A resistência da indústria de alimentos pode custar caro. Para ela e para nós
Pesquisadores depositam na conta das corporações a inércia política das últimas décadas e cobram adoção de um tratado global para frear danos à saúde e ao ambiente.
A resistência da indústria de alimentos em aceitar a adoção de medidas para proteger a saúde pública custa caro para nós, como sociedade. Obesidade e desnutrição são dois dos maiores causadores de mortes no planeta, em especial nos países de média e baixa renda. Os custos ficam na casa dos trilhões de dólares ao ano.
Mas a atuação contrária das corporações pode sair pela culatra. Pelo menos é essa a vontade de um grupo de pesquisadores reunidos em um comitê da revista Lancet para analisar a sinergia entre obesidade, desnutrição e mudanças climáticas. Para eles, a demora dos Estados em adotar políticas públicas é motivo para propor um tratado global nos moldes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.
“Uma fonte fundamental de inércia política relacionada a enfrentar a obesidade e as mudanças climáticas são os interesses ocultos por atores comerciais cujo envolvimento em políticas frequentemente constitui um conflito de interesses que confronta o bem público e a saúde planetária”, resume o estudo publicado por eles essa semana.
“Uma Convenção-Quadro em Sistemas Alimentares proveria o comando e a estrutura legal global para os países agirem na melhoria de seus sistemas alimentares para que se tornem motores para uma melhor saúde, sustentabilidade ambiental, maior equidade e prosperidade.”
Essa resistência se torna mais e mais evidente mundo afora. No Brasil, empresas como Nestlé, Danone, Coca-Cola e Unilever lutam contra a adoção de um sistema de rotulagem que ajude a informar o consumidor sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras. Em outra frente, as empresas de refrigerantes pelejam para manter subsídios bilionários.
O relatório cita especificamente o caso do México. Lá, as empresas conseguiram desvirtuar a política sobre rotulagem, adotando um modelo comprovadamente ineficaz. Também conseguiram enfraquecer o imposto especial sobre bebidas açucaradas, mas não a ponto de torná-lo inútil: estudo publicado recentemente mostra o bom funcionamento da medida.
Alejandro Calvillo, um dos autores do estudo e diretor da ONG mexicana El Poder del Consumidor, diz que há uma tensão inerente entre a necessidade das empresas de aumentar o lucro e a necessidade da saúde pública de frear a venda de alimentos ultraprocessados. “É muito claro que são entidades, que há escutá-las, mas não podem participar na definição de uma política, nem no monitoramento e na avaliação. O que vimos é que a indústria tem um conflito de interesses. O interesse é o lucro”, resume.
Rompendo o isolamento
Quem acompanha as discussões sobre alimentação no Brasil vê no relatório uma abordagem familiar. Em vez de falar de nutrientes ou de alimentos isoladamente, o documento aborda claramente sistemas alimentares, ou seja, olha para os entrelaçamentos sociais, econômicos e ambientais da produção de comida.
Assim, a maneira como o desenho das cidades rouba tempo das pessoas, que poderiam comer melhor, é um tema. Também é um tema a maneira como as cidades criam políticas de incentivo a hortas urbanas. A conexão entre produtores rurais e alimentação escolar. E como questões étnicas e de gênero afetam a alimentação: essa é, aliás, uma lacuna apontada pelos pesquisadores quanto à necessidade de mais trabalhos científicos.
Os autores do estudo dizem haver uma Sindemia Global, ou seja, a união de dois ou mais fatores que afetam a saúde. O termo já havia aparecido em entrevista publicada pelo Joio no ano passado com Boyd Swinburn, professor da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e coordenador do comitê criado pelo Lancet.
“Há um enorme impulso da OMS e da sociedade civil, de acadêmicos, de formuladores de políticas públicas. Mas também há uma enorme reação da indústria de alimentos. Eles têm bolsos muito profundos e habilidade para converter poder econômico em poder político para garantir que as políticas implementadas não prejudiquem seus lucros. Isso é o que temos no momento”, ele nos disse.
Swinburn foi um dos primeiros pesquisadores a alertar para o papel que o ambiente exerce no aumento dos índices de obesidade – o que ele classificou como “ambiente obesogênico”. O novo estudo reforça essa questão, afirmando que segue a haver uma visão de que o obeso é “estúpido, feio, infeliz, incompetente, preguiçoso”. Essa interpretação do problema como uma responsabilidade individual é uma grande trava no debate público a respeito.
No mesmo sentido, o relatório chama atenção para o raciocínio neoliberal e a maneira como os Estados se desestruturaram nas últimas décadas, em paralelo ao crescimento dos índices de obesidade e ao agravamento das mudanças climáticas. Para os pesquisadores, esse sistema de governança retirou proteções sociais e provocou perda de renda e de condições de vida – todos, fatores que afetam a alimentação. “Os sistemas atuais permitem ou incentivam a privatização dos lucros e a socialização dos custos da Sindemia Global.”
Um exemplo claro é a indústria de combustíveis fósseis, que, segundo o relatório, recebe cerca de US$ 5 trilhões ao ano em subsídios estatais. Os danos sociais, ambientais e econômicos causados por esses produtos estão bem estabelecidos.
O modelo corporativo atual, colocando o lucro acima de qualquer questão, precisaria ser drasticamente alterado para passar a contemplar os custos ambientais e sociais da atividade. Sem esperança de que as empresas façam isso de bom grado, os pesquisadores apontam maneiras de garantir que o lucro esteja condicionado a essas preocupações. Também nesse aspecto o relatório não adota a narrativa típica de que ações individuais farão a roda girar no sentido contrário: o mais efetivo é garantir que organismos multilaterais apresentem mais exigências às corporações.
“Há necessidade de uma política integral. Não ter separadas as linhas de agricultura, saúde, educação, economia. Tem que haver uma visão conjunta, que essas políticas se encaminhem até sistemas alimentares sustentáveis”, complementa Alejandro Calvillo.
Linhas divisórias
“As empresas precisam ser parte da solução” é uma das frases que mais ouvimos nas discussões sobre que diabos fazer com o problema da alimentação humana. No geral, essa declaração traz a ideia de que essas corporações não podem ser criminalizadas, apontadas como responsáveis pelo problema.
O novo estudo traça uma clara linha divisória. Sim, empresas podem ser parte da solução. Mas corporações que são mais fortes que os Estados e as sociedades são a grande causa do problema. Em vez disso, criar sistemas que valorizem pequenas e médias empresas é um dos caminhos para melhorar a situação. Além disso, como se sabe, circuitos curtos de consumo têm menos impacto ambiental ao exigir menores deslocamentos.
O relatório ataca outra linha de argumentação repetida: “Não existem alimentos bons ou maus”. O documento é enfático nos danos causados pelos ultraprocessados à saúde e ao meio ambiente. Ou seja, esses produtos são ruins não apenas porque têm um monte de sal, açúcar e gordura, mas porque são feitos de commodities baratíssimas que estão por trás de desmatamento, emissão de gases nocivos e deslocamento de povos tradicionais.
Para ficar no caso brasileiro, soja, milho, açúcar e derivados são presença constante em ultraprocessados. São cultivos responsáveis por concentração de terra, desmatamento, remoção de pequenos agricultores e povos tradicionais, além de uso massivo de agrotóxicos.
“Ainda que a comida claramente seja diferente do tabaco porque é uma necessidade para a vida humana, produtos alimentícios e bebidas não saudáveis não são uma necessidade”: ou seja, assim como você pode viver sem cigarro, pode viver sem ultraprocessados.
Já se conhece há uma ou duas décadas uma ampla agenda de medidas que podem ser adotadas pelos Estados: restrições à publicidade de ultraprocessados, modelos de rotulagem que alertem sobre nutrientes em excesso, criação de impostos especiais sobre produtos nocivos à saúde. Mas, como as corporações têm lutado contra essas medidas, vem a sugestão de um tratado global que vincule os Estados a uma série de compromissos.
Os pesquisadores entendem que a primeira medida a adotar seria um paralelo com a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que veda a participação de empresas na tomada de decisão. O documento defende que nenhuma vantagem fiscal seja dada a corporações que causam problemas ambientais ou de saúde.