Guerra de patentes no fundo do mar
Os cientistas se lançam no registro de organismos dos oceanos para desenvolver aplicações médicas ou energéticas. Mas a apropriação de elementos da natureza é vista como uma nova biopirataria
A reportagem é de Mónica López Ferrado e publicada no jornal El País, 20-10-2009. A tradução é do Cepat.
Nos mares e oceanos, milhões e milhões de microorganismos diminutos, que não chegam a medir nem micra [plural de micron, milionésima parte de um milímetro], são responsáveis por mais de 80% de processos como o ciclo do CO2, a captação de energia ou a mudança climática. Isso sem perder de vista seu papel na cadeia alimentar. Um litro de água marinha pode conter ao menos 25.000 tipos de micróbios. Nos mares mais ricos até 100.000, alguns com propriedades fantásticas como a bioluminiscência ou toxinas para sobreviver. Entender sua complexidade não apenas pode dar respostas a questões tão importantes como a origem da Terra, sua grande biodiversidade ou a mudança climática. Também tem um grande potencial comercial para criar novos medicamentos ou biocombustíveis. As patentes sobre a vida produziram um grande debate em terra firme que agora se reproduzir mar adentro.
Atualmente, não é permitido patentear organismos vivos. Contudo, agora, as novas tecnologias se sequenciamento tornaram acessível a caixa preta destes bichos: seu DNA. O funcionamento de um gene, ou vários, pode converter-se na engrenagem de bactérias artificiais a serviço da humanidade, postas a trabalhar para criar energia ou tratar doenças. E isso é possível patentear.
Visto este potencial, cada vez são mais numerosas as expedições científicas e comerciais (ou ambas, às vezes) que se adentram nos ecossistemas aquáticos do planeta à pesca de novos genomas. De fato, nos últimos seis anos foram registradas mais da metade das patentes relacionadas com recursos genéticos marinhos. Diante disso, os países que contam com uma riqueza marinha pedem regras claras. Muitos já tiveram que lutar contra a biopirataria terrestre, como aconteceu com o México e a tentativa norte-americana de patentear o feijão. Ou no Equador, com uma variedade de ayahuasca. Se as bactérias que são descobertas nessas expedições forem encontradas em águas territoriais (200 milhas da costa), o Convênio para a Biodiversidade da ONU reconhece a soberania dos países sobre seus recursos genéticos. E sobre as sequências de seus genes?
Sem dúvida, a expedição com maior potencial neste campo é a do Sorcerer II, uma iniciativa de Craig Venter, pai do genoma humano, que começou em 2003 e que já rastreou as águas de meio continente. Seu objetivo científico, e sem fim comercial segundo insiste em seus aparecimentos, consiste em desentranhar o metagenoma dos mares (seus microorganismos, seus genes e como interagem). Ninguém está alheio a que entre suas atividades mais lucrativas está a de criar vida artificial com bactérias com poucos genes, mas funções bem concretas. Segundo o próprio Venter, sua expedição ambiciona ser tão revolucionária quanto o foram, na sua época, as descobertas de Charles Darwin. Já detectou seis milhões de novos genes. Na revista Science publicou o metagenoma de um mar inteiro, o Mar de Sargazos.
Atualmente, o Sorcerer II se encontra ancorado entre Valência e Barcelona, à espera das licenças estipuladas pela Convenção sobre Direito do Mar da ONU. No começo de novembro sua equipe científica também se reunirá com pesquisadores do CSIC [Conselho Superior de Pesquisas Científicas] na Espanha, da Itália e da Grécia. Robert Friedman, à frente da expedição do Instituto Venter, insiste em que “a intenção é avançar no conhecimento científico da biodiversidade microbiana”. Como garantia de que suas descobertas não serão monopolizadas pela empresa de Venter, Friedman explica que a sequência do DNA de todos os microorganismos descobertos se encontra à disposição pública e gratuita em uma base de dados, Camera. Além disso, com os países que o solicitaram foram assinados acordos explícitos regidos pelo Convênio da Biodiversidade da ONU e que garantem a sua soberania sobre os recursos genéticos. Isso sim, todos são diferentes. No caso da Costa Rica ou do México, supõe um mero reconhecimento de sua soberania sobre os recursos genéticos, mas não estipula nenhum direito de propriedade intelectual. Na Austrália, o acordo é mais específico: “Todos os direitos de propriedade intelectual em relação com os materiais ou qualquer derivado, incluindo a propriedade intelectual resultante (direta ou indiretamente) do uso destes materiais ou qualquer derivado, investimentos ou outros usos”, explica Friedman. “Se um país pede para assinar direitos de propriedade intelectual, o fazemos”, acrescenta.
Na prática, a expedição cumpre com as normas internacionais, mas o que representa tornar públicos todos os recursos genéticos para os países que não assinaram um acordo claro sobre sua exploração comercial? É certo que a lei de patentes não permite que os genes em si mesmos sejam patenteados. Mas seus usos e derivados. Em consequência, se não há um acordo explícito, o país em questão terá dificuldades para reclamar benefícios sobre a exploração de bactérias únicas encontradas em suas águas.
Para aqueles que criticam a expedição de Venter, colocar o sequenciamento genético à disposição de todos não significa estar em igualdade de condições. O genoma é apenas um mapa. É a tecnologia para interpretá-la que faz com que se possa tirar um proveito comercial. “Em outro mundo, estaria bem, mas a realidade é que para interpretar toda essa informação genética são necessárias ferramentas disponíveis apenas por alguns países ricos, ou seja, podem usar a informação apenas aqueles que tiverem meios para interpretá-la. Para nós, trata-se de uma estratégia, não de autêntica forma de democratizar: é melhor colocar a informação à disposição de todos para que assim ninguém me critique”, afirma Silvia Ribeiro, representante da organização não governamental ETC Group, uma das que lutou de forma mais ativa contra a biopirataria e, precisamente, a que mais desconfia da atividade de Venter.
Mas nem todos veem atrás de Venter a sombra ampliada da biopirataria. Também há pesquisadores que percebem a situação como uma oportunidade para a ciência autóctone de cada país, caso se estabeleça o marco adequado. Muitos cientistas buscam microorganismos no mar há muito tempo e com muitas dificuldades. Não perdem de vista que pouquíssimos no mundo têm o potencial de sequenciamento de Venter. Não é estranho que outra das estratégias que Venter aplicou para adentrar-se no mar seja envolver os cientistas da região a ser explorada.
Entretanto, nas primeiras expedições não foi assim. Na Costa Rica, por exemplo, foi assinado um acordo pelo qual se pactuou a participação dos pesquisadores autóctones. Algo que Giselle Tamayo, coordenadora de bioprospecção do InBio, o maior centro de pesquisa em biodiversidade do país, vê como uma oportunidade perdida. “O convênio de biodiversidade é um marco. Se não pedes nada, perdes tudo. Nesta negociação não se pediu mais do que o custo da permissão e não se tirou o proveito que se poderia ter tirado. Se nos tivessem consultado (seu Governo), teríamos dito ‘sim, vamos em frente’, mas com condições, com a nossa participação para assim poder aprender, e com a informação que já coletamos, que teria permitido recolher dados nas zonas onde sabemos que há maiores possibilidades de futuro”. Tamayo está consciente do potencial de suas águas: “Ninguém perde de vista que, mesmo que a expedição seja científica, também pode ter um interesse comercial, mas se colaborarmos ambas as partes podem se beneficiar”.
Para os pesquisadores espanhóis, colaborar com Venter representa uma injeção de recursos importantes. Os pesquisadores do Instituto de Ciências do Mar de Barcelona do CSIC ainda têm que negociar os termos da colaboração com o Sorcerer II pelo Mediterrâneo. Não será a primeira vez que trabalham com o Instituto de Venter que, para os pesquisadores espanhóis, também representa uma oportunidade. “Para mim, Craig Venter é um gênio, há pouquíssimas pessoas que têm essa visão excepcional. Estamos encantados com a quantidade de dados que colocou à disposição pública, sua influência vai ser determinante”, afirma Carles Pedrós-Alió, pesquisador do centro encarregado dos contatos com a expedição.
O Instituto Venter já se encarregou de sequenciar os genomas de duas bactérias heterotróficas descobertas pelo Instituto de Ciências do Mar na baía de Blanes. Para sobreviver, extraem a sua energia do consumo de matéria orgânica, mas também da luz. “Poderiam ser comparadas aos carros híbridos, que funcionam em parte com eletricidade e em parte com combustível. Interessa-nos o gene para utilizar a luz”, explica Pep Gasol, um dos pesquisadores do centro. Procedem da baía de Blanes. “O acordo com Venter era que contaríamos com a sequência das bactérias com exclusividade durante meio ano para poder publicar resultados”, explica Carles Pedrós-Alió, pesquisador principal do projeto. Os pesquisadores estão satisfeitos com o fato de terem publicado suas descobertas na revista Nature e na PNAS. “Por isso, acreditamos que Blanes é o primeiro ponto do Mediterrâneo que Venter deveria explorar”, afirma Gasol. Qual é o potencial comercial do genoma desta bactéria? Talvez poderia ser utilizado em processos energéticos. Patentes? Elas não existem. “Nosso interesse é conhecer os organismos do mar”, afirma Pedrós-Alió.
Esta posição contrasta com a de outros pesquisadores com uma visão mais protecionista: “Há muitos cientistas que pensam que todos os recursos genéticos pertencem à humanidade, que não estão limitados pelas fronteiras de um país. Aqui cremos que um país deve ter o direito de decidir o que fazer com seus recursos genéticos e a ser reconhecido”, afirma Tamayo. Seu centro trabalha com genes presentes nas bactérias do trato intestinal dos cupins, o que permitiria aproveitar melhor a energia. Neste caso, contam com um acordo com uma empresa norte-americana que Tamayo reconhece como “vantajoso para o nosso país e para eles”. Em última instância, todas estas descobertas, realizadas com fundos públicos, também podem impulsionar o I+D do país colaborador, e reverter no financiamento de novos projetos públicos.
Outra expedição europeia, o Projeto Mamba, com participação espanhola através do Instituto de Catálise e Petroquímica do CSIC, que busca explicitamente princípios ativos para aplicações médicas nos microorganismos marinhos. Mas enquanto Venter explora águas superficiais, o projeto se centra em fossas do Mediterrâneo que se encontram a mais de 3.500 metros de profundidade, localizadas no Golfo de Rosas, na Líbia e Sicília. Ali se concentram altos níveis de sal, acumulado ali há milhares de anos, quando o Mediterrâneo secou. Nestas zonas se acumula um quilo de sal por litro de água, explica o pesquisador do CSIC Manuel Ferrer. “Ali vivem microorganismos extremófilos, muito interessantes por seu metabolismo, já que são capazes de produzir enzimas interessantes para a biomedicina”, acrescenta.
Neste caso, oito centros públicos colaboram com três empresas privadas. Entre elas, a Pharmamar. “Uma expedição custa entre 30.000 e 40.000 euros por dia. Nossas expedições duram não mais de três semanas e custam meio milhão de euros”, explica. Nesse sentido, Ferrer reconhece o potencial de Venter, que para terminar seu projeto conta com o financiamento da Fundação John e Betty Moore (mais de quatro milhões de dólares) e do Departamento de Energia dos Estados Unidos (outros 12 milhões). As amostras recolhidas são enviadas aos laboratórios de Venter nos Estados Unidos, que têm potencial para produzir 240.000 sequências a cada 24 horas.
Além da relevância científica que, evidentemente, a descoberta de uma nova bactéria tem, dá-se um passo a mais na exploração do potencial comercial destas bactérias? Ferrer indica que aí está o interesse de colaborar com a indústria. No Projeto Mamba ainda não se acertou os termos da divisão dos direitos das possíveis patentes que surgirem entre o sistema público e as empresas privadas. Por suas outras experiências, Ferrer indica que “as empresas costumam querer levar entre 98% e mesmo 100% dos royalties. Este é um problema pelo qual se deve lutar, mas tivemos que passar por aí porque o pesquisador necessita desse dinheiro”.