Dossiê crítico da logística da soja
Somos cotidianamente bombardeados pela propaganda do AGRO tech e pop. O que dificilmente ganha o mesmo protagonismo midiático é o caráter monocultural da cadeia produtiva do agronegócio e sua inerente insustentabilidade. A soja – carro-chefe do agronegócio “moderno” – representou, junto com o milho, mais de 90% de toda a safra de grãos colhida no Brasil em 2020. Sua produção está essencialmente baseada na adoção de pacotes tecnológicos – com seus organismos geneticamente modificados, agrotóxicos, fertilizantes químicos e maquinário – controlados por um número reduzido de corporações transnacionais – como Bayer-Monsanto e ChemChina-Syngenta.
Apresentação
Celebrada como a expressão da modernidade no campo, essa tecnologia nem sequer pode reivindicar ser o principal motivo do aumento da produção da soja. Em 43 anos, a produção brasileira foi ampliada em 10 vezes, saltando de 12 milhões de toneladas (na safra 1976/77) para 124,8 milhões de toneladas (na safra 2019/20). Mas esses ganhos espetaculares de produção se devem em grande medida ao aumento de 5,3 vezes na área plantada de soja no Brasil no mesmo período: saindo de cerca de 7 milhões de hectares (na safra 1976/77) para quase 37 milhões de hectares (na safra 2019/20).
Nas mesmas quatro décadas, a produtividade média no país nem sequer dobrou [1].
Pode-se afirmar que a destinação de extensões cada vez maiores de terra ao cultivo da soja, em especial na fronteira agrícola da transição Cerrado-Amazônia e no Cerrado do Matopiba, foi o fator determinante para o aumento da produção brasileira no período. Além das evidentes consequências econômicas (perda de autonomia e diversidade produtiva e incremento da concentração de renda e desigualdades) e ambientais (desmatamento, contaminação, exaustão hídrica e erosão da biodiversidade), a apropriação privada da terra, a concentração fundiária e a violência no campo são a face mais perversa desse processo, também invisibilizada na propaganda do agronegócio. Quiçá o que permita a persistência desse modelo insustentável, e sua legitimação como se fosse inevitável e, pior, desejável, é o que a filósofa indiana Vandana Shiva chamou de “monoculturas da mente”.
Shiva defende que a uniformização e a diversidade não são somente padrões distintos de uso da terra, mas também padrões distintos de formas de pensar e viver. As monoculturas da mente e dos campos buscam a uniformização e rejeitam a diversidade. Elas se espalham com facilidade não porque produzam mais, mas porque permitem maior controle territorial sobre os corpos e as ideias [2].
A cadeia monocultural é um instrumento político que aprisiona outras formas de viver e produzir. Aprisiona também a nossa capacidade de pensar alternativas e de ter horizontes que nos apontem no sentido de outros caminhos ao “pensamento único” associado à racionalidade neoliberal – a que Shiva se refere como a “síndrome” do “não há alternativas”. Se, como afirma ela, as “monoculturas da mente fazem a diversidade desaparecer da percepção e, por consequência, do mundo” [3], o contrário também acontece.
As monoculturas no campo promovem em seu entorno sociedades que rejeitam a diversidade – conservadoras e até reacionárias. A concentração geográfica do êxito eleitoral de Jair Bolsonaro nos municípios com maior área plantada de soja talvez seja o maior testamento dessa relação. Ao mesmo tempo, até setores progressistas muitas vezes parecem ter dificuldade em imaginar um futuro para o país sem o domínio da economia do agronegócio e, dentro dela, da soja.
Uma das expressões das monoculturas da mente é aquilo que a socióloga argentina Maristella Svampa chamou de “consenso das commodities” [4], uma espécie de novo pensamento único na América Latina que teria sucedido o Consenso de Washington, aprofundando o histórico caráter primário exportador das nossas economias. Argumentamos aqui que, associado a este, encontra-se um consenso da logística: uma ênfase nas infraestruturas para a viabilização da extração e escoamento de commodities.
No caso do Brasil, a logística da soja tem estado no centro da agenda “pública” de infraestrutura nos últimos anos, em detrimento de alternativas com potencial de dinamizar outras economias e formas de viver e produzir. Divergir do “consenso”, mesmo que sem questioná-lo fundamentalmente, é considerado uma demonstração de ingenuidade ou irracionalidade.
No início de 2019, diante do processo de preparação de leilão para a concessão da Ferrovia Norte-Sul no trecho entre Uruaçu (GO) e Porto Nacional (TO), um procurador do Ministério Público propôs ao Tribunal de Contas da União a revisão do edital de modo a incluir a exigência de oferta de trens regulares de passageiros pela concessionária.
A proposta foi qualificada pelo Ministro de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, como “quixotesca” e “sem cabimento”: “O [procurador] Júlio Marcelo queria trem de passageiro lá, mas não tem demanda para isso. Ele imagina uma pessoa viajando, trabalhando em seu notebook e seu Wi-Fi, mas não estamos fazendo o trajeto de Londres a Paris. Na verdade, a gente está indo de Uruaçu (GO) a Porto Nacional (TO). Você já marcou uma festa com a sua família em Porto Nacional? Não? Eu também não. O que vai passar lá é carga, grão, líquido, fertilizante. É isso que temos de resolver, essa é a vocação da ferrovia“ [5].
Diante da afirmação do ministro, os prefeitos de Uruaçu e Porto Nacional reagiram dizendo que nessas regiões vivem pessoas, que não fazem festas em Londres ou Paris, mas fazem festas em suas cidades e que poderiam se beneficiar de trens de passageiros [6]. Seria cômica, se não fosse trágica, a visão do ministro. É certamente representativa da postura elitista que pauta o planejamento público de infraestrutura do governo federal, alheia à existência de populações com necessidades distintas às do agronegócio exportador.
Nesse sentido, a presente publicação analisa a cadeia monocultural da soja e sua logística associada em diversas dimensões. O primeiro capítulo, “As rotas pandêmicas da cadeia global do complexo soja-carne”, trata de como o lugar do Brasil como exportador de commodities agrícolas no sistema agroalimentar global torna o país uma potencial “fábrica de vírus”, especialmente em razão da contínua devastação dos ecossistemas e consequente erosão da biodiversidade, a fim de abrir áreas para pastagens e monocultivos.
No capítulo 2, “Os caminhos da insegurança alimentar”, em coautoria com Sílvio Porto, analisamos como as transformações agrárias no Brasil nas últimas décadas têm gerado vulnerabilidades no abastecimento alimentar, considerando especialmente a perda de agrobiodiversidade, a estagnação da produção e o deslocamento de área plantada do arroz e do feijão em razão do crescimento da soja.
“Guerra das Rotas”, o terceiro capítulo, analisa como os interesses do agronegócio incidem sobre os programas públicos de infraestrutura em um contexto de disputas entre diferentes projetos de infraestrutura para o escoamento da soja. Em comum, o desenho de rotas que permitam conectar as fronteiras agrícolas ao novo destino prioritário: a China.
O capítulo 4, “Caminhos do abastecimento popular e da agroecologia”, busca lançar luz sobre como movimentos do campo e da cidade têm lutado por vias em prol da soberania alimentar – com ênfase na experiência da rota “caminhos da agroecologia” no Mato Grosso –, e traçando algumas pistas para a caracterização de agendas alternativas de infraestruturas.
Por fim, a conclusão busca não encerrar o debate, mas abrir algumas chaves para o futuro a partir da pergunta mobilizadora “E se as infraestruturas fossem dos povos?”. Respondê-la é certamente uma tarefa coletiva.
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Notas:
1. Dados de safra da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
2. Vandana Shiva. Monocultures of the Mind—Understanding the Threats to Biological and Cultural Diversity. Indian Journal of Public Administration 39 (3): 237-248, 1993.
3. Idem, p. 237, tradução nossa.
4. Maristella Svampa. Commodities Consensus: Neoextractivism and Enclosure of the Commons in Latin America. South Atlantic Quarterly 114 (1): 65-82, 2015.
5. Estadão Conteúdo. Prefeitos querem transporte de passageiros na Ferrovia Norte-Sul. O Estado de Minas, [S.I], 8 fev 2019b. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/ economia/2019/02/08/internas_economia,10290 61/prefeitosquerem-transporte-de-passageiros-na-ferrovia-norte-sul.shtmlAcesso em: 14 fev 2019
6. Idem.
Fonte: FASE