Incentivados pela Funai, projetos de monocultivos avançam sobre territórios indígenas no Mato Grosso e dividem Ministério Público
Projeto intitulado como “Independência Indígena” criou uma cooperativa agrícola para o monocultivo de arroz dentro do território dos Xavante.
A reportagem é de Fábio Zuker, da InfoAmazônia e Tatiana Merlino, de O Joio e O Trigo, publicado por O Joio e o Trigo, 20-08-2021.
Os territórios do povo indígena Xavante, na transição entre Amazônia e Cerrado do Mato Grosso, são como pontos verdes num mar de soja. Mas uma iniciativa do Sindicato Rural de Primavera do Leste, da Funai e do Governo do Estado do Mato Grosso pode estar alterando essa paisagem.
O controverso projeto Agro Xavante criou uma cooperativa agrícola dentro da Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande para o monocultivo de arroz no território dos Xavante. A iniciativa, chamada de “Independência Indígena”, prevê que 80% da produção agrícola fique com os fazendeiros e apenas 20% com os indígenas, explica Hiparidi Top’tiro, liderança da aldeia Abelhinha, uma das 57 aldeias da TI Sangradouro/Volta Grande, e um dos críticos ao projeto.
A empreitada criou uma divisão entre os moradores da TI Sangradouro: “Não podemos admitir que [nosso território] seja dominado por esse projeto. Já perdemos muito do nosso território, de nossa ancestralidade. Vamos defender nosso direito”, afirma Lucio Xavante, que vive na Terra Indígena São Marcos.
A Associação Xavante Warã, organização que atua na defesa dos direitos e territórios do povo Xavante, publicou uma nota de repúdio contra a implantação da cooperativa. “O governo federal está se aproveitando dos indígenas como ‘laboratório’ para a implementação de uma política anti-indígena incentivada pela atual gestão da Funai”, diz o documento.
Uma das críticas feitas ao projeto Agro Xavante pelos indígenas contrários é em relação ao fato de não ter havido uma consulta livre e informada aos moradores das terras indígenas sobre a implementação da iniciativa, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia aos povos originários.
“Não houve uma consulta, é uma reclamação que estamos tendo. O que fizeram foi uma cooptação de lideranças. Hoje estamos em uma guerra internamente”, relata Hiparidi.
O governo Bolsonaro tem ameaçado retirar o Brasil da convenção 169 da OIT, o que especialistas consideram como uma condenação dos indígenas ao extermínio.
Também não foi realizado um Estudo de Impacto Ambiental, que avaliaria de que forma o projeto afetaria a vida dos moradores da Terra Indígena Sangradouro. De acordo com Hiparidi, o projeto foi firmado diretamente entre ruralistas e alguns Xavante, sem a realização de nenhum estudo. “Eles estavam falando [que iriam usar] cinquenta hectares [do território para cultivo], mas já desmataram muito mais que isso. Então esse impacto nós estamos sentindo aqui”, explica o indígena. “Esses ruralistas estão nos intimidando e usando os próprios parentes para brigar entre nós. O agronegócio dentro das nossas terras não vai dar certo”.
Funai deve defender direitos dos povos indígenas
De acordo com Maria Augusta Assirati, ex-presidente da Funai entre 2013 e 2014, num cenário de realização de obras e empreendimentos de infraestrutura que impactam territórios indígenas, “a Funai deve atuar para defender os direitos desses povos que estão sendo ameaçados e que têm os seus direitos interferidos por obras e empreendimentos de infraestrutura”.
Ela ressalta, também, que a Funai tem um papel de interveniente no processo de licenciamento ambiental. “É fundamental que haja um processo administrativo de licenciamento ambiental, que ele seja transparente e pautado por princípios da legalidade, da publicidade, da transparência e da boa fé.” No caso dos povos indígenas, lembra: “É um dever do Estado brasileiro promover esse processo de consulta livre, prévia e informada. É um direito dos povos indígenas serem consultados de acordo com os termos previstos na Convenção 169 da OIT.”
E tampouco foi realizado um laudo antropológico sobre como o projeto impactaria a cultura Xavante. “Não houve um estudo antropológico, porque os ruralistas acham que não se deve envolver antropólogos. E eles sabem que, se tiver estudo, vai apontar várias coisas e inviabilizaria [o projeto]. Essa questão é super complicada. Estamos lutando, batalhando, para que ele seja feito”, afirma Hiparidi
Segundo Felix Tsiwepitsudu Tseredze, morador da Aldeia Guadalupe na TI São Marcos e vice-presidente da Associação Xavante Warã, “eles estão fazendo isso para os indígenas se dividirem. Para ficar com a ideologia do não-indígena, do agronegócio. Querem que a gente brigue entre nós. Enquanto isso, eles vão estar lucrando dentro das nossas terras”, avalia. “Eles acabam incentivando do lado deles, latifundiários. Eles estão usando novas estratégias de colonização.”
Apoiador do projeto, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, visitou a terra indígena em abril deste ano, quando disse: “São irmãos da pátria, a pátria é uma só. E nós temos que nos unir pra fazer disso daqui uma grande nação.” Esta fala ecoa um projeto integracionista dos indígenas brasileiros, de exclusão da diferença, que marcou a política indigenista até a Constituição Federal de 1988, e que tem sido retomado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro.
Falta de consenso no MPF-MT
Embora não acompanhe diretamente o caso do projeto Agro Xavante, o procurador da República Ricardo Pael Ardenghi, titular do ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal em Mato Grosso (MPF-MT), chama a atenção para um mecanismo pelo qual a Funai tem operado: “O indígena que quer começar hoje a agricultura, sem financiamento, sem assistência técnica, ele cai de mão beijada nas mãos do agronegócio que quer explorá-lo. E é isso que a Funai faz.”
Pael comenta acerca de outros tipos de iniciativas em que os indígenas produzem para comercialização, independente de alianças com o agronegócio, como é o caso do cultivo de cafés entre os Suruí de Rondônia, e dos famosos bastões de waraná (guaraná), dos Sateré-Mawé, no Amazonas. O que, segundo ele, contraria tanto a Constituição Federal quanto a legislação infraconstitucional são as chamadas atividades mistas entre indígenas e não indígenas. Para Pael, a instrução normativa conjunta 01 da Funai e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de fevereiro deste ano, incorre nestas ilegalidades.
Esse documento visa a regulamentar as atividades agrícolas em terras indígenas, permitindo, justamente, as organizações mistas. O procurador aponta que, de acordo com a Constituição Federal, os povos indígenas detêm o direito originário e o usufruto exclusivo sobre seus territórios.
Pael explica que “o indígena pode inclusive contratar o tratorista para ir lá arar a terra”, ou contratar qualquer outro tipo de serviço de terceiros. Porém, segundo ele, a Funai denomina esse tipo de contratação como organização indígena mista – o que, em sua interpretação, é errôneo.
“Quando um fazendeiro contrata alguém para fazer a colheita, ou fazer a pulverização, a empresa de pulverização aérea não se torna sócia do fazendeiro”, questiona Pael. Para o procurador, uma organização indígena mista insere um não indígena na tomada de decisões, que passa a auferir algo. “E é isso que não pode, porque o usufruto é exclusivo”, afirma o procurador.
Ricardo Pael compara a situação das terras indígenas, de usufruto exclusivo dos indígenas, com a de outros imóveis da União: “O fazendeiro não pode produzir numa área do Exército, que está lá abandonada, porque é um imóvel federal. A terra indígena também.”
Na prática, “a Funai se omite, a Funai se nega a cumprir as suas funções institucionais. E diz pro mundo que a única opção dos indígenas são os fazendeiros, que estão ali para ficar com a maior parte da produção”, conclui Pael.
Entretanto, este entendimento de Ricardo Pael não é consenso entre os procuradores da República que atuam no Mato Grosso. Para Éverton Pereira Aguiar Araújo, procurador em Barra do Garças (MT), responsável por acompanhar o projeto Agro Xavante, o raciocínio é outro. Para ele, a “TI Sangradouro encontra-se em uma situação de abandono e vulnerabilidade social”. Ele considera projetos de etnodesenvolvimento como uma “questão de sobrevivência da comunidade”.
Ainda segundo o procurador Éverton Pereira, foi por este motivo que o MPF-MT fez a recomendação de que “a União promovesse a implantação, no prazo de 45 dias, de projeto de gestão ambiental e territorial na Terra Indígena Sangradouro”. Como a recomendação do MPF não foi acatada pela Funai, o MPF-MT ingressou com uma ação civil pública, que está em trâmite em Barra do Garças (MT). Quanto ao projeto Agro Xavante, o procurador afirma que “o MPF em Barra do Garças/MT notificou a comunidade indígena para saber sua posição em relação ao projeto em questão e se houve consulta aos membros da comunidade”. A resposta, segundo ele, foi apresentada por “caciques da TI Sangradouro sustentando que o projeto se trata de uma posição tomada pela comunidade com base na sua autodeterminação”.
De acordo com o procurador Éverton Pereira, “a comunidade defende que o projeto é uma forma de amenizar a situação econômica e proteger sua cultura”.
A reportagem questionou então se foram realizados estudos de impacto ambiental que atestem a viabilidade e sustentabilidade do projeto, assim como um laudo antropológico que indique que o projeto Agro Xavante auxiliaria os indígenas a proteger sua cultura. O procurador foi também questionado se existem casos de sucesso em que a instauração de monocultivos de arroz em comunidades tradicionais (ribeirinhas, indígenas, quilombolas ou de agricultores familiares) tenha gerado uma melhora na qualidade de vida dessas pessoas, e ainda se haverá uso de agrotóxicos no cultivo do arroz dentro das terras indígenas e se serão os indígenas que farão a aplicação.
Por fim, a reportagem também questionou se o projeto não seria inconstitucional, tendo em vista que as terras indígenas são de “usufruto exclusivo” dos indígenas. Frente a esses questionamentos, a assessoria de imprensa afirmou em nota que “o MPF não tem mais informações a acrescentar”.
O governo do Estado do Mato Grosso não respondeu às questões enviadas pela reportagem. A Secretaria Especial para Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, a Funai e o Sindicato Rural de Primavera do Leste também não responderam às questões enviadas pela reportagem.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos