Um futuro hipotecado
Abdicar da “festa frívola” e da ideologia do progresso que embalam a sociedade moderna egoísta é imprescindível para que tanto a humanidade quanto o planeta onde vive continuem a existir, pondera Nathalie Frogneaux
“Continuamos ainda hoje muito míopes nas nossas escolhas e prisioneiros da ideologia do progresso de uma humanidade que se considera soberana”. A constatação é da filósofa francesa Nathalie Frogneaux, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line sobre o legado de Hans Jonas. Na verdade, continua, “se Jonas teve a intuição do perigo tecnológico que ameaçava a humanidade futura, ele constata também que esta intuição é rara e dificilmente partilhável”. A partir dessas constatações, a filósofa questiona como se pode “agir de maneira descentralizada e não egocêntrica ou etnocêntrica? Como não optar em função de nossa única época? Como operar esta inversão do olhar e, assim, de levar em consideração os que não nos são contemporâneos, pelos que, no entanto, somos responsáveis? Como renunciar ao que Jonas chama de ‘festa frívola’ de nossa época para optar por um comportamento mais responsável (e, sem dúvida, menos dispendioso), mas também menos arrogante, mais descentralizado?” Frente a tantas dúvidas, uma coisa é certa: “Não podemos hipotecar o futuro dos humanos que está por vir”.
Nathalie Frogneaux leciona na Universidade Católica de Louvain (Louvain-la-Neuve), na Bélgica, no Instituto Superior de Filosofia. De sua vasta produção bibliográfica, citamos Emmanuel Lévinas et l’histoire (Paris-Namur: Éditions du Cerf-Presses Universitaires de Namur, 1998).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios à ética formulada por Hans Jonas?
Nathalie Frogneaux – Vou responder mais amplamente a partir d’O princípio responsabilidade, e, sem querer ser exaustiva, gostaria de salientar quatro desafios principais. A conscientização da crise tecnológica e seus riscos ecológicos, a dimensão ética de nossas ações coletivas, uma remoralização do político e, sobretudo, o sentimento de uma responsabilidade amplificada inédita.
O primeiro desafio é a tomada de consciência diante de uma ameaça global que se esconde atrás da ideologia de uma vida mais confortável. Se recolocarmos a ética da responsabilidade no contexto dos anos 1970, seu desafio era uma conscientização da situação de urgência na qual a humanidade se encontrava em razão das escolhas científico-tecnológicas da sociedade ocidental. Jonas vislumbra antecipadamente que estas escolhas serão logo seguidas pelo conjunto da população mundial. O caráter precoce e radical de sua conscientização desta crise, ligada a um sistema tecnológico cumulativo, caracteriza certamente o princípio responsabilidade. O primeiro desafio seria então de fazer compartilhar uma intuição impopular e que ia a contracorrente na sensibilidade e no otimismo do momento: a saber, a inversão possível da utopia científico-técnica, ocidental moderna em catástrofe para a humanidade inteira. Jonas pensa esta perversão de um ideal, enquanto que a época é ainda voltada aos desafios “melhoristas” e ligados ao progresso de nossas condições de vida, como a conquista do espaço ou a oposição entre capitalismo e comunismo. Neste sentido, Jonas desenvolve um pensamento global: este desafio diz respeito a todos nós, pois somos todos potencialmente vítimas destas ameaças ecológicas. Se insisto na intuição de Jonas, é porque ele não distingue nem um pouco os tipos de riscos tecnológicos (intrusão das técnicas no seio da matéria e mesmo dos organismos vivos) riscos ecológicos consecutivos (esgotamento dos recursos pelo superconsumo, poluição, mudanças climáticas, etc.). Todas estas distinções, que se tornaram evidentes hoje, somente serão possíveis mais tarde. Da mesma forma, ainda marcado pela oposição entre o comunismo e capitalismo, deixa ocultada a conivência entre tecnologia e economia para salientar o salto da ciência na era tecnológica.
Novo imperativo categórico
O segundo desafio do princípio responsabilidade é certamente mais o de ligar esta constatação da crise tecnológica e ecológica a um desafio ético, do que aos enredos políticos ou à gestão das ações coletivas. Efetivamente, a responsabilidade de nossas ações coletivas deve ser carregada por cada indivíduo: somente uma ética em nível universal será capaz de evitar um risco global. Enquanto que as questões éticas ligadas ao multiculturalismo emergiam, enquanto que o liberalismo parecia ser uma solução eficaz para conciliar as diversas concepções da vida boa, Jonas salientava a necessidade de garantir as condições de possibilidade deste debate. Neste sentido, pode-se ver a ética da responsabilidade como uma metamoral, pois ela diz respeito à condição de possibilidade de todas as éticas (mesmo a de Kant ). Esta condição é a de uma humanidade livre e responsável. O segundo desafio é, então, a radicalidade desta ética que traz um novo imperativo categórico: que uma humanidade seja feita.
O terceiro desafio seria a articulação entre a ética e o político ou a remoralização do político que corresponde ao destaque do rebaixamento ético de toda política. Um valor deve ser compartilhado por todos, independentemente das escolhas históricas e das opções particulares: o da existência humana como tal e que não deve ser melhorado. A humanidade não é um fato, mais um valor do qual continuamos responsáveis em razão do nosso poder sobre ela. Porém, esta humanidade é a condição de possibilidade de todas as opções políticas.
Responsabilidade ontológica
O quarto desafio, que é em realidade o centro da ética e da responsabilidade, consiste em redefinir o conceito e dar-lhe um valor ontológico. Ser responsável não se limita mais à sua dimensão civil (reparar os danos causados ao outro) ou penal (sofrer uma pena pelas regras infringidas). Jonas define a responsabilidade como o dever de conformar os atos a uma humanidade futura digna deste nome. Trata-se então de inverter o sentido temporal da responsabilidade do passado para o futuro e mesmo um futuro desconhecido por definição, uma vez que ele é marcado por inovações radicais. É preciso assim levar em conta todas as consequências e os desafios de sua ação: previstos, previsíveis, voluntários, involuntários ou secundários, mas também imprevisíveis e perversos. A dificuldade assim levantada é então de experimentar-se como responsável dos efeitos imprevisíveis de nossas ações coletivas sobre gerações que não nos são contemporâneas. Assim, Jonas entende situar a responsabilidade ao nível ontológico.
Em efeito, uma humanidade digna deste nome é necessariamente uma humanidade livre de suas escolhas e de seus atos e, então, responsável. Não uma humanidade que resultaria de nossas escolhas contemporâneas e seria delas finalmente o objeto, mas uma humanidade que seja o autêntico sujeito de sua existência como nós fomos. Mas estas constatações e as consequências que delas resultam estão longe de ser evidentes. Na verdade, se Jonas teve a intuição do perigo tecnológico que ameaçava a humanidade futura, ele constata também que esta intuição é rara e dificilmente partilhável. Então, ele se dá a tarefa de mobilizar de uma parte este sentimento de crise e, de outra parte, um sentimento de responsabilidade e de fazê-lo ser partilhado pelo maior número de pessoas, principalmente pela intermediação dos especialistas científicos e dos políticos.
IHU On-Line – Quais são os aspectos mais atuais do princípio responsabilidade desse filósofo?
Nathalie Frogneaux – Eu levantaria dois. Primeiramente, um aspecto atual consiste sem dúvida na articulação entre os primeiros desafios descritos na minha resposta precedente. Estamos sempre diante de um problema irresoluto de mobilizar o sentimento de uma responsabilidade amplificada. Como agir de maneira descentralizada e não egocêntrica ou etnocêntrica? Como não optar em função de nossa única época? Como operar esta inversão do olhar e, assim, de levar em consideração os que não nos são contemporâneos, pelos que, no entanto, somos responsáveis? Como renunciar ao que Jonas chama de “festa frívola” de nossa época para optar por um comportamento mais responsável (e, sem dúvida, menos dispendioso), mas também menos arrogante, mais descentralizado? Nós constatamos que mais de trinta anos após a redação d’O princípio responsabilidade uma dificuldade continua imutável: como passar da constatação da urgência e da necessidade de modificar radicalmente nosso comportamento, ao sentimento de responsabilidade que mobilizará esta mutação para que ela seja carregada por cada um. Jonas tinha, por assim dizer, antecipado a dificuldade de fazer carregar, por cada um no centro de uma cultura democrática, uma mudança radical de comportamento e de perspectiva, mas, também, a impossibilidade de fazer passar esta mudança por uma política autoritária. Hoje, é ainda a articulação entre pressão política e econômica – mas também a resistência político-econômica – e convicção individual que coloca o problema. Além disso, estamos diante da questão de encontrar os meios que mobilizam o sentimento de ameaça iminente.
Humanidade míope
Jonas preconizava, em efeito, de tirar as lições de catástrofes locais para evitar uma catástrofe global. Mas as catástrofes em escala reduzida (Chernobyl, Kathrina e mesmo Fukushima) não parecem suficientes para induzir uma mudança radical de rumo nas nossas escolhas e nossos comportamentos. Continuamos, ainda hoje, muito míopes nas nossas escolhas e prisioneiros da ideologia do progresso de uma humanidade que se considera soberana. Todavia, para Jonas, a humanidade é o que deve ser e todas as épocas e as culturas devem assumir suas fraquezas e suas ambiguidades, em todos os contextos.
Uma outra dimensão atual d’O princípio responsabilidade é certamente nossa capacidade de levar em conta nossa postura de guardião. Verdade seja dita, somos seres dotados de uma responsabilidade, quer dizer que não podemos fazer tudo do que somos (tecnológica e economicamente) capazes. Não podemos tratar a humanidade futura como o objeto de nossas escolhas. Não podemos hipotecar o futuro dos humanos que está por vir. Para Jonas, a maior responsabilidade que pode pesar sobre nós é a de que nenhuma vítima possa mais nos acusar de sua inexistência. Mas como sentir-se implicado pelas gerações que ainda não nasceram e o nascimento das quais dependem de nós? Como podemos nos sentir interpelados por elas?
Fuente: Instituto Humanitas Unisinos