A vacina não é suficiente
Pesquisas internacionais mostram que para enfrentar a covid-19 é preciso fortalecer a prevenção primária da doença.
São diversas e qualificadas as pesquisas internacionais que explicam porque, a partir do estudo das origens sociais e ambientais das doenças que se agregam aos vírus, deveríamos falar de sindemia e não de pandemia.
Essas pesquisas também mostram como para a covid-19 a vacina não será suficiente, porque deve ser fortalecida a prevenção primária (enquanto muitos, de forma oportunista, preferem falar sobre o diagnóstico precoce). Antes de tudo, é preciso criar uma nova relação entre o campo e a cidade, afirmar uma ideia diferente de agricultura, questionar radicalmente em toda parte o desmatamento, as monoculturas genéticas e a pecuária industrial.
O texto que segue é de um médico, clínico geral, que trabalhou em um dos melhores hospitais públicos italianos, com experiência em medicina territorial e que luta com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil:
Sou um médico aposentado. Trabalhei muitos anos no Hospital Niguarda de Milão, um dos mais completos e melhores hospitais públicos italianos, graças também às grandes lutas pela saúde dos anos 1970, que ajudaram a humanizar e modernizar os hospitais na maior parte da Itália.
Nos últimos cinco anos de atividade médica, eu quis ter, também, a experiência de trabalhar como médico de família, buscando compreender o modo de vida e as razões das doenças daquelas pessoas. Estas questões, muitas vezes eram pouco consideradas no hospital, também, (mas não só) pela urgência de dar uma resposta terapêutica.
Queria partilhar e compreender as respostas dadas pela “medicina local”, de cuja deficiência se fala muito hoje, muitas vezes com hipocrisia, porque, com o progressivo desenvolvimento da indústria da saúde, nos últimos cinquenta anos tem sido os hospitais públicos e privados os lugares onde circulam muito dinheiro e grandes fatias de poder na área da saúde. Portanto, esses espaços foram e são fundamentais para a manutenção do sistema.
No início dos anos oitenta, com a atividade política e sindical, tive a sorte de conhecer outros setores e operadores da Saúde, em particular na Psiquiatria (democrática) e medicina do trabalho, o que me abriu a mente para a relevância absoluta dos fatores ambientais e sociais como causas de muitas doenças.
Comecei, então, a ouvir falar de prevenção, a primária, a única verdadeira. Não aquela secundária, que é a prevenção como tantos "industriais" do setor saúde definem o diagnóstico precoce.
Tive outra grande sorte que foi, nos últimos vinte anos, conviver longos períodos nos acampamentos dos camponeses do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil - MST (e também em outros países latino-americanos) mantendo, ainda, relações contínuas com realidades de pequenos agricultores na Itália.
Através deles fui compreendendo, gradualmente, os graves danos diários representados pela produção e consumo de alimentos industriais para a nossa saúde e para a saúde do Planeta (alimentos industriais determinam cerca de 50% das emissões de gases de efeito estufa).
Desde o início da pandemia de covid-19, com os outros amigos do Comitê Amigos MST Itália, refletimos sobre as causas desta pandemia, tendo bom conhecimento acerca da cadeia de produção da pecuária intensiva (que também se baseia no desmatamento de todas as florestas brasileiras) e a expansão massiva das monoculturas transgênicas - OGMs - para a produção de forragens (soja, milho, etc.), que são exportadas para a Europa e a China.
Como Comitê, portanto, escrevemos um breve texto: “Por um mundo sem pandemias, uma nova relação com o Planeta. Reforma Agrária Ecológica já!"
A partir da análise da situação no Brasil e na Itália, buscamos entender as reais causas do spillover (Spillover significa "salto interespecífico", o momento em que um patógeno passa de uma espécie hospedeira para outra, neste caso do virus para o homem) e da infecção humana com novos vírus (mais recentemente covid-19): desmatamento, fazendas industriais, uma crescente urbanização insustentável e megacidades horríveis ao redor do mundo.
Em seguida, destacamos como esses vírus afetam e são letais, especialmente para as pessoas com uma ou mais doenças crônicas, (como ocorre cada vez mais na Itália), com maior número de mortes entre os idosos, e entre pessoas que "tinham" de respirar ar ruim, como no Vale do Pó, o pior ar da Europa Ocidental.
Nos últimos meses, dominados pelo medo, semeado pelo bombardeio da mídia e pelas medidas apenas emergenciais, tem havido pouco espaço, mesmo nos jornais de esquerda, para falar sobre causas reais e medidas eficazes.
Nos últimos dias, dois textos extremamente importantes foram destaques para mim:
O artigo Offline: covid-19 não é uma pandemia de Richard Horton, editor-chefe da Lancet (uma das revistas médicas internacionais mais importantes e a apresentação por um pesquisador brasileiro, de um livro de Rob Wallace, Dead Epidemiologists: On the Origins of Covid-19)
Vale a pena lê-los na íntegra, ambos contam e fazem considerações pouco conhecidas.
O artigo de Richard Horton é revolucionário, especialmente na linguagem.
Entre outras coisas, Horton escreve:
Duas categorias de doenças que interagem em populações específicas: infecção com síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (Sars-CoV-2), e uma série de doenças não transmissíveis (NCD). Essas condições estão agrupadas em grupos sociais, segundo modelos de desigualdade profundamente enraizados em nossas sociedades. A agregação dessas doenças, em um contexto de disparidade social e econômica, agrava os efeitos negativos de cada doença individual.Covid-19 não é uma pandemia. É uma sindemia.
O autor então explica como as sindemias são caracterizadas por interações biológicas e sociais que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa a danos a sua saúde.
Norton escreve:
A consequência mais importante de ver a covid-19 como uma sindemia é enfatizar suas origens sociais. A vulnerabilidade dos idosos; Comunidades negras, asiáticas e de minorias étnicas; e trabalhadores-chave, geralmente mal pagos e com menos proteção social, apontam para uma verdade até então dificilmente reconhecida, ou seja, que não importa quão eficaz seja uma terapia ou quão protetora seja uma vacina. Uma solução puramente biomédica para covid-19 falhará ... Considerar covid-19 uma sindemia levará a uma visão mais ampla, incluindo educação, emprego, habitação, alimentação e meio ambiente ...
Em artigo do manifesto de 20 de novembro, Paolo Vineis, professor titular de epidemiologia do Imperial College London e vice-presidente do Conselho Superior de Saúde, compartilhou essa análise e propôs estudar a transmissão de doenças com uma lente mais complexa do que a dominante no mundo médico, que busca a origem das patologias principalmente nas alterações moleculares:
“Covid-19 abriu nossos olhos para o fato de que a saúde e a doença vêm de longe, dependem da sociedade e de sua estrutura produtiva. O vírus nos convenceu da necessidade de um olhar mais complexo para as doenças ”.
A apresentação do pesquisador brasileiro Allan Rodrigo de Campos Silva (Universidade Estadual de Campinas-São Paulo) da edição brasileira do livro de Rob Wallace, Dead Epidemiologists: On the Origins of Covid 19 (O Fim dos Epidemiologistas: Sobre as Origens da Covid-19), aprofunda-se nas origens ambientais do vírus, a partir da “globalização das práticas predatórias do agronegócio, mais precisamente na agricultura intensiva, hoje caracterizada por um verdadeiro sistema de produção patogênico integrado à criação de suínos e frangos”.
Wallace remonta o surto de Ebola na África em 2013, quando:
O desmatamento das plantações de palmeiras para a produção de óleo (um ingrediente essencial para a produção de alimentos industrializados) teria atraído populações de morcegos, repositórios naturais de diversos vírus, como o Ebola, em direção às plantações de palmeiras, aumentado assim a interface entre trabalhadores rurais e os potenciais vetores de contágio da Ebola. Por outro lado, a produção de novas periferias urbanas em interface com o ambiente rural tem garantido a manutenção de um grupo de humanos suscetíveis. Ao mesmo tempo, a grilagem (landgrabbing) e o agronegócio expropriam as populações e destroem áreas florestais, zonas úmidas e cursos de rios, eliminando assim, barreiras ecológicas para a dispersão de patógenos.
Segundo Wallace, a agricultura intensiva hoje desempenha um papel fundamental na proliferação de vários patógenos, como vírus e bactérias.
O sistema de monocultura genética de animais reduz a resistência imunológica a vírus e bactérias e é capaz de contaminar celeiros, fazendas e regiões inteiras, levando em muitos casos abates sacrificiais em massa para evitar que um surto incipiente se espalhe por uma região ou até pelo planeta inteiro.
As grandes empresas já sabem disso há algum tempo, mas mesmo os investimentos em biotecnologia e biosegurança não parecem ser capazes de evitar a proliferação de epizootias nos próprios celeiros de abate ao redor do mundo.
E os vírus, com suas mutações contínuas, podem em algum momento encontrar um caminho de infecção em humanos.
Enquanto isso, com a destruição de áreas úmidas em todo o planeta, drenadas para formar campos de cultivo, bandos de aves passam a forragear em meio às sobras das fazendas de grãos, cana-de-açúcar, entre outras, aumentando a interface entre aves migratórias selvagens e aves de criação...
Wallace investiga as origens do Sars-Cov-2 nos meandros dos circuitos regionais de criação de animais no Sudeste da China em interface com a pressão e a degradação ambiental .
Desde as anos 1990, a neoliberalização da economia do país transformou radicalmente as paisagens agroecológicas da China, tornando todo o Sudeste da China um epicentro para a produção de novos patógenos, "um percurso que o Brasil imita a todo custo".
Em outra entrevista recente, Wallace lembrou como as vacinas podem ser úteis, mas devem ser tomadas medidas para que à covid-19 não siga a covid-20, covid-21….
Mas tudo isso é negado pelo agronegócio internacional, como escreve a economista Lucile Leclair no artigo Em nome da Biossegurança no Le Monde Diplomatique - Novembro 2020.
Muito dependerá da consciência e das escolhas de quem mora na cidade: de quem compra a comida todos os dias; da aliança com os pequenos agricultores e contra o agronegócio, que quer destruí-los por completo. Sem dúvida, o consumo de carne mundial deve ser reduzido.
Na Itália, devemos denunciar veementemente que as grandes fazendas de suínos (em média 3-4 mil em cada fazenda nas províncias de Brescia, Cremona, Parma e Reggio) que tornam muito ruim o ar em todo o Vale do Pó e causam grande parte das doenças crônicas dos habitantes fazendo-os mais suscetíveis a infecções, como mostrou a covid-19.
Exigir o fechamento de fazendas desse tamanho pode ser uma grande luta global, feita com uma aliança entre pequenos agricultores e cidadãos consumidores.
*Antonio Lupo, médico, faz parte do Comitê Amigos Sem Terra Italia
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito e Rodrigo Chagas
Fonte: Brasil de Fato