Brasil: O que falta na mesa
Será ilusão pensar que a aprovação pelo Congresso da Lei de Biossegurança ou mesmo a sanção presidencial (com ou sem vetos) encerrem a polêmica sobre o tema e as disputas judiciais em torno. Como será ilusão acreditar que pendências judiciais interrompam a série de fatos consumados que levarão à adoção praticamente irreversível de alimentos geneticamente modificados no País
Não é preciso insistir muito no que já foi comentado neste espaço várias vezes - que o Congresso, ao atribuir poderes absolutos de liberação de transgênicos, sem estudos de impacto ambiental e epidemiológico, à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) atropelaria a Constituição federal, várias leis e resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (que têm força de lei), convenções internacionais homologadas pelo Brasil e que exigem respeito ao princípio da precaução, o Código Penal (que proíbe contrabando de sementes), a estrutura administrativa do governo (a CTNBio nem é órgão governamental e tem poderes maiores que os ministérios) e princípios federativos. Está aprovado o projeto, com apoio maciço do governo federal, de vários de seus ministros, de suas lideranças no Congresso, de boa parte do partido governista no poder.
É certo que o Ministério do Meio Ambiente, em nota oficial, criticou a decisão, apontou riscos, o desprezo aos órgãos do governo que atuam nas áreas ambiental, de saúde e agricultura. Mas está feito e não há muito o que esperar. Mesmo a possibilidade prevista no projeto, de recursos ao Conselho Nacional de Biossegurança; o Ministério do Meio Ambiente está quase sozinho no governo.
Também de pouco adianta voltar à discussão semântica sobre quem é fundamentalista, os defensores do princípio da precaução ou os defensores "enragés" dos transgênicos. Não adianta dizer que a ciência também tem dúvidas. De pouco valem argumentos como os do professor John Wilkinson, da UFRJ, de que transgênicos podem ser liberados, mas exigem rastreabilidade, protocolos de segregação e preservação da identidade, rotulagem; que eles implicam altos riscos de contaminação via polinização, especialmente em culturas de "polinização aberta", como o algodão e o milho. Mesmo a soja, que tem polinização "fechada", contaminou plantações em Iowa e Nebraska, nos EUA; beterraba e canola transgênicas contaminaram plantios vizinhos na Inglaterra.
Pouco importa, a esta altura, que a Organização para a Agricultura e a Agricultura (FAO), da ONU, tenha alertado em janeiro que "a distribuição responsável de produtos transgênicos deve abarcar o procedimento completo de elaboração tecnológica, desde a avaliação de riscos anterior à comercialização até as considerações referentes à biossegurança e à supervisão do produto uma vez comercializado". Para que tanto cuidado, se não há riscos? E, nesse caso, por que os mercados europeus maciçamente preferem alimentos não modificados e até pagam mais por eles (como estão fazendo no Paraná)?
De que adianta, a esta altura, lembrar os estudos da Fundacep (RS) mostrando que até nos EUA a produtividade da soja transgênica é inferior à da convencional, que o consumo de herbicidas ali é 86% maior, após nove anos de plantio, e o de outros herbicidas é 116% maior após sete anos?
Nada disso pesou até aqui. Nem mesmo se perguntou qual é a estratégia nacional nessa matéria. Que lugar queremos no mercado mundial? Produtores de transgênicos, disputando um mercado global oligopolizado - que já tem excedentes - com os EUA, a Argentina e o Canadá? Ou preferimos atender aos mercados europeus e asiáticos que querem produtos sem modificação e não têm outros grandes produtores para atendê-los? Ou queremos as duas coisas, em áreas segregadas? O País e os produtores têm pelo menos o direito de saber, para se orientar.
E assim seguimos, jogando quase tudo nas exportações de produtos primários, mas com a soja retornando ao tobogã dos preços e chegando a valer este ano metade do que valia no passado; com os produtores arrancando os cabelos, porque os preços dos insumos químicos, enquanto isso, subiram 11%; com os desastres climáticos reduzindo as safras; e com o governo tendo de fazer novas concessões - mais financiamentos, dinheiro do FAT, alongamento da dívida -, assustado com os "tratoraços".
Seguimos em frente, sob o argumento de que é preciso aumentar o saldo da balança comercial. Embora a Confederação Nacional da Agricultura diga (Estado, 2/3) que o PIB agropecuário caiu 0,87% de 2003 para 2004, principalmente na agricultura (menos 1,73%), contrariando o IBGE. Embora a participação da agropecuária no PIB (revista Agronegócios, da Fundação Getúlio Vargas) tenha baixado da média de 11,5% no período 1980-1990 para 8,5% no período 1991-2002.
Por essas e outras, em 40 anos nossa participação no comércio mundial se manteve em torno de 1%. Por isso a participação dos países "em desenvolvimento" na produção de bens agrícolas caiu de 37,81% em 1981 para 36,1% em 2001, como escreveu nesta página o ex-embaixador Rubens Barbosa (25/1). Por aí a América Latina transferiu no ano passado US$ 84 bilhões para os países industrializados (foram US$ 34,4 bilhões em 2003). O Brasil, US$ 14 bilhões (embaixador Rubens Ricupero, Folha de S.Paulo, 30/1).
Não adianta nem reclamar. Nem mesmo na Organização Mundial do Comércio: o representa norte- americano já disse que o presidente Bush resistirá à decisão que condenou os subsídios ao algodão.
Tudo isso deveria estar sobre a mesa na hora da decisão. Mas não está.
*Washington Novaes é jornalista. E-mail: rb.moc.lou@seavonrlw
O Estado de São Paulo, Brasil, 11-3-05