A vida pela floresta: Chico Mendes sob o olhar de um seringueiro Sem Terra
O ano era 1978. Pedro Sebastião da Rocha, recém chegado ao Acre, escuta batidas na porta. Na casinha que vivia com a família em Brasiléia ele recebe, pela primeira vez, a visita de dois homens até então desconhecidos: Chico Mendes e Raimundo de Barros. Ali começava uma amizade construída na luta em defesa dos trabalhadores e trabalhadoras da floresta amazônica.
Muita dó/ no pio da jaó/ Bem-te-vi viu primeiro/ Tratou de avisar o mundo inteiro
só não pode evitar/ que um golpe traiçoeiro/ derrubasse o mais forte seringueiro
(O Seringueiro/Zé Geraldo)
Natural de Jaguaretema (CE), Pedro sempre trabalhou na roça. Em 1971, assim como muitos brasileiros e brasileiras, saiu de seu estado natal para tentar a vida “no sul”. Foi metalúrgico em São Bernardo do Campo (SP) e viu explodir as grandes greves operárias. Viveu em São Paulo por sete anos até resolver se “aventurar em busca de terra”. Chegou ao Acre no dia 20 de setembro de 1977, com a esposa, Dona Alberina e a filha mais velha. Nos 12 anos que viveram em terras amazônicas vieram outros três filhos.
Agora, aquele Pedro Rocha seringueiro, é o nosso Pedro Xapuri, Sem Terra, que fincou raízes no Assentamento 17 de Abril, em Restinga (SP). “Estou assentado há 20 anos já e agora enraizei mesmo de verdade. Agora não tem mais jeito”. E foi numa tarde quente de Ribeirão Preto que ele nos contou, empolgado, mais uma vez essa história.
“Eu participava das comunidades de base (CEBs), fiz curso com o Leonardo Boff e o Clodovir Boff, irmão dele. Foi aí que eu fui dar uma clareada na questão política. Aí me aparece o Chico mais o Raimundo Barros e me falam da Reforma Agrária, me falam do Socialismo, me falam da questão política. O Chico foi a primeira pessoa que me falou de Socialismo. Chico me convidou para ser associado no sindicato de Xapuri. Eu já tinha me associado no sindicato de Brasiléia, que o presidente era o finado Wilson (Wilson Pinheiro, assassinado em 21 de julho de 1980, na sede do sindicato), aí eu falei ‘então vamos fazer essa luta aqui. Isso aqui não pode ficar do jeito que tá’. Ele já era vereador pelo MDB e queria melhorar o sindicato. Ele era muito preocupado com a questão dos seringueiros”.
A prosa segue animada e seu Pedro vai emendando várias histórias. Infelizmente não cabem todas aqui.
“Quando nós assumimos, o sindicato era novo, mas tinha 3.000 sócio inscritos, mas uma base de 250 sócios atualizados. A nossa luta começou puxando por aí. Chama Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e agregava os colonos, posseiros, iam todos os trabalhadores. A gente só não aceitava os colonos que tinham acima de 200 hectares; de 200 hectares para baixo era considerado pequeno produtor que trabalhava nas suas colocações”.
- Colocações, seu Pedro?
“Sim. Colocação é como a gente chama a área que pertence ao seringueiro. Normalmente ela é dividida em três estradas de seringa.”
O Brasil vivia um período de ditadura militar. As grandes obras de infraestrutura ganhavam espaço no plano econômico, assim como a concessão de terras da região Norte para grandes latifundiários do Sul. A mata nativa foi sendo derrubada e no seu lugar entravam, principalmente, as pastagens.
“A gente tem que entender que na década de 70 os militares que estavam no poder queriam destruir a Amazônia. Eles tinham tido um exemplo negativo com a Guerrilha do Araguaia e a Guerra do Vietnã na questão da floresta. Eles não queriam que a floresta permanecesse em pé. Não queriam correr esse risco de formar grupos guerrilheiros que conhecessem a floresta. Foi aí que os fazendeiros do Sul, com muito dinheiro e apoio do governo, foram comprando áreas de grandes seringais na Amazônia e expulsando os seringueiros para as periferias das cidades ou então para dentro da Bolívia. Mas teve muito seringueiro que resistiu. Então o sindicato começou a organizar os empates”.
Com o combativo sindicato de Brasileia, os seringueiros construíram uma forma nova de resistência às derrubadas da floresta: os empates. Quando uma colocação estava ameaçada pela ação de um fazendeiro, os trabalhadores e trabalhadoras se juntavam para impedir os desmatamentos, colocando seus corpos entre as árvores e os peões com suas motosserras.
“A gente fez muito empate nessa floresta. Seringueiro é muito solidário. Mas a nossa luta não era muito conhecida fora da Amazônia. Então a gente organizou um encontro dos seringueiros em Brasília (Encontro Nacional dos Seringueiros, realizado em 1985) e viu a necessidade de criar o Conselho Nacional dos Seringueiros. Começamos a discutir também as reservas extrativistas, porque essas áreas eram disputadas também por causa da madeira. Onde tem madeira gera dinheiro, então tem muita intervenção. O projeto que a gente queria era de preservar a floresta e dela tirar nosso sustento. Na floresta você tem açaí, castanha, seringa e tantas outras coisas que dão renda para as pessoas que estão lá dentro. Quando eu cheguei no Acre fiquei muito entusiasmado de ver aquela terra bonita, vermelha, aquelas árvores monstro, as castanheiras na beira da estrada, dessa grossura assim, uma copa incrível de grande… aí eu fiquei todo animado”.
Se no âmbito nacional a defesa da Amazônia e a luta dos serigueiros ainda era invisibilizada, no plano internacional ela começou a ter eco, muito por conta da atuação das ONGs. Pedro Xapuri acompanhava de perto tudo o que estava acontecendo. “O Chico se tornou uma referência muito grande rapidamente porque tinha muitas pessoas, alguns ambientalistas, que iam conhecer a floresta, que apoiavam a luta, por isso ele começou a ter um conhecimento muito internacional. E se expandiu muito quando ele foi convidado para ir para os Estados Unidos para participar de uma reunião do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento, em 1987). Lá ele fez uma denúncia do desmatamento da floresta e a questão do financiamento para a construção das estradas na Amazônia, que aumentavam a destruição. Depois ele ganhou o Prêmio Global 500, que é um prêmio muito importante da ONU (de preservação ambiental). Aí choveu de repórter e ambientalistas querendo conhecer. Já levaram ele para a Europa e aí ele foi se destacando. Na época ele era o presidente do sindicato de Xapuri e era muito visado.”
A luta dos seringueiros, os empates e a defesa da floresta despertavam a ira dos fazendeiros. No final dos anos 80 havia uma lista dos cabras marcados para morrer. Chico Mendes era um deles. As ameaças de morte se tornaram mais constantes e ele passou a ter a segurança feita, primeiro pelos companheiros, depois pela polícia federal e, por fim, pela polícia militar.
- Mas, seu Pedro, mesmo com todas as ameaças ele não quis sair de Xapuri?
“Não. Ele foi chamado em Brasília, foi procurado pelo governo do estado, até fazendeiro ofereceu novilha e pasto para ele deixar a luta. Mas o Chico falou: ‘o meu problema não é 100 novilhas e nem o pasto para criar elas. Meu problema é eles mesmo, os seringueiros e eu não vou fugir dessa luta por causa disso’. E aí os caras foram vendo que ele era um cara que não se vendia… o que a gente tem que entender é o seguinte: o sistema capitalista é desse jeito; a cooptação vem e se a pessoa aceita, tá legal, tá do lado deles. Mas se eles não conseguem cooptar, então o cara é um inimigo do sistema. Então a saída nem é prender. É matar e foi isso o que eles fizeram”.
Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, camarada de luta do seu Pedro, foi assassinado no dia 22 de dezembro de 1988, no quintal de sua casa, em Xapuri. “Acertaram o Chico quando ele abriu a porta da cozinha para ir tomar banho. O banheiro ficava do lado de fora da casa. A Alberina foi a pessoa que ouviu as últimas palavras do Chico. E ele falou: ‘Puxa, vida. Me acertaram’. Ajudei a colocar o Chico dentro da cabine do caminhão, mas ele morreu no caminho do hospital. Nos meus braços”.
Trinta anos se passaram. Pedro Rocha não pode mais continuar na Amazônia. Voltou para São Paulo, virou Pedro Xapuri, dirigente do MST. Mas a lembrança e o legado de luta do amigo continuam vivos num quadro na sala de casa e na memória do ex-seringueiro.
“Depois da morte do Chico apareceram muitas pessoas, principalmente ambientalistas, defensores da natureza. É importante, mas não adianta só a gente defender a natureza, tem que defender o ser humano que é quem tá em cima dela. O Chico era um defensor dessa relação das pessoas com a floresta. Nas reuniões ele falava que se qualquer um de nós tombar, a luta tem que continuar, não pode parar. O Chico é um exemplo de honestidade, um camarada que não traiu os trabalhadores e que tinha consciência daquilo que ele estava fazendo. Admiro muito porque ele era um cara muito inteligente. O Chico abriu as portas para que a questão da Amazônia fosse vista”.
Hoje, aos 73 anos, seu Pedro se considera “um tijolo na construção da sociedade; não pode deixar se quebrar, tem que continuar vivo, inteiro, para poder a construção continuar.”
No final da prosa ele contou que já estava de malas prontas, rumo ao Acre, para as homenagens nos 30 anos do assassinato do parceiro de empates e para reencontrar o camarada Raimundo Barros.
- Colaboração Frederico Firmiano e Julia Gimenez.
- Editado por Rafael Soriano.
Fonte: MST - Brasil