Brasil: Direitos Humanos investiga situação de atingidos por barragens

Idioma Portugués
País Brasil

Comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana analisa seis casos emblemáticos de violações contra atingidos por barragens. Problemas de Tucuruí podem se repetir no Madeira, avaliam especialistas

SÃO PAULO – Desde a passagem da relatora especial da ONU, Hina Jilani, pelo Brasil no final de 2005, oportunidade em que visitou a hidrelétrica de Campos Novos, na divisa de SC e RS, e recebeu do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) uma série de denuncias de violações dos direitos humanos contra as empresas construtoras da usina, o MAB tem buscado pautar os problemas sofridos pelos atingidos junto aos órgãos competentes no país e na Organização dos Estados Americanos (OEA).

Encaminhadas ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado ao Ministério da Justiça, as denúncias deram início a um processo de levantamento de violações contra trabalhadores e comunidades atingidos por barragens em todo o país, que resultou na apresentação de mais de 70 casos. Destes, 12 foram formalizados em denúncias e, no início do ano, seis foram encaminhados para investigação por uma comissão especial do CDDPH, composta por membros do Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia e do próprio MAB.

Segundo o defensor público da União, João Paulo Dorini, os seis casos da comissão - a barragem de Acauã, na Paraíba, e as hidrelétricas de Foz do Chapecó, em Santa Catarina, Tucuruí, no Pará, Aimorés, Emboque e Fumaça, em Minas Gerais, e Cana Brava, em Goiás – foram selecionados por representarem realidades diferentes mas significativas do conjunto das denuncias apresentadas.

Violações
Único caso de barragem não ligada a uma hidrelétrica, Acauã, construída pelo governo da Paraíba para o abastecimento hídrico de Campina Grande, apresentou as violações de direitos humanos mais agudas entre os projetos visitados até agora (além de Acauã, a comissão esteve ainda em Foz do Chapecó e Tucuruí).

Segundo a denuncia encaminhada ao CDDPH, Acauã apresenta a “mais catastrófica situação social das famílias reassentadas por uma barragem no país”. Deslocadas das margens do rio Paraíba, onde subsistiam da pesca e da agricultura familiar, 943 famílias foram reassentadas em pequenas agrovilas que mais se parecem com um imenso favelão, afirma Dorini, e carecem da maioria dos serviços mais básicos, como água, luz, escolas, postos de saúde, transporte e telefonia, entre outros.

Segundo o relatório preliminar da comissão, “os atingidos foram obrigados a mudar seu modo de vida: saíram de uma vida tradicionalmente rural para um meio ‘urbano’ (sem que tenha a estrutura de uma aglomeração urbana). Não há terras agricultáveis, nem terrenos que permitam a criação de animais. As famílias nada produzem. Não há alternativas de trabalho para esses cidadãos de pouca instrução, totalmente adaptados à vida no campo. A situação é bem grave, especialmente se considerarmos que são famílias que possuíam uma vida digna, tendo perdido essa condição pela construção da barragem. Atualmente falta água e comida. Para a maioria desses assentados, se não fosse as cestas básica que lhes são distribuídas, já teriam morrido de fome”.

Já Foz do Chapecó e Tucuruí apresentaram problemas bastante distintos, inclusive entre si. Em fase de instalação do canteiro de obras, as empreendedoras de Foz do Chapecó ainda não iniciaram a aquisição de terras para o reassentamento das famílias que serão deslocadas pela barragem, como exigido nas condicionantes da licença de instalação concedida pelo Ibama, afirma Leandro Scalabrin, advogado do MAB.

Segundo as denuncias sobre o caso, serão mais de 3.500 famílias atingidas – cerca de 15 mil pessoas de 115 comunidades -, e por volta de 20 mil hectares de terras férteis serão desapropriadas. “A Barragem está na fase inicial, com atividades de desapropriação desde o ultimo trimestre de 2006. Até agora foram desapropriadas 71 familias na região do canteiro de obras, mas mais de 20 familias tiveram seus direitos negados ou não reconhecidos”, diz o texto.

Por outro lado, continua a denúncia, os empreendedores estariam usando táticas de intimidação, como “ameaças, cooptação, pressão psicológica, uso da força ao invés de diálogo, queima e destruição de casas, omissão de informações ao Poder Judiciário, desrespeito moral, negação da livre opção de escolha. Muitas das familias já despejadas de suas casas estão morando em casas de parentes e familiares. Continuando a atual política do consórcio mais de 10 mil pessoas serão desalojadas sem nenhum direito”.

O caso de Tucuruí, por sua vez, é um exemplo de prolongamento de violações por mais de 30 anos, afirma Dorini. Iniciadas na década de 70 sob o regime militar, as obras da hidrelétrica não foram concluídas até hoje – faltam ainda as eclusas, que possibilitarão a navegação para escoamento de minérios da Companhia Vale do Rio Doce.

Segundo o último relatório da Comissão Mundial de Barragens (CMB) sobre a usina, “o processo de relocação [dos atingidos] provocou transformações marcantes nas formas de vida das populações locais. (...) O perfil do tratamento sócio-ambiental levado a cabo em Tucuruí não só apontou para o lugar que a questão social ocupava no planejamento hidrelétrico - o que evidenciou e ressaltou a impactação negativa sobre o meio social -, bem como faz com que esta questão seja colocada ainda hoje pelas organizações sociais e membros da comunidade científica regional e nacional como a de maior vulnerabilidade quanto ao desempenho do empreendimento”.

Na prática, o passivo social de Tucuruí inclui o não reassentamento de dezenas de famílias atingidas, desvio das indenizações previstas – “muitos atingidos eram analfabetos, e o dinheiro de suas indenizações foi desviado por agentes públicos”, relata Leandro Scalabrin – e o não reconhecimento de categorias, como os pescadores, enquanto atingidos (problema que apenas agora estaria sendo estudado pela Eletronorte).

Os impactos da hidrelétrica sobre o município de Tucuruí também foram enormes. Segundo Dorini, antes do início das obras, a população da cidade era de 8 mil habitantes. Em dez anos, este número subiu para 110 mil. Este inchaço desestruturou toda a rede de atendimento social, como escolas, saúde, moradia e transporte, aprofundando a situação de desajuste social da região.

Complexo Madeira
Segundo o advogado do MAB, apesar do movimento no momento não estar discutindo compensações para as cerca de 5 mil famílias que deverão ser atingidas pelas usinas de Santo Anônio e Jirau em Rondônia, a avaliação é que as hidrelétricas deverão causar uma repetição dos problemas de Tucuruí, principalmente no aspecto da migração que deve ocorrer com o início das obras. Segundo o próprio governo, estaria sendo esperada a acorrida de cerca de 30 mil pessoas em busca de emprego, diz Scalabrin, o que poderá levar a estrutura de atendimento às necessidades sociais básicas de Porto Velho ao colapso.

Os problemas previstos pelo MAB para o Complexo Madeira foram listados entre as 33 condicionantes da licença ambiental concedida pelo Ibama, que exige programas e projetos que compatibilizem a oferta e a demanda de serviços públicos, considerando a variação populacional decorrente da implantação dos empreendimentos; medida mitigadora às famílias não-proprietárias na área de influência direta dos empreendimentos, que venham a ter atividades econômicas afetadas; compensação social, medidas de apoio aos assentamentos de reforma agrária, agricultores familiares e comunidades ribeirinhas na área de influência do empreendimento, visando o desenvolvimento de atividades ambientalmente sustentáveis; plano de ação para controle da malária, a partir do plano com diretrizes técnicas encaminhado pela secretaria de vigilância e saúde do ministério da saúde, entre outros.

Mas tanto Scalabrin quanto Dorin temem a repetição de violações dos direitos humanos da população mais fragilizada por falta de um marco regulatório que defina os direitos dos atingidos e os deveres do estado e dos empreendedores. “Não existe nenhum arcabouço normativo que proteja a população, que defina quem é e quem não é atingido, por exemplo. Esperamos que, com a conclusão dos trabalhos da comissão, estas questões sejam assumidas e encaminhadas”, afirma Dorini. Até lá, os atingidos continuam obrigados a negociar caso a caso com as empresas, e onde a organização é mais frágil, os problemas serão maiores, acredita o defensor público.

Carta Maior, Brasil, 16-07-07

 

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