Desafio aos ecologistas
"Comer carne não é pecado. Ecologicamente, no caso. Mas teses de que comer bife coloca em perigo o equilíbrio climático, contribuindo com o efeito estufa em medida até mais maciça do que a paixão pelos carros, não tem fundamento na prova dos números."
Comer carne não é pecado. Ecologicamente, no caso. Os vegetarianos tem as suas boas razões ao defender que o homem não tem o direito de matar e abater outros seres vivos e, mais modestamente, que uma dieta hiperproteica faz mal. Mas teses de que comer bife coloca em perigo o equilíbrio climático, contribuindo com o efeito estufa em medida até mais maciça do que a paixão pelos carros, não tem fundamento na prova dos números.
A reportagem é de Maurizio Ricci, publicada no jornal La Repubblica, 10-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E também não é verdade que a criação de novilhos subtrai recursos naturais, começando pela terra arável até a produção de cereais que poderiam alimentar o bilhão de famintos do planeta. Desse ponto de vista, os biocombustíveis são muito piores, sequestrando, para produção de gasolina, milhões de toneladas de milho.
E, em todo o caso, se existe um culpado, não é a criação de animais em geral, mas sim os métodos industriais e intensivos adotados para produzir carne e leite por muitos países ricos do Ocidente: mais do que com o bife, é preciso acertar as contas com os hambúrgueres.
Essas são as conclusões às quais Simon Fairlie chega, a quem podemos definir mais como um ativista rural do que um ecologista, em um livro "Meat. A Benign Extravagance", recém publicado na Inglaterra, que tem, de passagem, o mérito de ensinar a tomar com cautela tabelas e estatísticas, até quando vêm de grandes organizações internacionais.
Comecemos pelo metano. É um dos gases do efeito estufa mais poderosos. O seu ciclo é muito mais breve do que o gás carbônico. Em 12 anos, se dispersa, enquanto o CO2 continua agindo por alguns séculos. Mas, enquanto existe, ele influi no clima, aquecendo o planeta, até 25 mais do que o gás carbônico. Uma boa quota do metano que, todos os dias, é liberado na atmosfera provém das criações de animais. Segundo um estudo, já famoso, da FAO, o órgão da ONU que se ocupa da agricultura, cerca de 18% do efeito estufa é determinado pelo metano ligado às criações de animais. Mais do que os 14% que provêm dos transportes.
Portanto, o bife é pior do que o carro? Na realidade, não é assim. Aqueles 14% dos carros levam em consideração apenas as emissões de gases do efeito estufa devidos ao consumo direto de combustíveis fósseis, como diesel e gasolina. Se acrescentarmos as emissões devidas à extração de petróleo, a fabricação de automóveis, a construção de estradas e aeroportos, o número, provavelmente, duplica. Mas e aqueles 18%?
A FAO, explica Fairlie, soma três componentes diferentes, mais ou menos do mesmo valor. Só 6% se devem ao metano emitido pelos sistemas digestivos, principalmente dos ruminantes, como os bovinos. Outros 6% são o resultado da fermentação e do tratamento do esterco. Mas, se não se usasse o esterco como adubo, usaríamos fertilizantes químicos, que emitem óxido de enxofre exatamente como o esterco.
Enfim, os últimos 6%, efeito da destruição das florestas, para dar lugar aos pastos. É um problema principalmente brasileiro, circunscrito à Amazônia. Mas os animais da Amazônia representam só 5% dos criadouros mundiais. Para chegar àqueles 6%, destaca Fairlie, a FAO multiplica em nível mundial os efeitos do desmatamento no Brasil, que se devem, além disso, mais do que às criações de animais, à expansão dos cultivos de soja, que depois acabam nas rações dos criadouros ocidentais.
Tudo somado, considerando que o metano da digestão é ineliminável, Fairlie calcula que os criadouros contribuem com o efeito estufa pela metade do que é declarado pela FAO: pouco mais de 9%, bem distante do impacto dos carros.
Porém, mesmo que se polua menos do que o previsto, a crescente paixão mundial pelos bifes e costelinhas de porco não retira alimento dos pobres? Segundo o cálculo tradicional, um hectare destinado à criação de vacas produz um décimo das proteínas que o mesmo hectare forneceria se cultivado com cereais. Mas é um cálculo abstrato. Se considerarmos as perdas, que são determinadas no cultivo e na preparação dos cereais, o relatório cai, segundo Fairlie, para 3 a 1.
Além disso, pelo menos metade das vacas e dos novilhos do mundo se alimenta do pasto dos terrenos não adaptados para o cultivo. São, por assim dizer, proteínas a mais que, de outra forma, não existiriam. O problema são, pelo contrário, os criadouros intensivos em que são fornecidos diretamente aos animais cereais adaptados ao consumo humano. São 600 milhões de toneladas de cereais por ano, dos quais, na hipótese de Fairlie, se extraem 200 milhões de toneladas de alimentos, sob forma de bifes e almôndegas. Aqueles 400 milhões de toneladas de alimentos, que desaparecem nos estômagos dos animais, seriam suficientes para saciar 1,3 bilhões de pessoas, 300 milhões a mais do que a estimativa oficial das pessoas desnutridas.
Não é um caso de consciência universal. Dois terços daqueles 600 milhões de toneladas de cereais são utilizados nos criadouros dos países industrializados, em benefício das mesas de 20% da população mundial. Os mais glutões, nesse sentido, são os norte-americanos: um quarto daqueles 600 milhões de toneladas fornecem bifes para 5% da população do planeta.
É inevitável? Os especialistas defendem que, sem os criadouros intensivos, não havia carne suficiente para satisfazer a demanda. Se fechássemos esses criadouros de repente, teríamos metade da carne de hoje. Talvez, não é exatamente o fim do mundo. Ao contrário do que pensam muitos vegetarianos integralistas, comer carne não é (ecologicamente) pecado. Comer muita, sim.
Fuente: Instituto Humanitas Unisinos