Brasil: a luta pelo território Nhanderu Marangatu
A luta pelo território Nhanderu Marangatu vive hoje capítulos dramáticos, que expõem toda a injustiça do mundo branco aos povos indígenas. A expulsão dos indígenas Kaiowá Guarani de sua terra Nhanderu Marangatu data de década de 1950. Foi quando naquela região, sul do estado de Mato Grosso do Sul, chegaram os primeiros colonos brancos, os chamados “pioneiros”
Foi o tempo do surgimento das fazendas que hoje ocupam o território dos Kaiowá Guarani e também do município de Antonio João.
Um fazendeiro em particular, Pio Silva ou Pio Velho como dizem os índios mais velhos, foi quem iniciou a invasão das terras indígenas da região. Para isso ele usou de diversos artifícios, como obrigar os índios a trabalhar em sua “propriedade” em troca de caças, destruir as lavouras indígenas e plantar em seu lugar o capim colonião, ou agir de forma mais brutal com aqueles que resolviam resistir, ou seja, expulsar e matar.
Aos poucos os Kaiowá Guarani que lá habitavam foram se retirando para o Paraguai, fugindo da brutalidade dos novos ocupantes da área. Mas, como afirma o antropólogo Marcos Homero, “nunca desistiram de suas terras e querem ter o direito de usufrui-las em sua plenitude”.
A luta pela retomada dessas terras, assim como tantas outras em Mato Grosso do Sul, sempre existiu, mas se desenvolveu com maior força no final da década de 1970, quando declinava do regime militar. Antes disso era difícil para os indígenas se organizarem para lutar por suas terras e obter apoio de organizações da sociedade civil, já que o regime cerceava as liberdades individuais e coletivas. Foi em meados da década de 1980 que novas possibilidades se abriram para a luta pelas terras indígenas em todo o Brasil. Como diz Homero, “com a Constituição de 1988 um campo de possibilidades foi aberto para que os índios pudessem lutar por suas terras”.
Na constituição de 1988 foram criados dois artigos, 231 e 232, que definem os direitos dos índios, ava reko na linguagem Guarani. O artigo 231 define que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. No artigo 232 lemos que: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legitimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Mesmo estando no papel, na Constituição, esses direitos nunca foram plenamente reconhecidos. No caso dos indígenas de Mato Grosso do Sul, no que se refere às suas terras, estão confinados em 8 áreas demarcadas entre 1915 e 1928 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que antecedeu a Fundação Nacional do Índio, a Funai. Essas áreas são pequenas, sendo que somente uma delas ultrapassa os 3 mil hectares, e a população indígena foi crescendo e se amontoando nessas pequenas ilhas no território que no passado foi todo deles.
Os Kaiowá Guarani de Nhanderu Marangatu, viviam na chamada aldeia Campestre, onde em 1983 foi assassinado o líder indígena Marçal de Souza, uma área de míseros 11 hectares doados a eles pelo município de Antonio João. Esse minúsculo espaço, que para o antropólogo Marcos Homero não pode ser chamado de aldeia, tornou-se logo insuficientes para as demandas dos indígenas. Ali não podiam ter sua qualidade vida, como conta o atual capitão de Nhanderu Marangatu, Loretito. “Nós precisávamos de mais espaço para plantar nossas roças, para coletar lenha. Campestre ficou pequena para nós”. Por isso, em 1998, cansados de esperar, resolveram voltar às suas terras, ocupando algumas terras dentro dos limites de seu Tekoha, seu território. Era uma estratégia para pressionar a Funai para que iniciasse o processo de regularização fundiária de suas terras ancestrais.
Naquele momento foi proposto pelos fazendeiros de que os índios esperassem pelo processo de identificação de suas terras pela Funai, ocupando uma área de 26 hectares dentro da fazenda Fronteira. Eles por sua vez, numa demonstração de boa vontade para a resolução do conflito, aceitaram ocupar temporariamente essa área. Foi quando veio a campo o Grupo de Trabalho (GT) encarregado de identificar e delimitar a terra indígena. O GT foi coordenado pelo antropólogo Rubem Tomas de Almeida, que concluiu seus trabalhos reconhecendo 9.300 hectares como terra indígena Nhanderu Marangatu.
É interessante notar que o processo administrativo de reconhecimento de áreas indígenas foi regulamentado no ano de 1996 pelo Decreto 1775, pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim. O mesmo Jobim que hoje como presidente do Supremo Tribunal Federal cancelou a homologação, último passo do processo administrativo, da terra Nhanderu Marangatu. Esse decreto determina que cabe a Funai conduzir o processo administrativo de reconhecimento de uma área indígena, que a Funai deve formar o GT que irá identificar e delimitar a área, que o Ministro da Justiça deverá avaliar o relatório desenvolvido pelo GT e emitir portaria reconhecendo a validade do relatório e que o Presidente da República dá o último passo no processo, homologando a área como reserva indígena.
Foi o que aconteceu com Nhanderu Marangatu, mas cabe aqui relatar alguns pormenores dessa história. Feito o relatório do GT, terminado e entregue em 1999, coube aos supostos donos da área em conflito um recurso, um contraditório, recorrendo do conteúdo do relatório. Isso foi feito pelos fazendeiros, que também contestaram o processo administrativo na justiça. Enquanto isso o relatório do GT ia sendo esquecido nas gavetas do Ministério da Justiça. Somente em 2002, a terra é declarada área indígena, mas então a Justiça Federal do MS emite decisão favorável aos fazendeiros paralisando o processo administrativo, que estava na fase de colocação dos marcos demarcatórios da área indígena. O processo ficou paralisado até o ano de 2004, quando um recurso da Procuradoria foi vitorioso e conseguiu novamente colocar o processo em andamento. Em outubro de 2004 foram postos os marcos.
É importante frisar que nesse período, havia entre as crianças Kaiowá Guarani daquele região um grave problema de desnutrição, e para os indígenas a solução não estava em receber cestas básicas da Fundação Nacional de Saúde, mas sim em voltar às suas terras para poderem plantar seus alimentos, ou seja, se autodeterminar. Foi quando que no mesmo mês de outubro de 2004 ocuparam novas áreas de seu Tekohá, nos limites da fazenda Morro Alto, e plantaram várias roças para alimentar suas crianças, numa área em torno de 400 hectares, segundo o antropólogo Marcos Homero. Cerca de um mês e meio depois de as roças estarem plantadas veio a notícia de que haveria uma reintegração de posse, solicitada pelo proprietário da fazenda Morro Alto, que devido aos recursos do Ministério Público Federal acabou por ser adiada várias vezes.
Em março de 2005 havia grande expectativa de que o presidente pudesse homologar a terra e assim impedir a reintegração de posse. “Ninguém sabia o que iria ocorrer primeiro, se a homologação ou a reintegração de posse”, conta Marcos Homero. No dia 28 deste mês chega à Procuradoria da República em Dourados um fax oriundo do Juiz em Ponta Porã, Odilon de Oliveira, avisando que a reintegração seria cumprida no dia seguinte, logo pela manhã. A Policia Federal anuncia que irá cumprir a reintegração. As esperanças pareciam haver acabado, quando chega a informação de que a reintegração havia sido suspensa. Um recurso especial feito pela Procuradoria havia sido acatado pela presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, suspendendo a reintegração.
A situação de desnutrição enfrentada pelas crianças Kaiowá se mantinha e ganhou na época grande repercussão nacional e internacional, principalmente devido a mobilização dos diversos setores sociais que apóiam a luta indígena. Essa repercussão e é claro, a pressão de movimentos e entidades que apóiam os indígenas, levou o presidente Lula a atentar para questão de Nhanderu Marangatu. “Infelizmente as coisas na ceara indígena só se movimentam quando alguém morre. Quando crianças estão morrendo, quando índios estão se suicidando. Essas situações acabam por mobilizar a opinião pública e essa mobilização acaba fazendo com que alguma coisa concreta ocorra”, enfatiza o antropólogo Marcos Homero. Foi nessa conjuntura que o presidente acabou assinando a homologação da terra, em abril de 2005.
No entanto, a luta ainda não havia acabado. O processo judicial que buscava paralisar o processo administrativo de reconhecimento da terra indígena continuou em andamento, até chegar ao Supremo Tribunal Federal e cair nas mãos do agora ministro chefe do STF, Nelson Jobim, o mesmo que em 1996 havia assinado a criação do Decreto 1775 que regulamenta o processo de reconhecimento de terras indígenas. Jobim então acata o recurso dos proprietários e anula o processo administrativo de reconhecimento de Nhanderu Marangatu, mesmo depois da assinatura do presidente.
Com a anulação da homologação a reintegração de posse volta a ter validade, já que oficialmente a terra não mais pertencia aos índios. Só que agora os índios já haviam entrado em mais dois pedaços de terra localizados nos limites das fazendas Itabrasília e Santa Creusa. Assim os proprietários das duas fazendas entraram também com um recurso, pedindo a reintegração de posse junto ao TRF da 3ª Região. Usando da justificativa de que a terra não era mais homologada, o TRF decide por dar a reintegração de posse para os proprietários da Morro Alto, Itabrasília e Santa Creusa.
No dia 15 de dezembro de 2005 acontece a reintegração de posse. Com um forte aparato, que contou com 150 homens, vários carros, cachorros, cavalaria e um helicóptero, a Policia Federal, com apoio da Polícia Militar, realizou o despejo dos Kaiowá Guarani de sua terra Nhanderu Marangatu. Os indígenas não ofereceram resistência, temendo pela violência policial. Logo cedo saíram de suas casas e foram esperar pelos policiais na estrada MS 384, onde agora estão acampados em precárias condições. Também logo cedo começaram a ser intimidados pelo helicóptero da PF, que fazia rasantes sobre eles, chegando a estar a cerca de 10 metros de altura. Tal atitude gerou grande terror entre os indígenas. Outro fato lamentável foi a conivência da PF com a destruição promovida pelos fazendeiros aos pertences dos Kaiowá Guarani. Na medida em que os policiais passavam com um caminhão cedido pela prefeitura de Antonio João para retirar os pertences das famílias, fazendeiros passaram em seguida a incendiar várias casas, algumas com pertences ainda dentro.
Agora, passado um mês do despejo, os Kaiowá Guarani resistem às margens da MS 384, enfrentando condições insalubres e precárias. A fome, a dificuldade para terem água potável, a precariedade de seus barracos, a desnutrição de suas crianças, o forte calor, a poeira, além de toda a humilhação, não faz com que esse povo desista. Eles têm a convicção de que terão suas terras de volta, porque sabem que nisso está a verdadeira justiça.
A situação pela qual passam tem constrangido o governo federal e órgãos, como a Funasa e a Funai, que mostram ser morosos e muitas vezes pouco comprometidos para com a luta indígena. Agora o governo pretende tirá-los da estrada e convencê-los a irem para outra terra, procurando esconder o problema com soluções paliativas que só servirão para diminuir seu constrangimento com tal situação. A luta dos índios não interessa a eles, mas sim a imagem de suas administrações.
A anulação do processo administrativo é ainda parcial, já que os demais ministros do STF deverão votar sobre o caso provavelmente no inicio de fevereiro. Os indígenas, juntamente com entidades de apoio e movimentos sociais, procuram pressionar para que a terra volte a ser homologada e os Kaiowá Guarani daquela região voltem para sua terra, Nhanderu Marangatu. Esse é o grande anseio desse povo, algo que o homem branco e suas instituições não conseguem, ou não querem, entender.
Por Roqueto e Luu - voluntárixs do CMI-Goiânia em MS
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Fonte: Midia Independente