Argentina: ‘estamos diante de uma agricultura sem agricultores’
A monocultura, especialmente a de soja, “em zonas ecológicas não aptas e sob o pacote tecnológico do plantio direto ocasiona uma série de conseqüências ambientais el socioeconômicos negativas”, afirma Gustavo Soto, da Rede Agroflorestal Chaco Argentino (Redaf)
Além disso, tem conseqüências sociais não menos graves. “Do ponto de vista social, milhares de famílias perderam a sua fonte de trabalho. Onde antes havia florestas com exploração bovina e florestal, hoje há monocultura de soja na forma de plantio direto com um mínimo de mão-de-obra. Famílias que antes trabalhavam a terra vêem que hoje é mais rentável vendê-la ou arrendá-la e acabam migrando para as grandes cidades”, sustenta o professor da Universidade Nacional de Córdoba.
Segue a íntegra do artigo de Gustavo Soto publicado no jornal argentino Página/12, 10-07-2008. A tradução é do Cepat.
Mais de 50% da superfície da Argentina é árida. Existem zonas desérticas por causas ambientais, mas também dezenas de milhares de hectares que chegaram a essa condição por causas humanas. Terras que, num passado não muito distante, estavam aptas para a produção agrícola ou a pecuária, hoje se converteram em desertos improdutivos, cada vez com menos população, porque seus habitantes se vêem obrigados a migrar por falta de trabalho e alimentação.
A desertificação é um fenômeno que avança, que é imperioso reverter com o compromisso dos diferentes agentes sociais envolvidos: individuais e coletivos, estatais e não estatais. Os “ordenamentos territoriais” que todas as províncias devem realizar como primeira medida da aplicação da Lei de Florestas pode ser uma oportunidade relevante neste sentido.
A normativa estabelece que este processo deveria ser realizado com suficiente informação à cidadania e ampla participação especialmente de comunidades camponesas e aborígines. Se bem que ficou num segundo plano devido ao debate sobre as retenções móveis sobre a exportação de grãos, não estamos falando de coisas diferentes: desertificação, perda de fertilidade dos solos, desmatamento e expansão da fronteira agrícola, particularmente para o cultivo da soja, são elos da mesma corrente.
Desde meados do século XIX, amplas zonas do norte, noroeste, nordeste e oeste da Argentina sofreram um forte processo de extração de madeira para diferentes finalidades. Esta exploração era (e continua sendo, no restante das florestas que ainda não foram derrubadas) realizada de forma irracional, extraindo o recurso florestal sem reposição.
70% deste desmatamento ocorre em florestas do Chaco, o segundo maior ecossistema natural da América do Sul, atrás apenas da Amazônia, que abarca boa parte de nosso território. A perda de biodiversidade, com todas as graves conseqüências ecológicas que isso traz, deve se somar à eliminação do “efeito esponja” trazido pelo estrato arbóreo. Onde não há florestas aumenta o efeito da enxurrada, que lava os solos, leva consigo a camada fértil superficial e produz enormes prejuízos, não apenas na área desmatada, mas águas abaixo.
A forma como se deu a expansão da fronteira agrícola na Argentina e as conseqüências que origina faz com que possamos falar de um “deserto verde”.
Tal como quando se joga uma pedra num açude, este fenômeno que começou no pampa úmido hoje se estende para o norte e oeste de nosso país. Boa parte desta expansão se deve à alta rentabilidade do cultivo de soja. Em 20 anos se multiplicou por seis a quantidade de toneladas colhidas só desse grão, passando de quase 6 milhões de toneladas em 1985 para quase 36 milhões, em 2005.
A implantação destes cultivos em zonas ecológicas não aptas e sob o pacote tecnológico do plantio direto ocasiona uma série de conseqüências ambientais e socioeconômicos negativas: poluição de águas subterrâneas devido ao uso indiscriminado de agrotóxicos, diminuição da biodiversidade animal e vegetal e contaminação de pessoas pela mesma causa e diminuição da fertilidade dos solos pela falta de rotação dos cultivos, são apenas algumas delas.
Do ponto de vista social, milhares de famílias perderam a sua fonte de trabalho. Onde antes havia florestas com exploração bovina e florestal, hoje há monocultura de soja na forma de plantio direto com um mínimo de mão-de-obra. Famílias que antes trabalhavam a terra vêem que hoje é mais rentável vendê-la ou arrendá-la e acabam migrando para as grandes cidades.
Os dados dos últimos censos nacionais agropecuários constatam: um de cada quatro produtores agropecuários abandonou a atividade, enquanto no mesmo período assistimos a um aumento espetacular da produção de grãos. Como disse nosso colega Walter Pengue, estamos diante de uma “agricultura sem agricultores”. Passamos de “celeiro do mundo” nos anos 50 e convertemo-nos num mar de verde de um cultivo que não alimenta o nosso povo.
Devemos agir rapidamente antes que se faça realidade aquele velho provérbio aborígine que diz: “Quando tiveres arrancado a última árvore, apanhado o último peixe e contaminado o último rio te darás conta de que não podes comer dinheiro”.