A questão agrícola na Rio+20

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O documento base da Rio+20, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), não dá à agricultura o lugar central que deveria ocupar no debate, além de abster-se de constatar os problemas provocados pelo modelo de desenvolvimento agrícola dominante no mundo, conhecido como agricultura industrial.

 

A agricultura, entendida no sentido amplo adotado pela FAO, inclui os cultivos temporários ou perenes, a pecuária, a pesca/aqüicultura e a exploração florestal. Ela é o maior fator de perda de biodiversidade, de destruição florestal e de desertificação em todo o mundo. Ela também é o maior consumidor de água potável (70%), além de ser o principal agente de contaminação de rios, lagos e aqüíferos. A contaminação química provocada pelo uso de adubos químicos e agrotóxicos também é um fator importante na destruição do meio ambiente nas zonas costeiras, em particular na foz dos rios onde cria imensas áreas chamadas de desertos marinhos, afetando também a pesca.

 

A agricultura tem forte relação com a questão da produção de combustíveis (álcool e biodiesel em tempos mais recentes e carvão e lenha desde muito tempo). Do ponto de vista das mudanças climáticas a agricultura é responsável por 18% das emissões de gases de efeito estufa (GEE), mais do que a queima de combustíveis nos transportes. Se combinarmos este efeito direto com as emissões provocadas pelo desflorestamento (em grande parte provocado pela expansão das áreas agrícolas) e outras emissões ocorridas em outras etapas da cadeia alimentar, chegamos acerca de 50% de emissões de GEE. Finalmente, é preciso lembrar que a agricultura concentra a maior parte da população em extrema pobreza no mundo e que não existe modelo de desenvolvimento urbano nos tempos modernos capaz de absorver este contingente.

 

A agricultura industrial tem outros efeitos negativos sobre os recursos naturais renováveis como os solos. Desde a segunda guerra mundial aproximadamente 2 bilhões de hectares de solos potencialmente agricultáveis no mundo já foram degradados, mais de 22% de toda a área disponível para cultivos, pastagens e florestas.

 

A degradação química dos solos devido às praticas agrícolas é responsável por 40% das perdas nas áreas cultivadas. Este modelo agrícola tem outro calcanhar de Aquiles, a sua dependência de recursos naturais não renováveis como petróleo, gás, fosfatos e potássio. A exaustão das reservas mundiais de petróleo já se faz sentir nos custos crescentes deste combustível. As reservas de gás têm previsão de alcançar seu pico de produção em 2025. As de fósforo já passaram por este pico e as de potássio devem alcançá-lo em mais 20 anos.

 

Na atualidade, o mundo produz comida suficiente para alimentar os mais de 7 bilhões de habitantes do planeta. A existência de mais de um bilhão de famintos se deve a problemas de pobreza e não de disponibilidade, mas no futuro próximo haverá carência absoluta de alimentos se o presente modelo produtivo não for radicalmente alterado. Os custos de produção no modelo da agricultura industrial, além das perdas das áreas cultiváveis, deverão trazer de volta o fantasma da fome endêmica em escala não vista desde o início do século vinte.

 

Frente a este quadro de crise profunda, que pode levar a terríveis problemas sociais e instabilidade política em muitos países, um grupo de entidades da sociedade civil elaborou uma proposta para a Rio+20 intitulada “Tempo de Agir”. O documento (disponível no site www.aspta.org.br) aponta para um novo modelo de agricultura baseado na produção familiar, empregando as práticas da agroecologia.

 

A agroecologia é definida como o manejo integrado dos recursos naturais (solo, água e biodiversidade) sem uso de insumos externos industriais. São policulturas integradas com criações animais e com a vegetação natural.

A agroecologia é econômica no uso de água e de energia e, além de não emitir GEEs, promove uma forte absorção de carbono. O sistema não tem efeitos contaminantes para águas, solos, produtores e consumidores e promove uma dieta saudável. Os críticos mal informados sobre estes sistemas dizem que suas produtividades são baixas e que adotar a agroecologia obrigaria a aumentar a área cultivada e, portanto, aumentar o desmatamento. Pesquisas da FAO, da Univesidade de Essex e da Academia de Ciências dos Estados Unidos, para citar apenas alguns estudos, indicam que os sistemas agroecológicos têm índices de produtividade comparáveis aos convencionais e que os preços superiores cobrados pelos produtos vendidos como orgânicos não se devem a custos de produção superiores ou produtividades inferiores, mas à relação de oferta e demanda do mercado e aos custos de comercialização dos orgânicos. Ambas as questões podem ser resolvidas com o aumento da produção agroecológica (orgânica), garantindo uma oferta de produtos de qualidade a preços mais baixos.

 

A questão mais importante a ser notada na produção agroecológica é a sua demanda de conhecimentos técnicos e de mão de obra. Diz-se que a agroecologia é “knowledge intensive” enquanto a agricultura industrial é “input intensive”. A questão do conhecimento na agroecologia deriva do fato da sua busca de grande diversificação na estratégia de mimetizar os sistemas naturais. Isto implica na necessidade de se procurar um desenho produtivo específico para cada propriedade, o que não se faz sem métodos de pesquisa que integrem o agricultor como experimentador. A questão da mão de obra não é apenas relativa às limitações de uma mecanização dos sistemas produtivos quando os mesmos são muito diversificados, mas à exigência de cuidados e informação que limita a eficiência do trabalho assalariado. Tudo isto resulta no fato de que a agroecologia opera, em condições ideais, em sistemas produtivos da agricultura familiar de pequena escala.

 

Para países como os Estados Unidos, onde o emprego agrícola é inferior a 4% do emprego total e que tem menos de dois milhões de agricultores familiares, adotar a agroecologia seria (será) dramático, pois necessitarão de gerar uma nova classe de camponeses quando o conjunto das crises acima referidas vier a destruir a sua agricultura convencional. No Brasil, apesar dos descaminhos de uma reforma agrária sempre feita à “meia boca” ainda temos perto de 4,5 milhões de agricultores familiares e potencial para mais 10 milhões capazes de adotar a agroecologia como forma de produção. Isto poderá acontecer de forma dramática pela mera força das crises que assolam a humanidade ou de forma controlada e suave se as necessárias políticas públicas forem adotadas. Dado o gravíssimo problema de pobreza mundial e nacional, o fato de que os sistemas agroecológicos sejam demandadores de mão de obra não é um problema, mas uma solução. Eles vão permitir que um enorme contingente de excluídos venha a integrar-se na sociedade de forma produtiva e não assistencial.

 

Dada a total falta de compromisso dos governos da maior parte do mundo com as exigências de mudanças drásticas na forma como o mundo produz, consome e se relaciona com a natureza, não podemos esperar muito da Rio+20, mas o que os signatários do manifesto “Time to Act” pretendem é despertar a opinião pública e continuar um embate nos planos internacional e nacionais após a conferência.

 

(*) Jean Marc von der Weid é coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA Agroecologia e Agricultura Familiar. Artigo publicado originalmente na edição de maio do Le Monde Diplomatique.

Fuente: ANA

Temas: Agroecología, Economía verde

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