Brasil: A encruzilhada dos transgênicos
Prensa
Zero Hora, Brasil, 6-3-03
A encruzilhada dos transgênicos
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará usar todo o seu poder de negociação para aparar as arestas que norteiam a polêmica dos produtos transgênicos dentro do próprio governo. O grupo de trabalho integrado por nove ministérios - criado no dia 18 de fevereiro - fará hoje a sua primeira reunião, sob o comando de Lula, mas não há perspectiva de consenso a curto prazo. Apesar de todos os ministros defenderem a idéia de uma posição única de governo, os ruídos que surgiram nos últimos dias encaminham o assunto para uma ampla e acirrada discussão.
Há, ainda, uma pendência judicial: a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) deverá julgar um recurso da União e da empresa Monsanto somente em meados de abril. Enquanto isso, o plantio e a comercialização de transgênicos estão proibidos no Brasil. O que poderá emergir do encontro de hoje é uma solução definitiva para a safra de soja que está prestes a ser colhida no Rio Grande do Sul. Como há cálculos de que 70% é de semente transgênica, originalmente contrabandeada da Argentina, a não-liberação representaria perdas entre US$ 10,5 bilhões e US$ 13,6 bilhões em exportações.
O prazo de 30 dias para que o grupo de trabalho apresente um posicionamento sobre o cultivo de produtos geneticamente modificados certamente será extrapolado. Durante o governo FH, fechado em favor dos transgênicos, travou-se ampla batalha pública e jurídica envolvendo produtores, multinacionais, ambientalistas, consumidores, governos federal e estadual e poder judiciário.
Agora, há posições sabidamente controversas entre os ministros. O titular da Agricultura, Roberto Rodrigues, mantém a cautela, mas é favorável à liberação dos organismos geneticamente modificados (OGMs). O secretário-executivo do ministério, José Amauri Dimarzio, admitiu que o órgão apresentará a proposta que estabelece a implantação de um período de transição.
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assume uma postura diferente. Prefere o princípio da precaução e defende que a posição final deverá ser "do governo que ganhou a eleição". No caso, o PT, partido sempre contrário ao plantio de sementes transgênicas. A passagem do atual ministro das Cidades, Olívio Dutra, pelo governo estadual foi um exemplo de como o assunto é tratado. Embora não tenha conseguido, o ex-governador pretendia transformar o Estado em zona livre de transgênicos.
Ontem, dirigentes da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) sugeriram em Passo Fundo a adoção de um programa nacional de reconversão, para incentivar o plantio de soja convencional, também defendido pelo núcleo agrário do PT.
Glossário
- Soja transgênica: soja geneticamente modificada. A alteração celular é realizada a partir da inclusão de um determinado gene de um outro organismo (como uma bactéria) no DNA (ácido desorribonucléico, substância que compõe os genes) da planta.
- OGM: organismo geneticamente modificado.
- Soja Roundup Ready (RR): ao DNA da soja é acrescentado um gene de uma bactéria resistente ao herbicida glifosato. Aplicado na soja convencional, o glifosato mata a planta.
- Glifosato: princípio ativo do herbicida Roundup, da Monsanto, mas também presente em outras marcas comerciais.
- Ciclo precoce, médio ou tardio: período da germinação até o amadurecimento da planta, que pode ser mais curto ou mais demorado.
- Cultivar: variedade cultivada. Grupo de plantas de uma mesma espécie que apresentam características semelhantes e específicas.
Campo experimental
Enquanto a guerra judicial sobre a liberação de transgênicos no país é travada em Brasília, os agricultores do Sul testam clandestinamente cerca de 30 cultivares de soja geneticamente modificada vindas da Argentina. Sem estudos ou recomendação técnica oficial, transformaram o Estado em um grande campo de experimentação sem qualquer controle.
Como a soja argentina apresenta um comportamento diferenciado no Estado, as variedades de ciclo de germinação médio no país vizinho são mais precoces aqui, por exemplo. Foi o que ocorreu com a série 6001, 6040, 6401, 6444 e 6445, as primeiras variedades a entrarem no território gaúcho, apelidadas de maradona - por terem vindo da Argentina e pela baixa estatura.
- O primeiro ano foi decepcionante. Ela produziu 16 sacas por hectare, enquanto o normal é mais de 40. Mas agora acertamos a época de plantio - descreve o agricultor A.C.
- A maradona já foi naturalizada gaúcha - brinca o produtor M.A., que há oito anos planta cem hectares de soja transgênica.
O xodó nas últimas duas safras tem sido as cultivares de ciclo médio e tardio, recomendadas para o norte da Argentina, como as das linhas 7000, 8000 e 9000 - esta última leva cerca de 150 dias para ser colhida.
Se antes o agricultor tinha medo de falar para o vizinho sobre seus experimentos com transgênicos, hoje há inclusive dias de campo informais para apresentar as novidades, revela um empresário de sementes de Passo Fundo, que também prefere não se identificar.
Variedades não-adaptadas trazem doenças
A entrada de variedades irregulares e não-adaptadas ao clima local fizeram ressurgir uma doença erradicada no Brasil na década de 70, a pústula bacteriana. O diagnóstico foi feito pela Embrapa Trigo, de Passo Fundo, que analisou amostras de plantas transgênicas doentes a pedido de produtores.
Na década de 60, a pústula bacteriana dizimava as lavouras e, para exterminá-la, o Ministério da Agricultura passou a exigir que todas as cultivares fossem resistentes à doença, por melhoramento vegetal.
- Foram trazidas sementes não-resistentes a essa doença porque na região para onde elas são indicadas a pústula não se manifesta - explica o pesquisador Emídio Rizzo Bonato.
Embora as pesquisas em campo com soja transgênica tenham sido proibidas judicialmente no Estado em 1998, a Embrapa conseguiu manter experimentos em estufas. Parte da seleção foi desenvolvida na Embrapa Soja de Londrina (PR). A partir de 2000, com uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, as experiências foram retomadas em solo gaúcho.
- Atrasamos a incorporação do gene resistente ao herbicida em cultivares da Embrapa, mas estamos conseguindo preparar novas variedades - diz Bonato.
Negócio de risco
Com negociações feitas "por baixo dos panos", sem nota nem procedência fiscalizada, não há como reclamar quando o produtor compra gato por lebre. Tudo funciona na base da confiança. Nos bastidores das cooperativas, nas rodas de conversa, não faltam histórias de vítimas de negócios de má-fé ou da pouca informação.
O golpe mais comum é aquele aplicado a quem comprou sementes de ciclo curto como se fossem lançamentos de ciclo tardio, negociadas a um preço mais elevado. Mas há experiências piores.
O agricultor V.S. de Pantano Grande, no Vale do Rio Pardo, com outros dois amigos, comprou de um agrônomo a soja que deveria ser transgênica. Os três aplicaram o herbicida glifosato na lavoura e se deram mal. Não era RR.
- Matei 10 hectares de lavoura. Só não apliquei mais porque o próprio vendedor perdeu 50 hectares e me avisou. As sementes provavelmente foram trocadas em uma propriedade onde ele mandou classificar (separar as sadias) - reclama.
V.S. pagou R$ 50 por cada uma das 50 sacas que comprou da suposta M-Soy 8080, um preço muito inferior ao do mercado. Até agora, ainda não descobriu que variedade, afinal, irá colher.
Genética gaúcha
- Caso sejam liberados os registros para variedades geneticamente modificadas, as versões transgênicas das variedades convencionais BRS 66, BRS 137, BRS 138, BRS 153 e BRS 154 - as melhores da Embrapa para o Estado - poderão ser comercializadas em três anos.
- A Embrapa também prepara 7 mil linhagens que poderiam resultar em duas novas variedades transgênicas por ano. As primeiras poderiam chegar ao produtor após um ano de autorização governamental.
- A instituição pesquisa soja transgênica em 61 locais do Brasil, sete deles no Rio Grande do Sul.
- Há também experiências conduzidas pela Coodetec, uma cooperativa do Paraná, e por multinacionais.
Um rentável mercado paralelo
Por Vivian Eichler
Acobertados pelo descontrole do plantio ilegal da soja transgênica, agricultores gaúchos alimentam um rentável mercado paralelo de grãos, baseado em riscos e conveniência.
Na ausência de estimativas oficiais para calcular a dimensão desse negócio, produtores descrevem como ocorre a compra e a venda fria de material genético, que conturba a safra no Estado.
Plantar, colher e vender soja nunca deu tanto dinheiro como nos últimos oito anos, época de entrada das primeiras cultivares da oleaginosa resistentes ao herbicida glifosato. Isso vale especialmente para quem não era do ramo de produção de sementes certificadas e se aventurou a multiplicar transgênicos.
- Basta ter uma estrutura de pré-limpeza e um classificador - explica A.C., produtor que se especializou em revender a chamada soja RR (Roundup Ready) para todo o Estado.
As sementes, separadas por variedades e devidamente identificadas, são até enviadas a laboratórios para testes dos níveis de germinação e vigor. A.C. já conquistou a confiança dos clientes e em 2002 vendeu mais de 4 mil sacas que serão colhidas em lavouras que vão desde São Borja até Vacaria. Para 2003, ele quer fazer cerca de 10 mil sacas.
- Aumentei meus ganhos de 50% a 100% - diz o produtor que acompanha o crescimento de seus 300 hectares de soja convencional e 700 de transgênica.
As primeiras bolsas foram compradas em 1997, por cerca de US$ 80 cada. Um ano depois, A.C. comprou cem unidades de duas cargas levadas ao Planalto Médio por um grupo de uruguaios.
Cada saca pode originar outras 40 ou 50 na safra seguinte. Os estrangeiros, que já tinham know how para cruzar as fronteiras trazendo agroquímicos contrabandeados, passam facilmente pela região de Santana do Livramento, por estradas secundárias. Além do Rio Grande do Sul, o grupo transporta para Mato Grosso e Paraná, via Paraguai.
Os atravessadores compram as sementes de produtores argentinos, encarregados de multiplicar cultivares para as multinacionais que detêm a tecnologia no país vizinho. Eles desviam parte da produção vinculada à empresa, deixando de pagar royalties.
- Trazem a semente na embalagem original e oferecem até revenda garantida do que produzimos - revela A.C.
O maior número de negociações, porém, é gerido pelo escambo que disseminou de vez pelas lavouras a soja proibida em território nacional. O produtor que compra a semente guarda para o próximo ano ou negocia com o vizinho. Troca a saca de 60 quilos do grão industrial por uma de 50 quilos de semente ou como convier. A única garantia é a palavra.
- Os produtores negociam entre si. A oferta é tão abundante que a diferença para a convencional é de apenas 20% a 40% em relação ao preço pago na indústria - observa o comerciante de sementes Emeri Tonial, de Passo Fundo.
Um tradicional produtor de sementes fiscalizadas do Planalto Médio, que prefere preservar o nome, decidiu que não fará sementes da safra 2003 e entregará tudo à indústria. O motivo é a baixa procura por soja convencional.
* Colaborou Jorge Correa
Transgênicos e Fome Zero
Por Ottoni Rosa Filho - Engenheiro agrônomo
Certa vez, em Londrina (PR), uma pessoa me afirmou que, como consumidor urbano, não encontrava nenhuma vantagem direta do uso de transgênicos. Assim, por que ser a favor? Da mesma forma, acredito que essa pessoa hoje não vê sentido em apoiar o programa Fome Zero, já que vive em uma região rica, farta e possivelmente não conhece ninguém que viva em Guaribas. Qual seria sua vantagem direta?
Felizmente, há poucos brasileiros que pensam de forma tão egoísta. Entendemos bem o problema de escassez de alimentos em algumas regiões menos privilegiadas do Brasil. Sabemos que a falta de água dificulta muito a produção de alimentos, até mesmo para a subsistência.
Infelizmente, somos uma nação que passa fome. Paradoxalmente, em nosso país, não é permitida a produção de alimentos transgênicos. Temos brasileiros vivendo em condições semelhantes às de algumas regiões da África, mas preferimos achar que somos como os "europeus", que não estão produzindo alimentos transgênicos. Temos fome, mas, por preconceito, não produzimos alimentos transgênicos. Gostaria de saber se as pessoas que hoje duvidam da segurança dos alimentos transgênicos sabem que este é um assunto superado no meio científico nacional e internacional. Entendo que preconceito contra novas tecnologias e idéias é algo natural e a História tem muitos exemplos. Até Galileu sofreu com isto...
A transgenia já comprovou que pode ajudar na batalha mundial contra a fome e a subnutrição. O "arroz dourado", com maiores teores de vitamina A, é o melhor exemplo. Outra aplicação importante é a possível redução no uso de agroquímicos (herbicidas, inseticidas etc.), onde a soja resistente ao glifosate é o melhor exemplo. Nossos maiores concorrentes em soja são os Estados Unidos e a Argentina, que utilizam essa tecnologia em larga escala. E a razão é simples: considerável redução no custo de produção. O Brasil gasta muitas divisas importando caros herbicidas, enquanto nossos concorrentes usam o glifosate, que é barato, muito eficiente, possui muitos "genéricos" e não agride o meio ambiente. Hoje, pode-se dizer que estamos "protegendo" a indústria multinacional de agroquímicos ao garantir mercado para seus produtos de custo elevado, forçando o sojicultor que não planta a soja resistente ao glifosate a utilizar esses produtos.
Temos fome, mas, por preconceito, não produzimos alimentos transgênicos
Outro ponto importante quando se fala em produção de alimentos é avançar em tecnologia. Entretanto, estamos inibindo nossas universidades, com muitos mestrandos e doutorandos, a pesquisar sobre transgenia. Acredito que não devemos esperar que uma multinacional venha a desenvolver uma mandioca de alto valor nutricional - temos que estudar e trabalhar para obtermos esse tipo de resultado.
O programa Fome Zero somente obterá grandes resultados com o uso de todas as ferramentas disponíveis. Somente R$ 50 por família não irá atacar a raiz do problema. Permitir que o Brasil avance em tecnologia seria uma demonstração ao mundo de que este governo está realmente preocupado com fome e subnutrição.
Reconverter para salvar a lavoura
Por Elvino Bohn Gass - Deputado estadual (PT)
É dramática a situação de um grande número de agricultores gaúchos que, na atual safra, plantaram soja transgênica. Hoje, esses agricultores estão com um produto que não pode ser vendido por ser ilegal, afora os riscos que podem representar para o ambiente e a saúde humana. Isso sem falar no dano causado à imagem da soja brasileira e gaúcha para os mercados estrangeiros que escolhiam o produto por acreditar que aqui havia garantia contra a transgenia.
Muitos desses agricultores foram incentivados de forma irresponsável, por entidades de produtores e políticos que, motivados sabe-se lá por quem, alardeavam o que seriam virtudes da transgenia. Resultado: temos, para parte dos agricultores, um plantio ilegal, porém, de boa-fé.
O fato é o que Brasil nunca comercializou oficialmente sementes modificadas. O que existe é contrabandeado ou produzido a partir de contrabando e isto torna o drama dos agricultores ainda maior. Compraram sementes e plantaram um produto desconhecido, sem controle de qualidade e agora não podem vendê-lo legalmente.
Conscientes de que boa parte dos agricultores que caiu no "canto da sereia" está ansiosa por alternativas para o futuro, estamos apresentando o Plano de Reconversão da Lavoura de Soja no Rio Grande do Sul. Não para punir agricultores como se eles fossem bandidos, mas para dar forma a uma idéia que, neste caso, pode se tornar, literalmente, a salvação da lavoura. Desta e das próximas safras.
O plano está composto de ações emergenciais e de ações reestruturadoras para a pesquisa, o ensino, a assistência técnica, o cultivo, a armazenagem, a industrialização, o comércio e o consumo de soja e seus derivados. Prevê a utilização de instrumentos creditícios e tributários, para incentivar tecnologias seguras, aumentar a competitividade do produto gaúcho, no Brasil e no Exterior, e contribuir para o combate à fome através de alimentos saudáveis.
Muitos desses agricultores foram incentivados de forma irresponsável
Estas são as idéias gerais de um plano que vê a reconversão e a descontaminação da lavoura como alternativa para salvá-la. Obviamente, qualquer medida deve, antes, ser plenamente debatida com toda a sociedade - governos, agricultores, industriais, consumidores e outros - para que episódios como este não se repitam. Faremos isto em consonância com a Comissão Interministerial que está discutindo o tema.
A propósito, o impasse de hoje é parte de uma estratégia dos interessados em liberar imediatamente os transgênicos sem a devida precaução. Primeiro, incentivaram o plantio. Agora, lavam as mãos e repetem em coro: se tanta gente plantou, a única saída é liberar. Não! A saída é reconverter para descontaminar e desenvolver o Brasil e Rio Grande do Sul em bases sustentáveis.
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