Senhor do tempo

Idioma Portugués
País Brasil

Escritor Daniel Munduruku compartilha visões indígenas de trabalho e tempo: "O que importa é o bem viver".

"Eu roubo as horas para lhes dar tempo. Tempo de aprender a usar o tempo. Quem tem hora não tem tempo: tempo de olhar o tempo", diz o personagem sem nome do livro "O homem que roubava horas", de Daniel Munduruku. Assim como sua criação, o escritor é um defensor ferrenho do valor do tempo e da ideia de que ele nos pertence, e não ao relógio.

Para celebrar o Dia Internacional dos Povos Indígenas, comemorado amanhã (9), Ecoa explora essa relação diferente com o passar das horas, inspirada na educação que Daniel recebeu dos mundurukus, povo indígena do qual faz parte.

Autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior, Daniel é um dos nomes mais importantes da literatura indígena no país. Doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em linguística pela Universidade Federal de São Carlos, o escritor compartilha saberes tradicionais e nos ajuda a repensar o tempo e o trabalho na busca pelo bem viver.

Ecoa - Qual a diferença do trabalho para as sociedades indígenas e para a sociedade branca?

Daniel Munduruku - A ideia de trabalho está presente no mito judaico-cristão da criação do mundo. Quando Deus expulsa o homem e a mulher do paraíso, ele os obriga a trabalhar pelo próprio sustento. É nesse momento que a cultura surge, porque o homem, não tendo as garras da onça, nem a força, a esperteza ou a agilidade de outros seres, precisou criar instrumentos de sobrevivência.

No capitalismo, é necessário que as pessoas trabalhem e isso ainda é sustentado pela visão religiosa de que o trabalho dignifica, organiza a sociedade e cria uma certa igualdade entre as pessoas. Acontece que não é bem assim, porque os meios de produção acabam ficando nas mãos de alguns privilegiados e vira uma escravização da mão de obra. [O trabalho] virou uma espécie de prisão ou escravidão, mas que não é compreendida desse jeito.

Só que o trabalho não é isso. Ele continua sendo um meio de sustentação dos nossos corpos, e os nossos corpos precisam de pouca coisa: alimentos, casa pra morar, diversão, prazer. E acho que precisam, sim, acreditar em alguma coisa para além dessa vida, mas isso não é necessariamente ser religioso.

Os povos indígenas também precisaram se constituir como seres de cultura, organizando a família, a comunidade. Só que não desenvolveram um sistema econômico de exploração, mas de coletividade.

Não há nenhuma necessidade de se acumular bens porque o que importa para o indígena é o bem viver, é como ele vai viver a vida, em sintonia e harmonia com todos os outros seres. Para o indígena, trabalhar não é uma escravidão. Trabalhar não tem nada a ver com o tempo que vou produzir.

Por que você considera os povos indígenas como a última fronteira a ser vencida pelo sistema capitalista?

Apesar de todo esforço que a história do Brasil tem feito pra acabar com eles, para destruí-los em perseguições permanentes desde o século 16 até agora — estamos vendo a invasão dos territórios indígenas, o uso de armas pesadas, dos agrotóxicos, que é uma guerra bacteriológica, do mercúrio em território indígena para envenenar os rios — os povos originários insistentemente têm resistido a ser totalmente dizimados.

E fazem isso não apenas porque querem a vida — o capitalismo também oferece um jeito de continuar vivo. Mas porque não querem abrir mão da sua ancestralidade, da sua memória, do respeito aos antepassados e da sua luta.

A natureza não é negócio, não se vende, não se compra. Exatamente por causa dessa ideia de pertencimento, consideramos todas as coisas na natureza como nossos parentes. E parente cuida de parente, parente luta pra que o outro tenha condições dignas de sobrevivência. A natureza tem cuidado da gente durante esse período todo e cabe a nós, que somos parte dela, cuidar dela também.

Pra nós indígenas isso é muito simples. Claro que pra um capitalista isso é um absurdo. Eles acham que estão fazendo de certa forma a vontade de Deus, de um Deus que inventaram pra justificar o massacre da própria natureza, porque dizem que se tornar rico é um mérito seu. Então você se torna alguém na vida explorando o outro e não tem problema se você destrói, joga veneno. O sistema é a própria continuidade da interpretação do mito.

Por outro lado, os mitos indígenas dizem: estamos aqui pela manutenção da nossa memória ancestral. Só que nós não somos do passado, somos do presente. Somos aqui e agora e temos a obrigação de manter esse mundo aqui tal como ele está, porque assim também os nossos netos vão olhar pra trás e se sentir dignificados por isso, e vão lutar para que a natureza, esses parentes todos, humanos e não humanos, tenham direito a ter um mundo bonito.

Quais lembranças você tem em relação ao trabalho dos mais velhos, dos adultos, de quando crescia com os mundurukus?

Essa coisa do trabalho tem muito a ver com a educação. Entre os indígenas, não existe separação entre trabalho e diversão, trabalho e aprendizado, trabalho e prazer. Os povos indígenas entendem a vida de uma forma holística, cíclica, circular.

Uma criança indígena acompanha os pais em tudo o que fazem. Se a mãe vai na roça plantar uma mandioca ou coletar uma fruta, fazer qualquer serviço, a criança vai junto.

Existe uma pedagogia em cada ação, e ela é o caminho para formar um munduruku como uma pessoa completa, se entender como munduruku no mundo.

Mutirão é uma palavra de origem indígena que traduz essa lógica de trabalho coletivo. Qual a importância de se trabalhar coletivamente?

Existem várias denominações para isso, cada povo tem a sua. É algo que vem de comunidades ancestrais. Está muito presente nos quilombolas e também nos ribeirinhos. Quem é pescador quase sempre trabalha coletivamente, porque sabe da necessidade de respeitar a natureza. Quando a gente a enfrenta sozinho, a gente quase sempre perde. Não existe possibilidade de a árvore se dizer sozinha, autossuficiente. As raízes precisam ser alimentadas pelos outros seres, pela terra, e ao mesmo tempo a árvore está gerando o alimento do passarinho, do macaco, da lagarta.

Se nós somos natureza, nós fazemos parte desse sistema. Então viver coletivamente não é uma grande coisa que só os povos originários podem fazer. É algo que está no inconsciente coletivo. Eu preciso do outro.

Você acha que é possível uma conciliação do modo de trabalho capitalista com os modos de trabalho indígenas?

Não é impossível, mas são visões completamente diferentes. Um indígena pode até aceitar trabalhar de carteira assinada, se tornar um bem sucedido trabalhador da construção civil ou advogado, mas com certeza lá no interior dele vai ter sempre um incômodo de não poder fazer aquilo que ele realmente gostaria. E o que a gente realmente gostaria é de fazer nada. O que a gente quer mesmo é poder deitar numa rede e sacudir a qualquer hora do dia.

Essa é uma das características da educação indígena, que a gente perde quando entra nesse mundo maluco da cidade. A gente perde a noção de que o tempo é nosso. O tempo não é do outro, não é do relógio — é seu.

O indígena que tem um trabalho comandado pelo relógio de ponto de uma empresa vai sempre ter um vazio dentro dele, porque não existe realização quando se é escravo, mesmo que seja das horas.

Uma pessoa que vai pro batente às cinco da manhã e volta pra casa às 17 horas, ou que tem que virar a noite trabalhando, em que momento ela se realiza enquanto pessoa? No final de semana, dizem. Mas o que é um final de semana, se não um tempo contado no relógio?

O papel do Estado brasileiro é oferecer condições para que os indígenas mantenham o seu modo de vida, a sua integridade física, e consigam fazer talvez essa junção entre pensamentos. Os indígenas podem extrair da sua floresta matéria-prima para ser usada na indústria farmacêutica, por que não? Mas tem que ser no tempo deles, na lógica deles. "Precisamos de dez toneladas". Sinto muito, dez toneladas a natureza não aguenta, a lógica da natureza não é de produção dessa maneira.

Por que você diz que os indígenas vivem numa sociedade da abundância?

Justamente por serem sociedades do coletivo e olharem a natureza com esse grau de reciprocidade. Volto aqui ao exemplo da árvore: não existe possibilidade nenhuma de uma árvore viver sozinha, ela seca.

Por que no mundo não indígena a fartura só é possível pra quem tem recursos? Porque as pessoas compram, não trocam. Onde a natureza permanece e está mais ou menos intocada, existe a fartura sempre. E os indígenas sabem a hora certa de comer carne e de não comer, porque os animais precisam de tempo para a sua reprodução. Sabem a hora certa de comer peixe, goiaba ou de chupar uma manga.

Se eu hoje caço mais do que consigo comer, em vez de colocar no congelador pra comer amanhã, eu vou dividir com meus vizinhos. Amanhã, se o vizinho for caçar, eu não vou. Fico em casa, cuidando do meu filho, balançando na rede, preparando meu arco e flecha. Numa sociedade como essa, ninguém passa fome.

Essa partilha é de coisas, mas também de sentimentos, afetos. É pra tentar fazer com que o tempo da gente seja bem usado, pra ter o que comer, onde morar e, ao mesmo tempo, usufruir das outras coisas dessa vida, fazer amor, cuidar dos filhos, ouvir e contar histórias.

Fonte: UOL

Temas: Biodiversidad, Pueblos indígenas, Saberes tradicionales

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