Brasil: ministério da Agricultura eleva tensão entre governo e movimentos sociais
Representante da cúpula do ministério afirmou à imprensa que Brasil e EUA chegaram a um acordo e que o governo norte-americano - que nunca assinou o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança - iria apoiar durante a MOP-3, encontro internacional marcado para março, em Curitiba, a proposta brasileira de que os carregamentos de sementes geneticamente modificadas sejam identificados com a expressão “pode conter” transgênicos, ao invés de “contém” transgênicos
Um dia depois de diversos representantes de organizações socioambientalistas reafirmarem sua preocupação quanto à indefinição das posições que adotará o governo brasileiro no 3º Encontro das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP-3, na sigla em inglês) e na 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU (COP-8), um gesto político tomado quarta-feira (8) pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) jogou mais lenha na fogueira das desconfianças. Durante reunião do Comitê Consultivo Agrícola Brasil-Estados Unidos, um representante da cúpula do ministério afirmou à imprensa que os dois países haviam chegado a um acordo e que os EUA - que nunca assinaram o Protocolo de Cartagena - iriam apoiar durante a MOP-3 a proposta do Brasil de que os carregamentos de sementes geneticamente modificadas sejam identificados com a expressão “pode conter” transgênicos ao invés de “contém” transgênicos.
Divulgada como se fosse uma bela notícia pela maioria dos meios de comunicação no mesmo dia em que começava em Brasília uma reunião do governo com representantes da sociedade civil - com o objetivo de discutir e esclarecer as posições do país nos dois eventos internacionais que acontecerão no mês que vem em Curitiba - a jogada política do Mapa foi recebida com fúria pelas ONGs e movimentos sociais, que viram na declaração de acordo com os EUA uma tentativa de decidir por debaixo dos panos a diferença política interna quanto aos transgênicos. Afinal, o Brasil não tem posição definida pelo governo quanto à polêmica do “contém” e do “pode conter” e muito menos uma proposta sobre esse tema, ao contrário do que foi adiantado pelo Mapa. Ou já teria de fato o governo fechado uma posição e a sociedade civil ainda não está sabendo?
A preocupação dos socioambientalistas é grande porque, se aprovada na MOP-3, a proposta do “pode conter” significará na prática a falta de controle sobre o transporte de transgênicos e a não obrigatoriedade da realização de testes, entre outras facilidades para os países e empresas que apóiam a liberalização desses alimentos e sementes: “Os países ricos e empresas interessados na liberação dos transgênicos têm tecnologia, mas não querem arcar com os custos dos testes, enquanto os países em desenvolvimento não têm condições para isso. Nesse contexto, a adoção de ‘pode conter’ ao invés de ‘contém’ no processo de identificação vai acomodar muitas irregularidades e acelerar a disseminação dos transgênicos. Se o ‘pode conter’ for mantido pela MOP-3, o Protocolo de Cartagena terá ido por água abaixo”, avalia Marijane Lisboa, que é professora da PUC-SP e membro da Associação de Agricultores Orgânicos.
Ao anunciar o “acordo” com os EUA, o coordenador de Biossegurança do MAPA, Marcus Vinicius Coelho, defendeu o “pode conter” valendo-se, curiosamente, da mesma justificativa utilizada por Marijane para atacar a proposta: “A opção pelo ‘pode conter’ evita que sejam implementados caros processos de detecção e rastreabilidade nas colheitas, o que aumentaria o preço dos produtos brasileiros no mercado internacional”, disse, antes de completar que “mesmo não tendo assinado o Protocolo de Cartagena, os Estados Unidos estão preocupados com seus efeitos sobre o comércio global de produtos agropecuários”.
Na opinião de Marijane, que no atual governo já ocupou a Secretaria de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a manutenção do “pode conter” no Protocolo abriga outra armadilha: “Significa um drible nos riscos à saúde humana. A falta de testes e identificação correta não vai permitir que, em casos de doenças que as pessoas possam vir a desenvolver, as empresas responsáveis sejam responsabilizadas e tenham que pagar indenização”, disse. A polêmica sobre se os transgênicos devem ser chamados de “Organismos Geneticamente Modificados (OGM)” ou “Organismos Vivos Modificados (OVM)” é outra casca de banana no texto do Protocolo que estará em discussão na MOP-3: “A classificação OVM significa reduzir o universo dos transgênicos às sementes e grãos. A semente de soja, por exemplo, pode ser considerada viva, mas o farelo de soja não, e por isso ficaria fora do Protocolo. É uma artimanha do grupo pró-transgênicos, pois o comércio e transferência de sementes que já existe hoje não são nada perto do que ainda pode acontecer quando entrarem no mercado as comodities (produtos) feitas com OGMs”, afirma a professora.
“Cobraremos explicações”
Alguns dirigentes do movimento socioambientalista que estiveram reunidos nos dias 7 e 8 em Curitiba para uma oficina preparatória à MOP-3 e à COP-8 seguiram diretamente para a reunião com o governo em Brasília, que se estende até sexta-feira (11). Eles prometem reclamar oficialmente da atitude do MAPA: “Ficamos desagradavelmente surpresos com essa iniciativa do MAPA de trazer norte-americanos para cá e falsear um acordo quando todos sabemos que o Brasil ainda passa por um processo de definição de suas posições. Se foi concedida ao MAPA essa liberdade para falar em nome de todo o governo, nos perguntamos sobre a validade das reuniões para discutir a posição do Brasil”, afirmou Gabriel Fernandes, dirigente da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA) e da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos. Ele garantiu que a sociedade civil não vai deixar de se posicionar: “Na reunião em Brasília, cobraremos explicações do Itamaraty. Se for para agir deste jeito, é melhor o Brasil boicotar de vez o Protocolo de Cartagena”, disse.
O papel de condutor das diferenças internas exercido pelo Itamaraty também foi criticado por Maria Rita Reis, da Terra de Direitos: “Cadê o Itamaraty? O MAPA agora tem mandato para falar em nome do governo? É lamentável que declarações públicas como essa, não por coincidência feitas na véspera da reunião do governo com a sociedade civil para definir sua posição, acabem induzindo a população a ter uma compreensão errada sobre essa discussão. Estamos assistindo a mais uma tentativa de se estabelecer no Brasil a política do fato consumado em relação aos transgênicos”, disse. Maria Rita será a portadora de uma carta, redigida na oficina de Curitiba, onde as ONGs e movimentos criticam a postura do MAPA: “Entregaremos essa carta ao governo e enviaremos cópias para o Congresso e para as demais organizações do movimento social e ambientalista”, disse.
MMA vai à luta
Também presente à oficina das ONGs, Pedro Ivo Batista, que é assessor especial da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou estranhar o anúncio de acordo com os EUA feito pelo MAPA: “Não me cabe criticar outro ministério, mas o que posso garantir é que o governo ainda está discutindo suas posições, tanto em relação à MOP quanto à COP, e que, portanto, nada está definido”, disse. Com a missão de ser um dos principais articuladores políticos do MMA durante os eventos de Curitiba em março, Batista, que assim como todo o ministério defende a adoção da expressão “contém” para identificar as cargas com transgênicos, acredita que a disputa sobre esse tema se estenderá até a MOP-3: “Se existe pressão de um lado, é preciso aumentar a pressão de outro”, disse.
Batista também tranqüilizou os representantes de ONGs e movimentos quanto à presença de Marina Silva na MOP-3, já que estão circulando fortes rumores de que a ministra, por conta de ver a posição do MMA em relação aos transgênicos ser desconsiderada nessa reta final, estaria ameaçando somente aparecer em Curitiba para a COP-8: “A ministra estará na MOP-3 e seu gabinete já estará montado em Curitiba a partir do dia 10 de março”, disse. Ele rechaçou as insinuações de que o MMA estaria jogando a toalha em relação ao Protocolo de Cartagena: “Vamos lutar por nossas posições e a ministra já avisou que, se for preciso, vai usar sua prerrogativa de presidente da COP para fazer sozinha uma declaração final”, disse.