Guerra biológica chega à Amazônia


Prensa
Jornal do Brasil, Brasil, Domingo, 10 de setembro de 2000
Guerra biológica chega à Amazônia


MARCELO AMBROSIO
A guerra biológica na Amazônia é real. Está bem ali do nosso lado, na Colômbia, ainda restrita a laboratórios mas perto, muito perto, de mudar de cenário. Para cumprir o prazo de cinco anos estabelecido pela ajuda militar americana para erradicar metade das plantações de coca e papoulas nas suas florestas, o país terá que usar mais do que as toneladas de herbicidas químicos que vem despejando de aviões desde 1976. A ameaça não dimensionada à biodiversidade está no compromisso para o uso de fungos e outros vetores sobre a floresta, confirmado finalmente pelo governo no fim do mês passado depois de muitas negativas. Adotar a "solução verde" foi a maneira de acabar com culturas ilícitas de forma, aparentemente, seletiva.

"Foi iniciada uma investigação sobre possíveis controles biológicos a partir da fauna e da fora nativas, com a qual se assegura não existir risco para o meio-ambiente e a saúde", afirma o Ministério do Meio-Ambiente colombiano em nota oficial. O comunicado responde às críticas à proposta de se usar na floresta um herbicida que teria sido desenvolvido com DNA de um tipo importado do fungo Fusarium Oxysporum.

Risco - A resposta esconde mais do que explica. Isso porque, entre as possibilidades de controle biológico nativo - e é preciso que se encontre uma rapidamente - fungos como este têm a preferência pelo ataque interno às plantas, que morrem, em média, em três semanas. "Temos um tipo de Fusarium Oxysporum nas regiões onde se plantam a coca e a papoula. Provavelmente será esse o caminho a seguir. E é perigoso da mesma forma", avalia o sociólogo e escritor colombiano Ricardo Vargas, há 12 anos analisando os efeitos sociais e ambientais da dispersão química por aviões na floresta e em seus habitantes.

Ligado à ONG Acción Andina, Vargas está certo de que o projeto, que custará US$ 3 milhões, já começou, longe dos olhos da opinião pública e vai além da simples pesquisa, como vinha dizendo o Ministro do Meio-Ambiente, Juan Mayr. "Não se faz pesquisa sem objetivo prático. É parte essencial do plano assinado com os Estados Unidos e não haver ajuda se não for cumprido. E o tempo é muito curto", analisa, revelando que a coordenação das pesquisas, secretas, estaria a cargo da Polícia Antinarcóticos do Ministério da Justiça. "Os ministério da Saúde e do Meio-Ambiente não têm acesso", garante ele, por telefone, de Bogotá.

Nota - A desconfiança está baseada também nas contradições do discurso oficial. A nota do Ministério do Meio-Ambiente afirma que o projeto inicial - de testes com o Fusarium importado - tinha apoio do Programa Internacional de Drogas das Nações Unidas.

Será? "Isso simplesmente não existe. O principal elemento da nossa estratégia é o desenvolvimento alternativo. Trabalhávamos com o governo da Colômbia para um método ambientalmente seguro à erradicação de cultivos ilícitos por fumigação aérea, mas não chegamos a nenhum acordo", declarou o diretor executivo do Programa das Nações Unidas para Fiscalização Internacional de Drogas (UNDCP), Pino Arlacchi, em comunicado emitido em Viena, Áustria, no último dia 2.

Área - A UNDCP está tão preocupada que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, designou um alto funcionário da instituição para acompanhar o caso. O emissário, o norueguês Jan Egeland, já está trabalhando em Bogotá. Procurados pelo JORNAL DO BRASIL, os representantes do governo negam tudo, até o teor da nota que emitiram. "Não vamos usar nada biológico. A erradicação deverá ser obtida através da fumigação com herbicidas e do corte manual", declarou o porta-voz do ministério, Carlos Rangel.
Ricardo Vargas contesta a afirmação usando a "matemática da coca". "Desde 1976, as plantações cresceram numa proporção muito mais rápida que a capacidade de fumigação. Dessa forma, nem em cem anos eles conseguirão cabar com os cultivos. Mas certamente acabarão com a floresta antes disso", analisa. Em tempo: em 1994 existiam 40 mil hectares plantados com coca na Colômbia. Hoje, depois de fumigados 230 mil hectares apenas nos anos 90, restaria ainda o triplo a ser atacado, apesar de o governo colombiano ter anunciado, quinta-feira, que em 2000 já foram destruídos quase 43 mil hectares.

Fungo ataca ser humano

Centro da discussão sobre o controle biológico da planta da coca, o fungo Fusarium Oxysporum tornou-se a vedete dos debates sobre a guerra biológica na Amazônia depois que, no início de julho, foi divulgada a informação de que seu uso, ou melhor, o uso de uma parte do seu DNA que ataca especificamente a coca, serias importada com o aval da ONU para fazer parte do pacote antidrogas na Colômbia.

Segundo a micóloga da Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz, Kátia Rodrigues, o Fusarium é um tipo de fungo fitopatogênico, ataca apenas as plantas. "Ele se aloja no sistema radicular das espécies, causando danos vasculares e impedindo que haja circulação de seiva. A planta morre asfixiada", analisa.

Kátia confirma a possibilidade de um ataque específico. "Há um tipo de fungo na família que afeta a Eritroxilum coca, como a planta da coca é conhecida. O problema é que fungos atacam também insetos e outras plantas.

Ninguém sabe que tipo de dificuldade surgiria da introdução de grande quantidade de uma espécie. Será que ele destrói somente a coca?", pergunta.

Além da questão da manipulação, a micóloga ressalta que é preciso lidar com os fungos tendo em mente que eles se alteram. "O próprio Fusarium encontrado aqui no Brasil antes fitopatogênico, já está causando infecções sistêmicas em pacientes imunodeprimidos, como os soropositivos, além da onicomicose, uma doença nas unhas e ceratite, inflamação da córnea", descreve a cientista. Curiosamente, uma das culturas do laboratório da Fiocruz veio das areias da Praia de Ipanema.

A sombra tóxica do Glifosato

Independente do desmatamento que cria ao destruir as plantações, os efeitos da fumigação prolongada com o herbicida Glifosato sobre as áreas de coca e papoulas j começaram a aparecer. E poderão, segundo o cientista colombiano, chegar ao Brasil pelos rios Japurá e Icá, no Amazonas. Nos Estados Unidos, o fabricante foi obrigado judicialmente a retirar do rótulo a expressão "biodegradável". "E o que tenho visto confirma que é um produto que se acumula. Só morre 27% daquilo que se fumiga", conta ele. Nos catálogos disponíveis no Brasil, o Roundup, ou Fosfometilglicina, aparece como um herbicida de persistência curta no ambiente, com deslocamento pequeno, absorção lenta pelas plantas e sem seletividade.

Em áreas de pasto, o local atingido pelo spray aéreo costuma ficar amarelado por mais de um ano. "O gado que consome essa gramínea perde peso e pelos. Além disso, morrem galinhas e outros pequenos animais. Espécies inteiras de peixes desaparecem de uma hora para outra", afirma outro cientista, o biólogo holandês Martin Jelsma, do Instituto Transnacional, organização com sede em Amsterdam que se dedica à pesquisa do narcotráfico em todo o mundo.

Porém, mais que os animais, é a população que sofre. "A ingestão da água de rios ou de alimentos nessas regiões tem provocado vômitos, diarréia, dores de cabeça e náusea. Sabe-se lá que moléstias virão", descreve o biólogo. No ecossistema, o maior prejuízo é o desaparecimento de uma espécie de palma, o Cananguchal, "oásis vegetal" que abriga e alimenta vários animais e pássaros amazônicos. É também essencial à vida dos índios, que a chamam de Árvore da Vida, tal a gama de utilizações.

E não foram poucos os litros de Glifosato lançados em vôos que, atualmente, atingem também culturas de subsistência das comunidades rurais pobres. São misturadas às plantações de coca como uma tática dos traficantes ou alternativa desesperada de quem j teve a terra atingida indiscriminadamente - um dos efeitos sociais mais drásticos da fumigação. Segundo Jelsma, entre 1992 e 1998, 1.897.357 litros de Glifosato foram jogados sobre áreas de coca. As papoulas receberam, no mesmo período, 540.979 litros.
Poderia ser pior. Por pressão americana, testes com os herbicidas granulados Imazapyr e Tebuthiuron foram feitos na Colômbia. Contra a vontade do mesmo Ministério do Meio-Ambiente que garante que a pesquisa biológica não será usada e dos próprios fabricantes. "Além de mais tóxicos, eles poderiam ser lançados a uma altitude maior, contra os 10 a 15 metros do Glifosato. Com isso, áreas muito maiores seriam afetadas", avalia Ricardo Vargas.

ENTREVISTA / RICARDO VARGAS

Ameaça real

Sociólogo, autor de vários livros sobre temas andinos, com larga experiência no acompanhamento local dos efeitos sócio-econômicos da ação contra drogas nas florestas colombianas, Ricardo Vargas é um dos muitos cientistas que vêm tentando representar, para a sociedade, o papel de "periscópio", furando o muro de silêncio em torno do combate biológico às drogas erguido à sombra dos compromissos assumidos com o Plano Colômbia.

Compromissos que, segundo ele, impõem muito mais em consequências do que cedem em soluções, sobretudo no campo econômico. "O único benefício comercial que o país terá será a facilidade na entrada, no mercado americano, de produtos têxteis e manufaturados. Isso deixa toda a população envolvida com o plantio da coca de fora de qualquer programa de substituição", afirma. O tema é tão preocupante para a comunidade científica dos países vizinhos que será objeto de uma conferência internacional que ser realizada em Quito, no Equador, em outubro.

- No que o sr. se baseia para temer a pesquisa anunciada pelo governo ?

- Em 25 anos de ataque aos cultivos ilícitos, nunca foram realizados estudos de impacto sobre a saúde e o meio-ambiente provenientes do lançamento de herbicidas. Não h acesso, estrutura e equipamentos para medir o impacto, que já é sério sem a guerra biológica. Se não foram criados dispositivos para estudar os efeitos dos herbicidas, logicamente não o serão para fungos e outros agentes.

- Quais seriam os riscos para países vizinhos como o Brasil?

- O argumento de que se tentará usar apenas agentes biológicos nativos é uma desculpa para escapar das críticas ao Fusarium importado. Para o prazo acordado, até 2005, a alternativa poderia ser o mesmo Fusarium Oxysporum que há na semente da coca, que é controlado pela natureza. Espalhar quantidades maiores representa um desastre potencial para toda a Amazônia. Incluindo a brasileira.

- Por que?

- Porque em um ambiente natural estariam entrando mais agentes, mesmo nativos, de uma mesma espécie muito superior ao que a natureza consegue administrar. Os efeitos dessa superpopulação são imprevisíveis.

- O governo nega.

- O ministro do Meio-Ambiente, Juan Mayr, enviou uma carta à Organização de Povos Indígenas Colombianos afirmando que o controle biológico é uma alternativa que est sendo buscada. O estilo de governo aqui é assim, vertical, excludente, secreto e arbitrário. A comunidade científica não participa do projeto.

- Qual foi a reação dos países mais próximos à decisão pelo ataque biológico?

- Estão temerosos. Peru e Equador, por exemplo, já proíbem qualquer tipo de pesquisa com agentes biológicos e até a fumigação. A Bolívia não proibiu, mas, segundo o presidente Hugo Banzer, os pés de coca estarão extintos lá antes que o agente esteja desenvolvido. Não sei do Brasil.

- Nunca houve acompanhamento dessas questões?

- Até 1986 algumas comissões estiveram fizeram análises. Os governos anteriores criaram mais exigências e debates, mas não condições técnicas.

Somos o país que mais fumigou cultivos no mundo e o que menos sabe do impacto sobre a saúde.

- Voltando ao Brasil, a ameaça biológica assusta. Mas a contaminação por químicos não é mais imediata?

- Sim, e mais drástica. Apenas entre 1992 e 1998, foram jogados na floresta 1 milhão e 900 mil litros de herbicida Glifosato (conhecido como Roundup) sobre áreas de coca e 541 mil litros sobre papoulas. Tudo isso foi para algum lugar.

- Para onde?

- A água leva o excesso do herbicida, e também os produtos usados para prepará-lo, como vinagre e dispersante, um surfactante altamente tóxico.

Além disso, o solo recebe químicos do processamento da pasta base da coca, como gasolina, cimento, ácido sulfúrico e permanganato de potássio.

- Que áreas o Sr. apontaria na Colômbia como críticas? O Brasil pode estar sofrendo esse envenenamento?

- Eu destacaria os vales dos Rios Putumayo e Caquetá. Os dois estão arrastando uma quantidade de elementos para o seu país, para o Amazonas.

(No Brasil, o Putumayo vira Japurá e o Caquetá é rebatizado de Icá).

- Os defensores do herbicida afirmam que não é agressivo ao meio-ambiente. O que leva o sr. a concluir o contrário?
- O tempo do uso e também o fato de que, na Colômbia, a proporção da mistura não é a recomendada pelo fabricante (a americana Monsanto). O ideal é que em 200 galões, 10 sejam de Glifosato, 184 de água, 4 de vinagre e dois de surfactante. Dois a três litros são suficientes para desfolhar um hectare (10 mil metros quadrados). Aqui se usam 13 litros por hectare em uma mistura que, muitas vezes, traz o dobro da quantidade de herbicida. (M.Am.)


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