Brasil: biopirataria é crime
Entrevista com Bruno Barbosa, Coordenador da Divisão de Fiscalização do Acesso ao Patrimônio Genético do Ibama
A biopirataria se caracteriza pelo uso de dispositivos genéticos transformados em produtos de mercado patenteados. O Brasil, que tem 20% da biodiversidade mundial, é um dos alvos da cobiça do mercado internacional. Apesar de ser um tema recente, a biopirataria está sendo abordada cada vez mais pela mídia e tem sido alvo de preocupação do governo federal, principalmente porque o patrimônio genético de um país deve ser usado para o seu desenvolvimento econômico e científico, permitindo o uso racional dos recursos da biodiversidade.
Com os desdobramentos resultantes da Eco-92, o Brasil fortaleceu sua capacidade de lidar com os problemas ambientais, principalmente depois da criação da Lei de Crimes Ambientais em 1998. Um dos acordos firmados nessa época foi a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), assinada por 156 países e ratificada em 1994. Além de falar sobre a preservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos seus componentes, ela ressalta a necessidade de repartir justamente o uso dos recursos genéticos de cada país. O problema, como você vai ler na entrevista que segue, é que os países do primeiro mundo, que detêm a tecnologia de pesquisa, não implantaram essas ações.
Além disso, outro grande entrave é tipificar a biopirataria como crime, fazendo uma regulamentação na Medida Provisória 2786 que, em sua última atualização realizada em 2001, não estabelece punições. O projeto está em andamento no Congresso Nacional. Hoje a Lei de Crimes Ambientais prevê penas de seis meses a um ano de prisão, o que dá ao acusado o direito de responder em liberdade. No caso de biopiratas estrangeiros, eles quase sempre conseguem deixar o país sem maiores problemas.
Para que a população saiba que biopirataria é crime e possa ajudar a combatê-la, o Ibama lançou a campanha “Futuras Gerações precisam de Gerações Futuras”, no mês de maio. A campanha esclarece a necessidade de se ter autorização para carregar animais silvestres, produtos e subprodutos da fauna e flora, materiais genéticos e substâncias nocivas. Essa campanha foi lançada, principalmente, após a constatação da exploração irregular do patrimônio genético brasileiro por parte de laboratórios internacionais. Só para ter uma idéia do prejuízo financeiro causado pelas irregularidades, a planta denominada pau pereira, usada em tratamento de câncer, é coletada na Amazônia por R$ 7,00 a tonelada. Depois, um tubo com 120 gramas com o princípio ativo é vendido por 85 dólares.
Para falar sobre esse problema e sobre as ações que estão sendo feitas para tentar solucioná-lo, a EcoTerra Brasil entrevistou o Coordenador da Divisão de Fiscalização do Acesso ao Patrimônio Genético do Ibama, Bruno Barbosa
O que incentivou essa campanha do Ibama de combate a biopirataria?
Na verdade é um conjunto de circunstâncias que viabilizaram essa guinada. No tempo recente, e a partir dessa nova gestão do governo, houve a iniciativa de criar um setor interno específico para lidar com o combate a biopirataria. Foi criada a Divisão de Fiscalização do Acesso ao Patrimônio Genético. E a partir disso estamos fazendo algumas ações, como capacitar o pessoal interno do Ibama e participar do processo de revisão normativa. A Legislação que trata desse assunto é cheia de lacunas, só existe atualmente uma norma que trata especificamente do acesso ao patrimônio genético, que é a medida provisória 2186. E a 16ª versão dela, de 2001, é cheia de lacunas para a nossa atuação. Inclusive tem o artigo 30 que até hoje não foi regulamentado, que é justamente o aspecto de sanções para quem descumpre os termos que ela impõem. Mas é uma lei que, digamos assim, não tem a mão que dá o tapa. Então o que a gente tem feito é usar alguns dispositivos das leis ambientais para reprimir a prática, mas por um outro viés, que é transportar material genético sem autorização. Uma das iniciativas que essa divisão está cumprindo é interferir acompanhando as reuniões da Comissão de Biopirataria no Congresso e sugerindo, nos pareceres que a gente faz para o projeto de Lei, qual é a nossa visão para melhor arrojar a Legislação. E temos participado, já dentro da esfera do Executivo Federal, para a regulamentação desse artigo 30. Então uma das táticas é ajudar na questão normativa, e essa capacitação dos servidores.
Vocês estão intensificando as ações em relação à comunidade científica, certo?
Essa é uma outra via, que é a fundamental, porque as pessoas tendem a achar que o controle da biopirataria vai ser feito somente com batidas e operações em aeroportos. Isso vai ser feito também, mas o mais importante é estabelecer uma parceria, um processo de sensibilização da comunidade científica brasileira para que ela seja um aliado. Porque a biopirataria não é feita pela pessoa que vem aqui, pega uma aranha e leva embora. Quando o assunto é biopirataria, que é encontrar dispositivos genéticos para transformar em produtos para o mercado, ter patente e tudo o mais, o processo é muito refinado. E com a parceria da comunidade científica a gente consegue identificar o infrator, entender os procedimentos, ou seja, iluminar a nossa capacidade de enxergar as ações que têm essa característica no Brasil. E, em paralelo, a mídia é fundamental como parceria para que a sociedade brasileira entenda o que acontece. Porque qualquer cidadão sabe que isso acontece, se sente lesado, mas as pessoas não entendem muito bem o que é a tal da biopirataria. E ao entender os problemas que são gerados a partir da prática da biopirataria, espera-se que a sociedade possa pressionar o próprio Congresso, colaborar com informação e manter até mesmo um nível de solidariedade com as ações que a gente está construindo. É uma ação global que inclusive tem esse aspecto de educação ambiental.
A biopirataria é um assunto recente?
Ainda que o Brasil seja protagonista em relação aos outros países, é muito recente. Fazendo um retrospecto, esse processo com essa característica e com essa visão de acesso controlado, com repartição de benefícios e transferência de tecnologia, começa a partir da Eco-92. O processo de formulação, de criação de norma e de estrutura, é relativamente rápido, só que não é tão rápido quanto a dinâmica da pesquisa científica. Então a gente tá correndo contra o tempo.
Como vai ser intensificado esse alerta para a sociedade?
Isso vai um pouco além da nossa ação específica, porque tem a ver com um contexto geral. A Legislação Ambiental, no Brasil, passa a ser validada a partir de 1998. Foi quando foi criada a Lei de Crimes Ambientais que a coisa começou a pegar mais forte. Mas mudar uma cultura requer tempo, principalmente em algumas regiões do Brasil como, por exemplo, a região norte, que tem uma forte presença indígena, onde é uma coisa cultural comer tartaruga, criar papagaio e tal. Não só lá, mas lá é interessante como a coisa funciona. Então isso foi em 98 e estamos em 2005. Para mudar uma cultura instalada, mesmo que a tecnologia hoje favoreça esse tipo de iniciativa, é um processo lento, não se consegue fazer muitas vezes em uma mesma geração. Você consegue interferir e mudar a cabeça de muita gente, mas não na medida que gostaríamos numa geração só. Isso tudo ainda vai dar muito pano para a manga, vamos dizer assim. Ao controlar a biopirataria, a gente força os pesquisadores estrangeiros, os laboratórios estrangeiros, a se encaixarem nos processos de gestão brasileira. E pra se encaixar no sistema de gestão brasileira, tem que repartir benefício financeiro, inclusive com as comunidades locais, tem que transferir tecnologia, tem que fazer uso sustentável do recurso ambiental, ou seja, não vai poder pegar todos os sapinhos da Amazônia para fazer a pesquisa porque esgota o recurso. E para fazer o sistema funcionar temos que pegar quem está indo lá. E se a gente fecha o sistema e ele começa a funcionar bem, o Brasil sai ganhando até em sustentabilidade. Porque o caboclo do meio do mato vai pensar: ‘posso cortar esse trecho de mato aqui e ganhar tanto com a madeira, meio irregular e tal. Mas se mantenho esse trecho do mato em pé e uso o recurso genético, vou ter uma repartição de benefício que é muito mais potente economicamente’. Porque, às vezes, um sapinho daquele ecossistema pode curar a AIDS, entende? Já pensou o tanto de riqueza que vem para o Brasil?
Mas esse dinheiro seria repassado para a comunidade local?
Sim. A utilização do recurso genético vai ser um gancho para garantir a sustentabilidade. A capacidade de síntese dos laboratórios está cada dia mais limitada, então eles estão fugindo para viabilizar novos produtos, estão correndo atrás de biodiversidade. Combinação genética virou a onda agora e isso é coisa para as próximas décadas. Se o Brasil tem 20% da biodiversidade do planeta, somos uma potência. E se a gente viabiliza nesse momento em que a coisa está começando, a gente faz o sistema funcionar. Como uma das exigências é a transferência de tecnologia, a gente vai potencializar nossas universidades para que daqui a alguns anos sermos também protagonista da pesquisa científica. O que for gerado de riqueza fica pra nós.
Mas muitos produtos já não foram levados e patenteados?
A gente não tem condições de avaliar isso hoje, só teria condições de avaliar se cruzássemos alguns dados. Tinha que saber o que foi patenteado lá fora e que virou produto, resultante de espécie endêmica do Brasil, e cruzar com as informações dos produtos que foram autorizados. Aí vamos ter condições de ver o tamanho da biopirataria e o quanto ela está gerando de riqueza, vamos ver o tamanho do buraco que a biopirataria causa para o Brasil. Na minha opinião, e daí não tenho como comprovar, mas sinto isso, é muito maior do que qualquer pirataria de cd, de música e de filme que eles falam que nós fazemos. Porque se trata de medicamento, de saúde humana, de cosméticos e de alimentação.
Existe a intenção de fazer essa avaliação?
O Ministério do Meio Ambiente, junto com o Itamaraty, está procurando cruzar essas informações para a gente ter um quadro da situação. Mas os prejuízos são grandes, a lógica demonstra que sim. Porque tem várias coisas lá fora que foram patenteadas e que são endêmicas do Brasil, vários medicamentos e tal. E o que acontece: não só a gente não recebe uma parte da riqueza gerada, não recebemos tecnologia – porque eles não são obrigados a transferir quando a coisa está na ilegalidade, obviamente –, mas o pior é que a gente ainda paga royalties para receber os remédios deles. É uma coisa de louco.
Existem acordos internacionais que tratam desse assunto...
Um é a Convenção de Diversidade Biológica, que foi assinada na Eco-92. Ela diz que para acessar a biodiversidade de um país, esse país tem direito ao repasse de benefícios, aquelas coisas que falei. Todo mundo assinou, mas nem todos colocaram nas suas normas nacionais, principalmente os países de primeiro mundo, que são os donos da pesquisa e da patente. O outro acordo que é o TRIPS (Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), que trata sobre aceitar patentes, e esse eles forçam a gente a cumprir. Então para resolver o problema da biopirataria no mundo inteiro – porque não é só o Brasil a vítima, os países da linha do Equador quase todos são –, é só dizer o seguinte: a partir de agora, qualquer patente, em qualquer lugar do mundo, só vai ser concedida se o requerente demonstrar que o país de onde veio o recurso genético autorizou o seu acesso.
Isso está incluso nesse projeto de lei que está em andamento?
Não, porque foge da ossada da legislação brasileira. Mas nesse aspecto o Itamaraty tem feito uma forte pressão. Inclusive na reunião em Cancun, no México, quando criaram o G-20, uma das polêmicas criadas contra os países do primeiro mundo foi justamente isso.
Existe uma previsão para que os acertos na legislação sejam concluídos?
Não tem previsão, mas a nossa expectativa é positiva. O que está se discutindo ainda é a variação possível da multa porque, por exemplo, acessar material genético para produzir arma biológica é uma coisa de uma gravidade enorme, então a pena é mais alta. Mas independente disso, vamos manter uma expectativa positiva que vai sair em breve. Pelo menos esse é o nosso sentimento aqui.
Para terminar, qual é o produto mais procurado pelos biopiratas?
A coisa mais procurada, por incrível que pareça, são as que têm veneno. Porque o veneno é um princípio ativo concentrado. Aí tem secreções de pele de sapo, veneno de escorpião, de cobra, de taturana e plantas venenosas.