana
"Uma das melhores expressões do que denominamos Venezuela Profunda e que emanou dessa verdadeira revolução democrática porque passa a Venezuela é o reconhecimento na Constituição de 1999 dos direitos indígenas, direitos esses até então ignorados no país.. Todavia, todo esse processo não tem sido capaz de impedir os conflitos envolvendo as populações indígenas, em particular as que tradicionalmente habitam a região do lago Maracaíbo, no estado de Zulia envolvendo diferentes povos como os Yukpas, os Bari e os Wayuu."
Por Carlos Walter Porto-Gonçalves(1)
A eleição de Hugo Chávez Frias para presidente da Venezuela, em 1998, surpreendeu a todos, inclusive aos que lançaram sua candidatura. De certa forma, aconteceu na Venezuela algo parecido com o que ocorrera no Brasil com a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989. Não que Collor e Chávez sejam iguais. Ao contrário, estão em campos opostos, sobretudo quanto às suas posições com relação ao imperialismo. Na verdade, os blocos de poder tradicionais na América Latina ao aderirem ao Consenso de Washington e todo o conjunto de políticas de estado mínimo para o povo (e máximo para o capital) acabaram por dar um tiro nos próprios pés ao desmontarem os mecanismos tradicionais de dominação. Sendo assim, muitos governos não conseguiram se apresentar como alternativa às intensas lutas sociais que se desencadearam na região contra as políticas neoliberais que, inclusive, tiveram seu início na própria Venezuela, com o dramático 27 de fevereiro de 1989 quando milhares de venezuelanos foram massacrados nas ruas de Caracas ao protestarem contra medidas antipopulares do governo neoliberalizado de Carlos Andrés Peres. O episódio ficaria conhecido como Caracazzo. Desde essa época mais de uma dezena de governos eleitos democraticamente caíram na América Latina não mais por golpes de estado, mas sim por mobilizações de rua contra as políticas neoliberais antipopulares. Destaque-se, ainda, que duas grandes marchas cortaram a Bolívia e o Equador em 1990 trazendo à cena política o protagonismo dos povos indígenas que passariam a ter um papel de destaque na nova etapa que desde então se inaugura na América Latina. Sendo assim, se para muitos o ano de 1989 tem a marca da queda do muro e aparece como a vitória, ainda que parcial, do neoliberalismo, na América Latina o ano de 1989/1990 marca o início de um novo padrão de conflitividade onde essas políticas neoliberais começam a perder a legitimidade como o demonstram os inúmeros governos derrubados a partir de mobilizações callejeras.
Será ainda na Venezuela que um novo deslocamento político com implicações continentais ocorrerá com a eleição de Hugo Chávez Frias em 1998. Desde então, inúmeros outros governos se elegeram pela esquerda se beneficiando destas amplas mobilizações populares que foram, pouco a pouco, minando o consenso neoliberal.
A eleição de Hugo Chávez acabou por propiciar que uma Venezuela Profunda ganhasse a cena política colocando uma série de demandas sociais, econômicas e políticas. Hoje, 46% do orçamento do governo venezuelano destinam-se a fins sociais com várias missões de saúde, educação, assim como na área da produção. Nenhum país da América Latina tem um orçamento com esse perfil. Até mesmo uma reforma agrária, ainda que tímida diante das necessidades, vem sendo implementada. Todavia, há um núcleo de poder na Venezuela que, tudo indica, se mantém incólume e que impede que o socialismo de século XXI, tal como o Presidente Hugo Chávez com certa razão propugna, se liberte dos fantasmas do socialismo do século XX. Trata-se do setor de mineração, em particular do petróleo, que dá ensejo a gestores estatais que manipulam com certa maestria o discurso nacionalista. Segundo dados de 2008, aproximadamente 92% das divisas do país advêm do petróleo, recursos esses que vêm financiando o mesmo projeto desenvolvimentista de abertura de estradas, portos e de plantas energéticas, inclusive hidrelétricas. Para isso, o governo Chávez vem abrindo espaço para investimentos de empresas transnacionais como a Vale do Rio Doce, a Norberto Oderbrecht e uma série de outras empresas com capitais de origem russa, francesa, chinesa e, até mesmo, estadunidense. Tal como o Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC de Lula da Silva, na Venezuela se põe em prática toda uma logística de apoio a IIRSA – Iniciativa de Integração Regional Sul Americana. Como é sabido, a IIRSA foi proposta no ano 2000 por FHC como a base material necessária para implementar a ALCA. O que merece atenção é que governos que numa das mãos se mostram críticos da ALCA com a outra realizam a sua base material com pesados investimentos numa integração continental que, na prática, vem ensejando enormes conflitos sociais.
O significado político e social desse fato é muito mais importante do que o seu significado econômico, ainda que os dois estejam associados. É que há um núcleo de poder que se estrutura a partir do estado venezuelano que detém o monopólio da extração mineral e que a partir daí se arvora em guardião dos interesses nacionais ignorando a complexidade da nação que emana da própria revolução bolivariana. Uma das melhores expressões do que denominamos Venezuela Profunda e que emanou dessa verdadeira revolução democrática porque passa a Venezuela é o reconhecimento na Constituição de 1999 dos direitos indígenas, direitos esses até então ignorados no país. Até mesmo uma Lei Orgânica dos Direitos dos Povos Originários foi promulgada onde se especificam os direitos desses povos aos seus territórios, além de um Ministério para os Povos Indígenas e do governo ter firmado o importante Convênio 169 da OIT, com o apoio do Congresso. Todavia, todo esse processo não tem sido capaz de impedir os conflitos envolvendo as populações indígenas, em particular as que tradicionalmente habitam a região do lago Maracaíbo, no estado de Zulia envolvendo diferentes povos como os Yukpas, os Bari e os Wayuu. Ali, o governo Hugo Chávez vem encontrando dificuldades em se posicionar diante do núcleo duro do estado venezuelano, ou seja, com o setor de mineração envolvendo os próprios militares. É que aqueles povos indígenas habitam a Serra de Perijá onde são grandes os interesses e as concessões históricas do estado venezuelano a empresas transnacionais de exploração mineira (carvão, urânio), concessões essas que não foram anuladas pelo governo atual. Ali, uma equivocada política de demarcação de terras em ilhas de inspiração estadunidense, muito semelhante a que a direita e os militares brasileiros defendiam diante de Raposa Serra do Sol, vem impedindo que a luta daqueles povos por seus territórios ancestrais seja, enfim, reconhecida. Fazendeiros ocupam terras indígenas e embora o Presidente Chávez tenha declarado explicitamente que “entre hacendados (fazendeiros) e indígenas, ese gobierno está con los índios”, posição que nos parece correta, se mostra, porém insuficiente. Isto porque o verdadeiro teste revolucionário de um socialismo para o século XXI exigiria que, além disso, o governo pudesse dizer que “entre as empresas de mineração e os indígenas ese gobierno está con los indígenas”. Aí, sim, estaríamos diante de uma verdadeira revolução que sabe respeitar a quincentenária r-existência dos povos originários e incorporar a diversidade de cores que reconheça que o socialismo do século XXI terá as cores da Wyphala, isto é, o complexo de cores do arco-íris da bandeira dos povos originários da Bolívia. A revolução bolivariana corre o mesmo risco de perder sua legimitidade ao não compreender a legitimidade histórica da luta desses povos, tal como os sandinistas se fragilizaram por sua incompreensão com relação aos indígenas miskitos.
O que surpreende no caso da luta dos povos Yukpas, Bari e Wayuu na bacia do Lago Maracaibo é o silêncio da direita que poderia tomar esse caso para brandir seu anti-chavismo inconsistente, posto que golpista e midiático. Todavia, a direita também é racista, latifundiária e tem interesses na exploração mineira da Serra de Perija, daí o seu silêncio cúmplice, o que nos mostra que na Venezuela há algo muito mais profundo que a polarização entre a direita e o chavismo, conforme a mídia por aqui tanto alardeia.
Todo apoio à luta dos povos Yukpas, Bari e Wyuu na Serra do Perijá!
Pela liberdade do Cacique Sabino da comunidade de Chaktapa, revolucionário que se reivindica chavista, que está injustamente preso por defender a demarcação dos territórios ancestrais!
Por um socialismo com as cores de Wyphala!
(1) Doutor em Geografia. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq – Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Pesquisador do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Membro do Grupo de Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da Cidade do México. Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004 e do Prêmio CREA-RJ de Meio Ambiente de 2009. É autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais.