A crise dos sistemas alimentares tem o agronegócio em seu centro
Pequenos produtores alimentam 70% do mundo. Então, ¿por que o financiamento vai para a produção intensiva?
Em 2017, o povo de Zagora, no Marrocos, foi às ruas no que ficou conhecido como a “revolução da sede” para pedir água potável e o fim do uso excessivo de água pelas grandes empresas agrícolas. Em uma área já árida, com secas e ondas de calor frequentes devido às mudanças climáticas, grande parte do abastecimento de água disponível é usado para cultivar melancias para exportação para a Europa, resultando em um suprimento insuficiente, não confiável e não potável para a população local. Durante as manifestações, 23 pessoas foram detidas.
No Marrocos, irrigação para a agricultura consome quase 90% da água disponível anualmente. Essa extração intensa remonta ao período colonial, quando as autoridades francesas substituíram o khettara – um sistema de irrigação tradicional desenvolvido e administrado pelas comunidades locais – por estruturas de uso intensivo de água que permitem que a produção atenda à demanda dos mercados europeus.
A agricultura agora constitui quase 15% do PIB de Marrocos. A indústria recebe apoio substancial de bancos públicos de desenvolvimento, como o Banco Africano de Desenvolvimento e o Banco Mundial. Ambos os bancos apoiaram o Plano Marrocos Verde de 2008, que visava “explorar plenamente o potencial agrícola do país”. O plano favoreceu cultivos orientados para a exportação com altas necessidades de água, como melancia, tomate e frutas cítricas.
A crise hídrica do Marrocos não é um caso isolado. Em todo o mundo, a escassez de água e as crises alimentares estão sendo causadas por desastres causados pelo homem como as mudanças climáticas, o colonialismo e um modelo econômico extrativista – impulsionado por governos, empresas privadas e instituições financeiras de desenvolvimento – que aumenta a produtividade a qualquer custo e desconsidera os direitos das comunidades locais.
Agravada pela pandemia e pela subsequente crise econômica global, a escassez de água e alimentos atingiu níveis sem precedentes em dezenas de países, com produtores de pequena escala – especialmente mulheres – desproporcionalmente afetados. A situação é particularmente preocupante em países afetados por conflitos, como a República Democrática do Congo, Iêmen, Sudão do Sul, Afeganistão e Síria.
Em novembro de 2021, o diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos (PMA), David Beasley, alertou que “conflitos, mudanças climáticas e a Covid-19 [estão] aumentando o número de pessoas com fome aguda, e os dados mais recentes mostram que agora existem mais de 45 milhões de pessoas à beira da fome”.
É necessária uma ação urgente. No entanto, governos e bancos públicos de desenvolvimento (BPDs) continuam a permitir que grandes multinacionais estabeleçam a mesma agenda fracassada.
Bancos públicos de desenvolvimento
Os bancos públicos de desenvolvimento são atores-chave nos sistemas alimentares. De acordo com o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola, os BPDs investem cerca de US$ 1,4 trilhão por ano no setor agrícola e alimentar.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento, por exemplo, está considerando um empréstimo de US$ 43 milhões para a Marfrig Global Foods, a segunda maior empresa de carne bovina do mundo. A Marfrig e seus fornecedores estão ligados ao desmatamento ilegal na Amazônia brasileira, corrupção e abusos de direitos humanos.
Se o projeto for aprovado, os recursos públicos serão usados para expandir ainda mais a pecuária industrial – um setor que aumenta drasticamente as emissões de metano, o desmatamento e outras formas de poluição do ar e da água. De acordo com a campanha Divest Factory Farming, a agropecuária industrial é responsável por 14,5% das emissões de gases de efeito estufa. Apoiar a indústria de carne industrial mina o Acordo Climático de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU sobre ação climática e produção responsável.
Muitos bancos públicos de desenvolvimento também prestam consultoria e moldam as legislações estaduais. Em 2020, a Índia aprovou três projetos de lei agrícolas controversos seguindo as recomendações do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Em uma manobra surpreendente em novembro de 2021, o parlamento indiano votou para revogar essas leis, após mais de um ano de protestos em massa, nos quais centenas de milhares de pequenos agricultores realizaram comícios de tratores, bloquearam rodovias e acamparam na capital, Delhi. De acordo com organizações de agricultores locais, essas políticas teriam acabado com os mercados de proteção e forçado os agricultores locais a negociar preços com grandes corporações do agronegócio, como o Grupo Adani.
Cúpulas internacionais que tratam da fome no mundo também são ditadas por bancos públicos de desenvolvimento e interesses corporativos.
Em outubro de 2021, representantes de 500 BPDs se reuniram na segunda Cúpula de Finanças em Comum para “fortalecer o compromisso [dos bancos] com a recuperação pós-pandemia, o desenvolvimento sustentável e a agricultura”. Apesar dos bancos divulgarem seu foco em inclusão e sustentabilidade, povos indígenas, agricultores, pescadores, pastores, mulheres e outros membros das comunidades locais – que são os verdadeiros especialistas nessas questões – foram amplamente excluídos do evento.
Após outro fórum internacional de alto nível no ano passado, a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, centenas de organizações da sociedade civil, grupos de base, acadêmicos e especialistas da ONU criticaram a reunião por permitir que grandes nomes do agronegócio e corporações estabelecessem a agenda. Michael Fakhri, relator especial da ONU para o direito à alimentação, tuitou que a cúpula “deu as costas para aqueles mais impactados por sistemas alimentares falidos”. A cúpula, que incluiu o setor privado, representado pelo Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, cujos membros incluem Nestlé, Bayer e Tyson Foods, não tratou de problemas urgentes como o uso excessivo de pesticidas, concentração de terras ou abusos ambientais e trabalhistas por parte das empresas..
Precisamos de soberania alimentar
Soluções sustentáveis para a crise alimentar já existem, mas precisam de mais apoio. De acordo com um relatório do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), "Quem nos alimentará?", pequenos produtores fornecem alimentos para 70% do mundo, enquanto usam apenas 25% dos recursos.
Em vez de exacerbar a crise alimentar atendendo aos interesses das corporações do agronegócio, governos e bancos públicos de desenvolvimento deveriam apoiar projetos baseados no modelo agroecológico. De acordo com uma rede de grupos de base que se mobilizaram em torno da Cúpula dos Sistemas Alimentares, a agroecologia “incentiva a diversidade – de culturas, pessoas, métodos agrícolas e conhecimentos – para permitir sistemas alimentares adaptados localmente que respondam às condições ambientais e às necessidades da comunidade”. Isso inclui práticas como permacultura, agrofloresta, agricultura orgânica e agricultura biodinâmica.
Agricultores em toda a Ásia, muitos dos quais estão sofrendo alguns dos piores impactos das mudanças climáticas, oferecem um modelo para métodos agroecológicos que minimizam as emissões de gases de efeito estufa e são mais resistentes a desastres climáticos. Esses métodos incluem o uso de sementes tradicionais e mais resistentes, biofertilizantes e biopesticidas menos poluentes, sistemas de irrigação mais eficientes, fontes de energia mais limpas e evitar plantações de monoculturas.
Não podemos mais nos dar ao luxo de despejar bilhões em dinheiro público em projetos que exacerbam a dívida, as desigualdades, a pobreza e as mudanças climáticas. Aqueles que têm o poder e os recursos para moldar os sistemas alimentares e enfrentar as crises alimentares devem ouvir e aprender com as comunidades locais e os produtores de alimentos de pequena escala que têm as soluções para alimentar o mundo de forma sustentável.
Fuente: Open Democracy