Brasil: tentativa de excluir sociedade civil do CGEN provoca protesto em seminário
Seminário sobre acesso a recursos genéticos e proteção aos conhecimentos tradicionais promovido, em Brasília, pelo ISA, pelo Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual (Inbrapi) e pelo Institut du Développment Durable et des Relations Internationales (IDDRI), aprova moção de repúdio à proposta do Ministério da Agricultura de impedir participação da sociedade civil no CGEN. Documento foi assinado por 37 organizações brasileiras e estrangeiras
Uma moção de protesto contra a tentativa de eliminar a participação dos representantes da sociedade civil no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) foi apresentada e aprovada ontem, quinta-feira, em Brasília, durante o último dia do seminário As Encruzilhadas das Modernidades: da luta dos povos indígenas ao destino da Convenção da Diversidade Biológica (CDB). O documento foi assinado por 37 representantes de organizações e povos do Brasil, Peru, Moçambique, Costa Rica, Colômbia, Estados Unidos, Malásia e Panamá.
A moção foi lida e entregue ao secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), João Paulo Capobianco, durante o evento promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA), pelo Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual (Inbrapi) e pela organização francesa Institut du Développement Durable et des Relations Internationales (IDDRI).
O CGEN é o colegiado interministerial que regula os assuntos relativos ao acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. O Conselho conta com uma participação limitada de representantes da sociedade civil na qualidade de “convidados permanentes” sem direito a voto.
Na tarde de quarta-feira, dia 5 de outubro, o representante do Ministério da Agricultura (MAPA) apresentou uma proposta à Câmara de Procedimentos Administrativos do CGEN para acabar com a figura do “convidado permanente”, o que, na prática, significa o fim da já precária participação nas discussões do colegiado de representantes de povos indígenas e tradicionais (quilombolas, caiçaras, extrativistas, ribeirinhos etc) e de organizações da sociedade civil, como o ISA, representante da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong). O pedido será primeiro analisado pela consultoria do MMA, que detém a presidência do Conselho, mas não tem data prevista para ser votado.
Com apoio dos representantes do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o conselheiro responsável pela proposta alegou que a presença de povos tradicionais e entidades civis no CGEN tem causado “constrangimento” e inibido os conselheiros na defesa de suas posições. O funcionário do MAPA argumentou ainda que a legislação atual sobre o assunto, a Medida Provisória (MP) 2.186-16/01, não prevê a participação da sociedade no colegiado.
De fato, a MP não menciona a figura do “convidado permanente”. Ela foi criada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, no inicio de 2003, dando voz, mas não voto aos convidados, com a justificativa de que traria mais transparência e legitimidade às atividades do Conselho.
A moção aprovada no seminário afirma que a proposta do MAPA revela a “falta de democracia e o autoritarismo com que a política de acesso, repartição de benefícios e proteção de conhecimentos tradicionais vem sendo conduzida neste governo, apesar da boa vontade" da ministra. O texto exige que a sociedade civil possa participar com direito a voto do CGEN e da definição da posição do Brasil nos fóruns internacionais sobre o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais ( confira abaixo a íntegra do texto).
Conflito
Na abertura da primeira mesa do seminário, na manhã de quinta-feira, a moderadora Nurit Bensusan fez menção à tentativa de restringir a participação nos debates do CGEN. “Será que os conselheiros que fizeram essa proposta estão realmente constrangidos ou têm alguma coisa para esconder? Por que tanta resistência à presença da sociedade civil?”, perguntou.
O próprio secretário João Paulo Capobianco classificou de “sandice” a iniciativa do MAPA. “Existe um conflito dentro do governo que ninguém imaginava que pudesse acontecer. É uma disputa de agenda”, admitiu. Ele explicou que cada ministério envolvido com o assunto considera que tem a competência de decidir sobre ele.
Praticamente desde a entrada no CGEN dos “convidados permanentes”, MAPA, MCT e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) vêm tentando sucessivamente dificultar sua atuação. Além disso, o mesmo grupo ministerial está envolvido em uma disputa com o MMA por conta do Anteprojeto de Lei (APL) sobre o acesso aos recursos genéticos e a proteção aos conhecimentos tradicionais, atualmente parado na Casa Civil da Presidência da República e aguardando ser enviado ao Congresso Nacional. De um lado, a pasta do Meio Ambiente capitaneia a defesa dos direitos dos povos tradicionais. De outro, MAPA, MCT e MDIC pretendem flexibilizar a legislação e facilitar ao máximo o acesso de empresas e pesquisadores aos conhecimentos e recursos naturais desses povos.
Ainda durante o seminário, Capobianco apresentou pela primeira vez os principais pontos de uma nova versão do APL, elaborada por determinação da ministra Marina Silva para tentar contornar o impasse que se estabeleceu entre os dois grupos ministeriais. O documento causou polêmica entre os participantes do evento ( saiba mais).
Pouco depois, o representante do MMA também ouviu a leitura do documento intitulado “Diretrizes dos Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Locais para a proteção dos conhecimentos tradicionais”. O texto foi produzido durante o Caucus Indígena Internacional, reunião entre representantes de populações indígenas e tradicionais ocorrida na segunda-feira, 3 de outubro, um dia antes do início do seminário. Entre outros 15 pontos, a carta exige a participação dos povos tradicionais, com direito à voz e voto, nos fóruns internacionais sobre biodiversidade, reivindica a volorização dos conhecimentos tradicionais e denuncia o que considera o “descaso” do governo brasileiro em relação a elaboração de uma nova legislação sobre o acesso aos recursos genéticos ( confira).
Encerramento
O seminário As Encruzilhadas das Modernidades terminou ontem, 6 de outubro, depois de três dias de debates. Participaram do evento mais de 170 pessoas representantes de quase 40 organizações e 27 etnias do Brasil, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, França, Peru, Colômbia, Costa Rica, Panamá, Moçambique e Filipinas. O evento discutiu a legislação nacional e internacional sobre o tema do acesso aos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. O evento serviu como preparação à 8ª Conferência das Partes Signatárias (COP-8) da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que ocorre em Curitiba, em março de 2006.
“O seminário deixou claro que precisamos de soluções criativas para avançar na discussão. O debate internacional chegou a um limite teórico e jurídico para além do qual só é possível avançar se levarmos em conta experiências locais concretas. Não podemos ficar batendo na mesma tecla, nem ficar reclamando das mesmas coisas”, avaliou Fernando Mathias, advogado do ISA e um dos coordenadores do seminário. Para ele, os debates ocorridos em Brasília também mostraram que os povos indígenas não podem se deixar levar pelas exigências de tempo e dos ritmos ditados pela economia e pelo mercado da biotecnologia. Mathias também lembrou inúmeras manifestações de participantes que cobraram de pesquisadores e instituições científicas a incorporação dos princípios e valores da bioética e do controle social sobre a pesquisa.
Moção de protesto
Os participantes do seminário As Encruzilhadas das Modernidades: da luta dos povos indígenas ao destino da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), abaixo assinados, vêm manifestar seu protesto e indignação com a tentativa de eliminar a participação da sociedade civil e de representantes indígenas, quilombolas e de comunidades locais no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), perpetrada por representantes do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) durante a reunião da Câmara Temática de Procedimentos Administrativos, em 5 de outubro de 2005.
Esta atitude revela a falta de democracia e o autoritarismo com que a política de acesso, repartição de benefícios e proteção de conhecimentos tradicionais vem sendo conduzida neste governo, apesar da boa vontade da Ministra de Meio Ambiente, Marina Silva. Revela também a torpeza e obscuridade de órgãos e ministérios que pretendem fazer política as escuras, como se houvesse algo a esconder da sociedade.
A ampla participação da sociedade civil na construção de uma política de uso e conservação da biodiversidade no Brasil é o mínimo que pode se esperar de um país democrático, que reconhece constitucionalmente o direito e o dever da sociedade de proteger e conservar o meio ambiente, inclusive o patrimônio genético.
Por isso renovamos a exigência de participação da sociedade civil no CGEN com direito a voto, bem como na construção das posições brasileiras nos foros internacionais que lidam com meio ambiente, em especial a CDB, cuja próxima COP será realizada no Brasil.
Brasília, 06 de outubro de 2005.
AIDESEP – Asociación Interétnica de Desarollo de la Selva Peruana
Amazonlink
AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa
Associação Quilombo de Ivaporunduva
Associação Remanescente de Quilombo de São Pedro
CEMEM – Cooperativa Ecológica das Mulheres Extrativistas do Marajó
COIDI – Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauareté
COIMI – Comitê Intertribal de Mulheres Indígenas
Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado de São Paulo
CONAMI – Conselho Nacional de Mulheres Indígenas
CONAQ – Coordenação Nacional dos Quilombos
EEACONE – Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras
FEAB – Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil
FIUPAM – Federação Indígena para a Unificação e Paz Mundial
FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
Greenpeace
GRUMIN – Rede de Comunicação Indígena
GT de Sociobiodiversidade do FBOMS
ILSA – Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos
INBRAPI - Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual
INKA – Instituto Kaingang
IPCB – Indigenous Peoples Council on Biocolonialism
IPEAX – Instituto de Pesquisa Etnoambiental do Xingu
ISA – Instituto Socioambiental
ITC – Comitê Intertribal
Nupi/Cesupa – Núcleo de Propriedade Intelectual/Centro Universitário do Pará
OIBI – Organização Indígena da Bacia do Içana
ORAU – Organización Regional de Pueblos indígenas del Ucayali (Peru)
PROMETRA – Organização de Promoção de Medicina Tradicional (Moçambique)
Pueblo Kuna (Panamá)
Red de Coordinación en Biodiversidad (Costa Rica)
Rede Norte de Biodiversidade, Propriedade Intelectual e Conhecimento Tradicional
SPDA – Sociedad Peruana de Derecho Ambiental
Terra de Direitos
TWN – Third World Network
Universidade Estadual de Feira de Santana
UFBA – Universidade Federal da Bahia
Fuente: Instituto Socioambiental - ISA