Brasil: eucalipto avança em São Luiz do Paraitinga
"Famoso pelo potencial de ecoturismo e por suas festas populares - desde procissões religiosas a um animado carnaval -, esse charmoso município com pouco mais de 10 mil habitantes virou palco de uma disputa judicial entre a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/SP) e duas gigantes do setor de reflorestamento comercial de eucalipto"
Quem se aventura a estudar os problemas da porção paulista do Vale do Paraíba deve inevitavelmente se debruçar sobre a literatura de Monteiro Lobato. O autor pintou retratos amargurados - em livros como "Urupês" e "Cidades Mortas" - sobre essa região que conheceu uma grave crise com a decadência do ciclo do café, na primeira metade do século passado. De suas andanças por lá, também tirou inspiração para conceber a figura do Jeca Tatu, que deixou marcas indeléveis na imagem do caipira e de seu modo de vida, eternizados como rústicos e atrasados.
Há quem diga que Monteiro Lobato até pediu desculpas pela caricatura que rotulou a população rural do Vale do Paraíba. Hoje em dia, porém, a cultura genuinamente caipira virou motivo de orgulho e resistência, principalmente em São Luiz do Paraitinga, a 185 km da capital. Mas já vai longe o tempo em que o café reinava na economia local. Até mesmo a pecuária leiteira, outra atividade tradicional da região, vem perdendo espaço, o que limita cada vez mais a continuidade dos costumes típicos. Atualmente, uma árvore considerada exótica, natural da Austrália, domina parte expressiva da paisagem do Vale do Paraíba e se encontra no centro de acalorados debates que mobilizam sociedade civil, poder público e iniciativa privada: o eucalipto.
Famoso pelo potencial de ecoturismo e por suas festas populares - desde procissões religiosas a um animado carnaval -, esse charmoso município com pouco mais de 10 mil habitantes virou palco de uma disputa judicial entre a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/SP) e duas gigantes do setor de reflorestamento comercial de eucalipto. A primeira delas é a Votorantim Celulose e Papel (VCP), que se transformou na maior produtora de celulose do mundo depois de adquirir recentemente outra importante companhia desse segmento empresarial, a Aracruz, em negócio estimado em R$ 5,6 bilhões. A segunda peso-pesado é a Suzano Papel e Celulose, que cultiva a árvore australiana em São Luiz do Paraitinga desde a década de 1970.
Da bela sede formada pelo casario de arquitetura colonial, é possível mirar o motivo da discórdia. As lavouras de eucalipto, que nas últimas duas décadas vêm se expandindo aceleradamente no meio rural, já estão batendo à porta da zona urbana. Em março de 2008, contudo, esse avanço foi freado por uma liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP).
Desde então, para que sejam feitos novos plantios da matéria-prima do papel e da celulose no município, é necessária a elaboração prévia de um Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental - o chamado EIA/RIMA. A liminar do TJ/SP atendeu a um dos pedidos de uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada quatro meses antes pelo defensor público Wagner Giron De La Torre, da regional de Taubaté, contra as duas empresas. "Não estamos falando de meia dúzia de eucaliptos. Estamos falando de milhões de árvores. O impacto ambiental precisa ser medido", sustenta Wagner Giron.
De acordo com a ação, as plantações de eucalipto já dominam quase 20% da área agricultável de São Luiz do Paraitinga. O texto da ação aponta ainda supostas infrações ambientais cometidas pela VCP e pela Suzano. Produtores particulares que celebram contrato de fidelidade com as empresas - chamados de "fomentados" - também são citados. Eles recebem adiantamento em dinheiro e assistência técnica para cultivar mudas fornecidas pelas companhias. O plantio dessas árvores exóticas em áreas de preservação permanente (APPs), como topos de morro e beiras de cursos d´água protegidos pela lei, estão entre as principais acusações formuladas pelo defensor público.
Apenas a perícia poderá comprovar se árvores foram plantadas em locais proibidos. A planta altimétrica de cada imóvel rural que cultiva eucalipto é conferida. A apresentação desse "mapa" aos órgãos competentes é obrigatória para quem queira averbar a Reserva Legal de seus imóveis rurais.
Segundo Danilo de Miranda, diretor da unidade de Taubaté do Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais (DEPRN), as companhias vêm dialogando com o órgão. "Quando todos estiverem aqui com procedimento de instituição de Reserva Legal, vamos ter acesso às plantas altimétricas, e assim teremos um teor de tudo que existe de APP em topos de morro".
É importante frisar que o julgamento final dos problemas apontados na ACP ainda vai levar alguns anos, e que as empresas não foram condenadas. Porém, se ao término do processo ficarem comprovadas as irregularidades por meio de perícia - e os pedidos contidos na ação forem acolhidos integralmente -, CVP e Suzano serão obrigadas a destinar cinco mil salários mínimos a um fundo público de proteção e recomposição do meio ambiente.
A ação também determina que os órgãos competentes municipais e estaduais intensifiquem as atividades de fiscalização, sob pena de multa. A liminar concedida pelo TJ/SP é uma medida de urgência para conter a expansão do eucalipto em São Luiz do Paraitinga. "Ao impor uma monocultura, queira ou não, existe impacto ambiental. Que se faça, então, um EIA/RIMA com audiências públicas discutindo com a população local", completa o defensor público.
Na avaliação de Carlos Bocuhy, membro do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) e presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), a liminar do TJ/SP representa um "paradigma" positivo ao colocar em debate novos critérios de sustentabilidade em São Paulo, como a realização de estudos de impacto ambiental referentes à expansão de monoculturas como eucalipto e cana-de-açúcar. "Precisamos avançar no sentido de que isso seja de fato uma obrigatoriedade prévia, e não póstuma, depois que os impactos já ocorreram. A nossa preocupação é que a sociedade tenha mecanismos para visualizar esses processos e que eles sejam licenciados adequadamente, com as medidas compensatórias de proteção aos ecossistemas envolvidos".
Reclamações
A ACP contra as duas grandes empresas do setor de papel e celulose foi motivada por uma série de queixas de pequenos agricultores que foram afetados pela expansão dos eucaliptos em São Luiz do Paraitinga. Um dos casos que mais renderam polêmica é o de Benedita de Morais de Oliveira. Desde 1974, ela vive como agregada em uma humilde casa localizada na Fazenda Santa Cecília, não muito longe do centro da cidade, onde se dedica basicamente à produção de requeijão feito a partir do leite das vacas que cria.
Há cerca de quatro anos, a VCP passou a cultivar eucaliptos na propriedade. Durante o processo de preparação da terra para plantio das mudas, Benedita afirma haver ingerido agrotóxicos que teriam contaminado a fonte de água que ela usava para beber. "Na hora, perdi o tino. Até hoje não sarei. Depois que chegou o eucalipto, minha vida piorou porque perdi a saúde, que é o principal", emociona-se. O caso foi parar na Justiça, mas ainda não houve sentença.
O principal argumento utilizado contra a VCP pelo defensor público Wagner Giron de la Torre, que também representa Benedita em ação indenizatória movida pela agricultora, é a entrevista de uma funcionária da empresa a uma rede de televisão local em que ela própria admite que possa ter ocorrido uma falha operacional na aplicação dos herbicidas.
Aliás, a utilização desses produtos para fazer a "capina química" - limpeza das áreas que utiliza pouca mão-de-obra, mas muito agrotóxico - é outro item questionado pela ACP. "Qual é a alteração para o ecossistema que existe com um plantio contínuo de um só tipo de vegetação? E se há um agrotóxico específico sendo utilizado, qual é a sua toxidade? Como isso repercute no lençol freático? É preciso fazer essa avaliação", questiona Carlos Bocuhy.
Mas há outras preocupações que tiram o sono da população local. No distrito de Catuçaba, moradores recolhem assinaturas para um abaixo-assinado que visa impedir que a VCP transporte toras extraídas de fazenda vizinha pelas vias do bairro. "O asfalto aqui foi um sonho realizado, e o tráfego das carretas pode danificar tudo. Quando passa ônibus, a gente já sente a janela trepidar. Se os caminhões passarem e trincarem as paredes, quem vai arcar com isso?", questiona José Carlos de Campos, líder comunitário que vive no distrito de Catuçaba há 45 anos.
Uma lei municipal (veja placa acima) limita a circulação de caminhões com no máximo três eixos pelo interior de Catuçaba. Porém, mesmo que o limite seja respeitado, os moradores temem que o trânsito de caminhões abarrotados de árvores acabe danificando a estrutura das simples moradias do local.
A prefeita de São Luiz do Paraitinga, Ana Lúcia Sicherle (PSDB), afirma que a VCP vai abrir um novo caminho para escoar a futura produção, sem gerar transtornos às famílias do pequeno distrito. Os danos provocados pelo intenso movimento de carretas carregadas na estradas está relacionado à atividade das companhias de celulose, admite a própria prefeita. Para compensar essa dor de cabeça, ela gostaria que as empresas contribuíssem de alguma forma com os cofres municipais. Porém, como o processamento industrial do eucalipto não ocorre na cidade, as empresas acabam não recolhendo impostos.
Impactos
Desde que se conhece por gente, Pedro Galvão Moreira, 69 anos, "nascido e criado" no bairro rural Alvarenga, toca uma pequena propriedade onde cria animais e cultiva alimentos que comercializa no mercado municipal. "Aqui era um bairro grande, havia quase 200 famílias. Hoje existem umas 30, no máximo", conta. As transformações sociais e culturais geradas pelo avanço das plantações de eucalipto, como relata Pedro, também foram abordadas na ação da Defensoria.
Na avaliação do antropólogo André Luiz da Silva, da Universidade de Taubaté (Unitau), a expansão da monocultura sobre áreas que antes eram ocupadas pela atividade da pecuária leiteira, além de expulsar os trabalhadores do campo, inibe a reprodução dos costumes típicos do Vale do Paraíba.
"A pecuária é associada a formas tradicionais de relação com a terra que a escala industrial dessas plantações para a indústria de celulose aniquila", afirma o antropólogo. Até mesmo práticas religiosas centenárias da população rural foram comprometidas pelo avanço os eucaliptos.
Com o crescimento da monocultura, o historiador e ex-vereador Marcelo Toledo afirma que capelas de valor cultural tiveram seu acesso restringido, prejudicando a interação social. "Antes havia muitas festas nos povoados, onde a maioria das pessoas vivia como agregados das fazendas de pecuária".
De acordo com João Dagoberto dos Santos, engenheiro florestal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), existe outro aspecto social bastante problemático na atividade de reflorestamento comercial. "A taxa de geração de emprego é baixíssima. Geralmente, quem vem plantar é gente de fora, são funcionários de empresas sublocadas para fazer a implantação. E, para fazer manutenção dos eucaliptais, não precisa de mão-de- obra", assinala.
Além disso, a chegada desses trabalhadores provoca o inchaço das periferias dos municípios, onde eles acabam se instalando. "Isso altera a dinâmica sócio-cultural da cidade. Os custos dessas plantações de eucalipto são muito grandes em função do retorno econômico que elas proporcionam. Elas ocupam quase 20% do território, mas geram muito pouco emprego e não contribuem em nada com impostos", acrescenta André Luiz Silva, da Unitau.
Ressalvas
Na opinião de João Dagoberto, da Esalq, tanto a VCP quanto a Suzano estão entre as melhores empresas do país do ponto de vista técnico, e investem para respeitar as áreas de preservação permanente nas suas fazendas próprias. Mas existem duas ressalvas que precisam ser levadas em conta.
Em primeiro lugar, aparece a questão da monocultura em si, que é condenável para qualquer espécie. Em uma região de "mares de morros" como o Vale do Paraíba, o cultivo de eucalipto até pode ser considerado menos degradante do que o de pastagens mal manejadas - pois as árvores protegem mais o solo da erosão e permitem maior infiltração de água nos lençóis subterrâneos do que o capim. Mas isso não quer dizer que a atividade não gere impactos ao meio ambiente, ainda mais levando-se em conta a larga escala das lavouras e as toneladas de agrotóxicos empregados na implantação das mudas.
O segundo ponto é que, nas fazendas de eucalipto dos "fomentados" não se registra o mesmo padrão de controle ambiental verificado nos imóveis rurais pertencentes às companhias. "Elas não têm comando sobre os fomentados, que fazem barbaridades mesmo porque, quanto mais eucalipto plantam, mais dinheiro ganham. Assim, se o produtor planta em topos de morro ou beira de córregos, a responsabilidade também é da empresa", afirma o engenheiro florestal. Além disso, quem destina toda a terra para o plantio do eucalipto está fadado a lidar com a árvore para o resto da vida. "O eucalipto imobiliza a terra para sempre e deixa o solo morto", explica.
Plano Diretor
Se no âmbito judicial a ação civil pública ainda deve demorar ser julgada em definitivo, a restrição a novos plantios de eucalipto vem ocupando há anos a agenda do legislativo municipal.
Em novembro de 2006, o ex-vereador Marcelo recolheu cerca de 600 assinaturas de eleitores da cidade e protocolou projeto de lei popular que estabelecia uma porcentagem máxima para o cultivo de eucalipto, conforme o tamanho dos imóveis rurais.
A proposta foi rejeitada em uma votação apertada, decidida na época pelo então presidente da Câmara, o vereador Antônio Sales (PSDB). "Querendo ou não, as empresas de celulose geram alguns postos de trabalho. Além disso, o fazendeiro manda no que é dele. E o prefeito disse que vetaria o projeto se ele fosse aprovado", analisa o ex-vereador que esteve por trás da proposição.
Entretanto, o tema não se esgotou com reprovação do projeto de lei popular. Agora, a bola da vez é o Plano Diretor, em discussão no poder legislativo desde 2007. Se a atual versão for aprovada, serão proibidos plantios de eucalipto a menos de três quilômetros do perímetro urbano. Além disso, o limite às lavouras será ainda mais rígido do que previa a proposta recusada pelos vereadores em 2006, chegando a um máximo de 25% da área de cada imóvel rural. O fato é que os "caipiras" de São Luiz do Paraitinga ousaram levantar a voz contra a monocultura, e conseguiram sensibilizar a Justiça para uma decisão relevante, condicionando novos plantios de eucalipto à realização de estudos de impacto ambiental. Monteiro Lobato talvez se orgulhasse do feito.
O que dizem as empresas:
A VCP foi insistentemente procurada pela reportagem, mas afirmou oficialmente que não iria comentar o assunto.
A Suzano, por sua vez, emitiu o seguinte comunicado:
"Em relação à solicitação feita a respeito da proibição do plantio de novas áreas de eucalipto na zona rural do município de São Luiz do Paraitinga(SP), a Suzano Papel e Celulose informa que:
- Como empresa de base florestal que elegeu a sustentabilidade como fio condutor de todas as práticas, preocupa-se em realizar a produção com apurados critérios de qualidade e respeito aos recursos naturais.
- Utiliza as mais avançadas práticas de manejo florestal que garantem a renovação do solo, a preservação da biodiversidade, a manutenção de mananciais e matas ciliares, além de estabelecer relações sociais de qualidade com as comunidades em que atua;
- Possui 2,8 mil hectares de área em São Luiz do Paraitinga, com cerca de 40% dela destinada à conservação ambiental (acima dos 20% previstos pela legislação ambiental);
- Todas as suas áreas de plantio são certificadas pelo FSC (Forest Stewardship Council), entidade independente reconhecida mundialmente como a mais séria na avaliação de produção florestal economicamente viável, ambientalmente correta e socialmente justa;
- Todas as suas áreas florestais são também certificadas pela ISO 14001, ISO 9000 e pela OHSAS 18001"