Por uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza. Reflexões para a ação
“A Natureza, como construção social, ou seja, como termo conceitualizado pelos seres humanos, deve ser reinterpretada e revisada integralmente se não quisermos colocar em risco a vida do ser humano no Planeta”, escreve Alberto Acosta em artigo publicado na Revista da AFESE (do Serviço Exterior Equatoriano), n. 54, agosto 2010.
Alberto Acosta é economista equatoriano, professor e pesquisador da FLACSO. Foi ministro de Minas e Energia do seu país entre janeiro e junho de 2007. Presidiu a Assembleia Constituinte que escreveu a nova Constituição do Equador, entre outubro de 2007 e julho de 2008. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
“A Natureza tem muito a dizer, e já está na hora de nós, seus filhos, não continuarmos a nos fazer de surdos. E talvez até Deus escute o apelo que ressoa a partir deste país andino – o Equador – e acrescente um décimo primeiro mandamento que foi esquecido nas instruções que nos deu no Monte Sinai: ‘Amarás a Natureza, da qual fazes parte’” (Eduardo Galeano, 18 de abril de 2008).
A acumulação material – mecanicista e interminável de bens –, assumida como progresso, não tem futuro. Os limites dos estilos de vida sustentados na visão ideológica do progresso antropocêntrico são cada vez mais notáveis e preocupantes. Se quisermos que a capacidade de absorção e resiliência da terra não entrem em colapso, devemos deixar de ver os recursos naturais como uma condição para o crescimento econômico ou como simples objeto das políticas de desenvolvimento. E, certamente, devemos aceitar que o ser humano se realiza em comunidade, com e em função de outros seres humanos, como parte integrante da Natureza, sem pretender dominá-la.
Isto nos leva a aceitar que a Natureza, como construção social, ou seja, como termo conceitualizado pelos seres humanos, deve ser reinterpretada e revisada integralmente se não quisermos colocar em risco a vida do ser humano no Planeta. Para começar qualquer reflexão aceitemos que a humanidade não está fora da Natureza e que esta tem limites.
Sem negar as valiosas contribuições da ciência, devemos reconhecer que a voracidade para acumular o capital – o sistema capitalista – forçou as sociedades humanas a subordinar a Natureza, ainda que não se possa ocultar vários casos pré-capitalistas de colapsos de sociedades inteiras por terem descuidado a relação com a Natureza (Diamond, 2006). O que conta é que, de maneira cada vez mais global no capitalismo, através de diversas ideologias, ciências e técnicas, se tentou separar brutalmente o ser humano da Natureza. Foi uma espécie de corte do cordão umbilical da vida. O capitalismo, como “economia mundo” (Immanuel Wallerstein) (1), transformou a Natureza em uma fonte de recursos aparentemente inesgotável...
Neste contexto, quando se colocam os Direitos da Natureza, não se trata de renunciar à necessidade imperiosa de melhorar as condições de vida dos seres humanos, sobretudo daqueles grupos marginalizados e explorados. Também não se coloca o fechamento da porta ao amplo e rico legado científico, nem muito menos renunciar à razão para nos refugiarmos, em nossa angústia ou perplexidade pela marcha do mundo, em misticismos antigos ou de novo cunho, ou em irracionalismos políticos.
Aproveitar as potencialidades que a Natureza oferece, como o fizeram os humanos desde o começo, é inevitável. (2) A tarefa é pesquisar e dialogar com a Natureza, entendendo sempre que estamos imersos nela. Então, o que se requer é consolidar uma nova forma de inter-relação dos seres humanos com a Natureza, como parte integral da mesma. Isso implica uma compreensão científica da Natureza e ao mesmo tempo uma admiração, uma reverência, uma identidade com a Natureza, muito longe de sentimentos de posse e dominação, mas muito próxima da curiosidade e do amor.
América Latina, exportadora de Natureza
Nossa Abya Yala, como o foi a África e a Ásia, foi integrada no mercado mundial como fornecedora de recursos primários há mais de 500 anos. Desta região saiu o ouro, a prata e as pedras preciosas que financiariam a expansão do império espanhol, mas, sobretudo, o surgimento do capitalismo na Europa central. Esta riqueza fez o centro do sistema mundial da Ásia (que tinha sua própria crise interna, em particular a China) se inclinar para a Europa. E desde então estas terras americanas, sobretudo as do sul, assumiram uma posição submissa no contexto internacional ao se especializar na extração de recursos naturais para o mercado mundial.
O conhecido naturalista e geógrafo alemão, Alejandro von Humboldt (1769-1859), apelando à ciência, ratificou a nossa missão exportadora de Natureza no que seria o mundo pós-colonial. Durante a sua visita a esta parte da América a viu como territórios ameaçados pelo exercício da razão exploradora da época, a aproveitar cada vez mais os recursos naturais existentes. Contam que Humboldt – maravilhado com a geografia, a flora e a fauna da região – via os seus habitantes como se fossem mendigos sentados sobre um saco de ouro, referindo-se às suas incomensuráveis riquezas naturais não aproveitadas.
Conseguida a independência da Espanha os países da América Latina seguiram exportando recursos naturais, isto é, Natureza, do mesmo modo que o haviam feito na época colonial.
A mensagem de Humboldt encontrou uma interpretação teórica no renomado livro de David Ricardo “Princípios de Economia Política e Tributação” (1817). Este célebre economista inglês recomendava que um país devia se especializar na produção daqueles bens com vantagens comparativas ou relativas, e adquirir de outro modo aqueles bens nos quais tivesse uma desvantagem comparativa. De acordo com ele, a Inglaterra, em seu exemplo, devia especializar-se na produção de tecidos e Portugal em vinho... Sobre esta base se construiu o fundamento da teoria do comércio exterior. (3)
A partir de então, imbricada profundamente com o modelo de acumulação primário-exportador, se consolidou uma visão passiva e submissa de aceitação deste posicionamento na divisão internacional do trabalho em muitos de nossos países, ricos em recursos naturais. (4) Esta aceitação se manteve profundamente enraizada em amplos segmentos destas sociedades, como se tratasse de um DNA insuperável. Para muitos governantes, inclusive daqueles considerados como progressistas, é quase impossível imaginar-se um caminho de libertação desta “maldição da abundância” dos recursos naturais (Ver Schuldt 1995; Acosta 2009).
O desejo de dominar a Natureza, para transformá-la em produtos exportáveis, esteve presente permanentemente na região. Nos albores da Independência, após o terremoto de Caracas, que ocorreu em 1812, Simon Bolívar pronunciou uma célebre frase, que marcou a época: “Se a Natureza se opõe lutaremos contra ela e faremos com que nos obedeça”. Para além das leituras patrióticas que veem nesse pronunciamento a decisão do líder para enfrentar as adversidades, o que deve ficar claro é que Bolívar atuava de acordo com as demandas da época. Convencido estava ele, em consonância com o pensamento dominante nesse momento, de que se podia dominar a Natureza.
O curioso é que esse espírito de dominação não foi superado apesar de há muito tempo sabermos que é impossível continuar a prosseguir pelo atual caminho depredatório da Natureza. (5) E, do mesmo modo, a ilusão do extrativismo todo-poderoso, plasmado há mais de dois séculos na mensagem de Humboldt, segue vigente. (6)
A Natureza, em suma, segue sendo assumida como um elemento a ser domado, explorado e certamente mercantilizado. A Natureza, concretamente os recursos naturais, são vistos como os pilares para a construção do desenvolvimento.
Os ameaçados limites da Natureza
Diante desta envelhecida visão de dominação e exploração, sustentada no divórcio profundo entre a economia e a Natureza, causadora de crescentes problemas globais, surgiram várias vozes de alerta.
Há já quase 40 anos, o mundo enfrentou uma mensagem de advertência. A Natureza tem limites. Em 1972, no Relatório do Clube de Roma, conhecido como “Os limites do crescimento” ou o Relatório Meadows, o mundo foi confrontado com essa realidade indiscutível. Uma realidade escamoteada pela voracidade das demandas de acumulação do capital, que se sustentam na firme e dogmática crença no poder todo-poderoso da ciência. O ponto é claro, a Natureza não é infinita, tem limites e estes limites estão a ponto de serem superados. Este relatório, que desatou diversas leituras e suposições, ainda que não teve maiores repercussões práticas, deixou plantado no mundo, por um lado, um sinal de alerta, por outro, uma demanda: não podemos seguir pelo mesmo caminho, ao mesmo tempo que requeremos análises e respostas globais.
Já são muitos os economistas de prestígio como Nicholas Georgescu-Roegen, Kenneth Boulding, Herman Daly, Roefie Hueting ou Joan Martínez Alier que demonstraram as limitações do crescimento econômico. Inclusive Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, economista que não questiona o mercado nem o capitalismo, bradou contra o crescimento econômico visto como sinônimo de desenvolvimento. (7) Atualmente, se multiplicam as reivindicações, sobretudo nos países industrializados, de uma economia que propicie não só o crescimento estacionário, mas o “decrescimento”. (8)
Agora, quando os limites de sustentabilidade do mundo estão sendo literalmente superados, é indispensável buscar soluções ambientais vistas como uma matéria universal. Por um lado, os países empobrecidos e estruturalmente excluídos deverão buscar opções de vida digna e sustentável, que não representem a reedição caricaturizada do estilo de vida ocidental. Ao passo que, por outro lado, os países “desenvolvidos” terão que resolver os crescentes problemas de iniquidade internacional que eles provocaram e, em especial, terão que incorporar critérios de suficiência em suas sociedades antes que tentar sustentar, às custas do resto da humanidade, a lógica da eficiência entendida como a acumulação material permanente. Em última instância, os países ricos devem mudar seu estilo de vida que coloca em risco o equilíbrio ecológico mundial, pois desde esta perspectiva são, de alguma maneira, também subdesenvolvidos ou “mal desenvolvidos” (Tortosa). Ao mesmo tempo, devem assumir sua corresponsabilidade para dar lugar a uma restauração global dos danos provocados; em outras palavras, devem pagar sua dívida ecológica. (9)
A crise provocada pela superação dos limites da Natureza implica necessariamente em questionar a institucionalidade e a organização sociopolítica. Tenhamos presente que, “na crise ecológica não apenas se sobrecarregam, distorcem, esgotam os recursos do ecossistema, mas também os ‘sistemas de funcionamento social’, ou, dito de outra maneira: exige-se muito das formas institucionalizadas de regulação social; a sociedade converte-se em um risco ecológico” (Egon Becker, 2001). Risco que amplifica as tendências excludentes e autoritárias, assim como as desigualdades e iniquidades tão próprias do sistema capitalista: “um sistema de valores, um modelo de existência, uma civilização: a civilização da desigualdade”, como o entendia o economista austríaco Joseph Schumpeter.
Diante destes desafios, aflora com força a necessidade de repensar a sustentabilidade em função da capacidade de carga e resiliência da Natureza. Em outras palavras, a tarefa radica no conhecimento das verdadeiras dimensões da sustentabilidade, que não podem ser subordinadas a demandas antropocêntricas. Esta tarefa demanda uma nova ética para organizar a própria vida. Precisa-se reconhecer que o desenvolvimento convencional nos leva a um beco sem saída. Os limites da Natureza, aceleradamente ultrapassados pelos estilos de vida antropocêntricos, particularmente exacerbados pelas demandas de acumulação do capital, são cada vez mais notáveis e insustentáveis.
A tarefa parece simples, mas é extremamente complexa. Em vez de manter o divórcio entre Natureza e ser humano, é preciso proporcionar seu reencontro, algo assim como tentar atar o nó górdio quebrado pela força de uma concepção de vida depredadora e certamente intolerável. (10) Para conseguir esta transformação civilizatória, uma das tarefas iniciais consiste na desmercantilização da Natureza. Os objetivos econômicos devem estar subordinados às leis de funcionamento dos sistemas naturais, sem perder de vista o respeito à dignidade humana procurando assegurar qualidade na vida das pessoas.
Concretamente, a economia deve derrubar todo o arcabouço teórico que esvaziou “de materialidade a noção de produção e (separou) por completo o raciocínio econômico do mundo físico, completando assim a ruptura epistemológica que significou deslocar a ideia de sistema econômico, com seu carrossel de produção e crescimento, para o mero campo do valor” (José Manuel Naredo, 2009). (11)
Escrever essa mudança histórica é o melhor desafio da humanidade se é que não se quer colocar em risco a própria existência do ser humano sobre a terra.
Os Direitos da Natureza ou o direito à existência
As reflexões anteriores contextualizam historicamente os passos vanguardistas dados na Assembleia Constituinte de Montecristi. Situam com clareza por onde deveria marchar a construção de uma nova forma de organização da sociedade, se realmente esta pretende ser uma opção de vida, enquanto respeita e convive com a Natureza.
Nesse empenho, após conhecer o que realmente significam e apresentar os Direitos da Natureza, é preciso configurar uma estratégia de ação que comece por identificar, primeiro, os mega-direitos (Direitos Humanos, Direitos da Natureza e do Bem Viver, especialmente) e, depois, os meta-direitos (a água, a soberania alimentar, a biodiversidade, a soberania energética).
Na Constituição equatoriana de 2008, ao reconhecer os Direitos da Natureza, isto é, entender a Natureza como sujeito de direitos, e somar-lhe o direito de ser restaurada quando foi destruída, se estabeleceu um objetivo na humanidade. Igualmente transcendente foi a incorporação do termo Pacha Mama, como sinônimo de Natureza, enquanto reconhecimento de plurinacionalidade e interculturalidade.
A discussão no interior da Assembleia Constituinte em Montecristi foi complexa. Vários participantes, inclusive do bloco da situação, o majoritário, assim como membros de alto nível do próprio governo, não quiseram aceitar os Direitos da Natureza e a acusaram inclusive de uma “estupidez”. (12) Fora da Assembleia, os Direitos da Natureza foram vistos como uma “confusão conceitual” pelos conservadores do direito, essencialmente incapazes de entender as mudanças em andamento. Para eles, é difícil compreender que o mundo está em movimento permanente.
Ao longo da história legal, cada ampliação dos direitos foi anteriormente impensável. A emancipação dos escravos ou a extinção dos direitos aos afroamericanos, às mulheres e às crianças foram uma vez rechaçadas por ser considerados um absurdo. Demandou-se que ao longo da história se reconheça “o direito de ter direitos” e isto se conseguiu sempre com um esforço político para mudar aquelas leis que negavam esses direitos.
A libertação da Natureza desta condição de sujeito sem direitos ou de simples objeto de propriedade, exigiu e exige, então, um esforço político que a reconhece como sujeito de direitos. Este aspecto é fundamental se aceitamos que todos os seres vivos têm o mesmo valor ontológico, o que não implica que todos sejam idênticos.
Dotar a Natureza de Direitos significa, então, estimular politicamente sua passagem de objeto a sujeito, como parte de um processo centenário de ampliação dos sujeitos do direito, como recordava já em 1988 Jörg Leimbacher, jurista suíço. A questão central dos Direitos da Natureza, de acordo com o mesmo Leimbacher, é resgatar o “direito à existência” dos próprios seres humanos. Este é um ponto medular dos Direitos da Natureza. Insistamos até o cansaço que o ser humano não pode viver à margem da Natureza. Portanto, garantir a sustentabilidade é indispensável para assegurar a vida do ser humano no planeta. Esta luta de libertação, enquanto esforço político, começa por reconhecer que o sistema capitalista destrói suas próprias condições biofísicas de existência.
A conjuntura político do momento constituinte, a intensidade do debate e o compromisso de um grupo de constituintes, assim como também contribuições de vários especialistas na matéria, inclusive o oportuno texto escrito por Eduardo Galeano, no qual destacava a importância da discussão que se travava em Montecristi, (13) permitiram que finalmente se aceitasse esta iniciativa depois de um árduo trabalho. Certamente, neste ponto seria preciso levar em conta todas as contribuições e as lutas do mundo indígena, onde Pacha Mama é parte consubstancial de suas vidas. (14)
Além do fato de que a Natureza faz parte ativa da cosmovisão indígena, em que os seres humanos estão imersos na Natureza, a ideia de dotar de direitos a Natureza tem antecedentes inclusive no mundo ocidental. Esta tese já foi recolhida por Ítalo Calvino no século XIX, quando recordava que o barão Cosimo Piovasco de Rondò, conhecido como “o barão das árvores”, durante a Revolução Francesa propôs um “projeto de Constituição para um ente estatal republicano com a Declaração dos Direitos Humanos, dos Direitos das Mulheres, das Crianças, dos Animais Domésticos e dos Animais Selvagens, incluindo pássaros, peixes e insetos, assim como plantas, quer sejam árvores ou leguminosas e ervas”. (15)
Apesar dos avanços constitucionais obtidos, desde a entrada em vigor da nova Constituição equatoriana, em outubro de 2008, se transitou por uma vereda complicada no que se refere à aplicação de suas normas, patrocinadas pelo Executivo, que contradizem princípios constitucionais no campo dos direitos ambientais e da Natureza especialmente. Portanto, conscientes de que não será fácil cristalizar estas transformações no Equador, sabemos que sua aprovação será ainda muito mais complexa em nível mundial. Sobretudo na medida em que estas afetam os privilégios dos círculos de poder nacionais e transnacionais, que farão o impossível para deter este processo de libertação. Mais, a partir da vigência dos Direitos da Natureza é indispensável vislumbrar uma civilização pós-capitalista.
Tendo um marco referencial constitucional transformador como o de Montecristi a tarefa consiste em enfrentar democraticamente a luta pela vida, que é o que está realmente em jogo. E, certamente, será necessário colocar em prática uma estratégia internacional para poder potencializar tantos princípios de vanguarda que a Constituição equatoriana tem, como poderia ser impulsionar a Declaração Universal dos Direitos da Natureza.
Antes de propor algumas reflexões sobre como os Direitos da Natureza poderiam ser incorporados à política internacional do Equador, reconhecendo de antemão a importância de uma gestão diplomática profundamente renovada e renovadora, dediquemos algumas linhas a discutir a relação e as diferenças entre Direitos Humanos e Direitos da Natureza.
Os Direitos Humanos e os Direitos da Natureza
A vigência dos Direitos da Natureza coloca mudanças profundas. Gudynas é claro a este respeito, é preciso transitar do atual antropocentrismo ao biocentrismo. Trânsito que exige um processo de transição sustentável e plural. A tarefa, no dizer de Roberto Guimarães, é organizar a sociedade e a economia assegurando a integridade dos processos naturais, garantindo os fluxos de energia e de materiais na biosfera, sem deixar de preservar a biodiversidade do planeta.
Portanto, esta definição pioneira em nível mundial, de que a Natureza é sujeito de direitos, é uma resposta de vanguarda frente à atual crise civilizatória. E como tal, foi sendo assumida em amplos segmentos da comunidade internacional, consciente de que é impossível continuar com um modelo de sociedade depredadora, baseada na luta dos seres humanos contra a Natureza. Não vale mais a identificação do bem-estar e da riqueza como acumulação de bens materiais, com as consequentes expectativas de crescimento econômico e consumo ilimitados. Neste sentido é necessário reconhecer que os instrumentos disponíveis para analisar estes assuntos já não servem. São instrumentos que naturalizam e convertem em inevitável este padrão civilizatório. São conhecimentos de matriz colonial e eurocêntrica, como acertadamente assinala o venezuelano Edgardo Lander.
Ao reconhecer a Natureza como sujeito de direitos, na busca desse indispensável equilíbrio entre a Natureza e as necessidades dos seres humanos, supera-se a versão constitucional tradicional dos direitos humanos a um ambiente saudável, presentes há muito tempo no constitucionalismo latino-americano. Em sentido estrito, assim como propõe Eduardo Gudynas (2009), urge distinguir que os direitos a um ambiente saudável fazem parte dos Direitos Humanos, e que não necessariamente implicam Direitos da Natureza. A finalidade desta distinção é indicar que as formulações clássicas dos Direitos Humanos de terceira geração, isto é, os direitos a um ambiente saudável ou qualidade de vida, na essência são antropocêntricos, e que devem ser entendidos separadamente dos Direitos da Natureza.
Nos Direitos Humanos o centro está posto na pessoa. Trata-se de uma visão antropocêntrica. Nos direitos políticos e sociais, isto é, de primeira e segunda geração, o Estado reconhece aos cidadãos esses direitos, como parte de uma visão individualista e individualizadora da cidadania. Nos direitos econômicos, culturais e ambientais, conhecidos como direitos de terceira geração, se inclui o direito a que os seres humanos gozem de condições sociais equitativas e de um meio-ambiente saudável e não contaminado. Procura-se evitar a pobreza e a deterioração ambiental que impacta negativamente na vida das pessoas.
Os direitos de primeira geração se enquadram na visão clássica da justiça: imparcialidade diante da lei, garantias cidadãs, etc. Para cristalizar os direitos econômicos e sociais passa-se à justiça redistributiva ou justiça social, orientada a resolver a pobreza. Os direitos de terceira geração configuram, além disso, a justiça ambiental, que atende, sobretudo, a demandas de grupos pobres e marginalizados em defesa da qualidade de suas condições de vida afetada por destruições ambientais. Nestes casos, quando há danos ambientais, os seres humanos podem ser indenizados, reparados e/ou compensados (Berienstein, 2010).
Na Constituição de Montecristi, dos direitos referidos ao ambiente, isto é, dos Direitos Humanos de terceira geração, se derivam mandatos constitucionais fundamentais. Um direito chave tem a ver com processos de desmercantilização da Natureza, como foram a privatização da água ou a introdução de critérios mercantis para comercializar os serviços ambientais. Concretamente, “os serviços ambientais não serão suscetíveis de apropriação; sua produção, prestação, uso e aproveitamento serão regulados pelo Estado”, reza o artigo 74 da Constituição.
A água foi declarada na Assembleia Constituinte de Montecristi como um direito humano fundamental. A água, portanto, não pode ser vista como um negócio. Por isso, no início do texto constitucional se estabeleceu, no artigo 12, que “o direito humano à água é fundamental e irrenunciável. A água constitui patrimônio nacional estratégico de uso público, inalienável, imprescritível e essencial para a vida”.
A transcendência destas disposições constitucionais é múltipla.
- Enquanto direito humano se superou a visão mercantil da água e se recuperou a do “usuário”, isto é, a do cidadão e da cidadania, em vez do “cliente”, que se refere só àquele que pode pagar.
- Enquanto bem nacional estratégico, se resgatou o papel do Estado na outorga dos serviços de água; papel no qual o Estado pode ser muito eficiente, como na prática ficou comprovado.
- Enquanto patrimônio se pensou no longo prazo, isto é, nas futuras gerações, libertando a água das pressões de curto prazo do mercado e da especulação.
- E enquanto componente da Natureza, se reconheceu na Constituição de Montecristi a importância da água como essencial para a vida de todas as espécies, para onde apontam os Direitos da Natureza.
Esta constituiu uma posição de avanço em nível mundial. Dois anos depois da incorporação deste mandato constituinte referido à água, em 28 de julho de 2010, a Assembleia Geral da ONU aprovou a proposta do governo do Estado Plurinacional da Bolívia declarando “o direito à água segura e ao saneamento como um direito humano”. Este é um direito “essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos”, em conformidade com esta declaração.
A soberania alimentar, que incorpora a proteção do solo e o uso adequado da água, que representa um exercício de proteção aos milhares de camponeses que vivem de seu trabalho e, certamente, a existência digna de toda a população, se transformou em outro eixo condutor das normativas constitucionais. Este deveria ser o ponto de partida das políticas agrárias e inclusive da recuperação do verdadeiro patrimônio nacional: sua biodiversidade. Na Constituição se plasma inclusive a necessidade de conseguir a soberania energética, sem colocar em risco a soberania alimentar ou o equilíbrio ecológico.
Por outro lado, nos Direitos da Natureza o centro está posto na Natureza, que inclui, certamente, o ser humano. A Natureza vale por si mesma, independentemente da utilidade ou dos usos que o ser humano fizer dela. É isto que representa uma visão biocêntrica. Estes direitos não defendem uma Natureza intocada, que nos leve, por exemplo, a deixar de fazer plantações, pesca ou pecuária. Estes direitos defendem a manutenção dos sistemas de vida, os conjuntos de vida. Sua atenção se fixa nos ecossistemas, nas coletividades, não nos indivíduos. Pode-se comer carne, peixes e grãos, por exemplo, enquanto se assegure que haja ecossistemas funcionando com suas espécies nativas.
A representação destes direitos corresponde às pessoas, comunidades, povos ou nacionalidades. A despeito dos adversários desta proposta vanguardista, a Constituição é categórica a este respeito em seu artigo 71: “A Natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. Toda pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade poderá exigir à autoridade pública o cumprimento dos direitos da Natureza. Para aplicar e interpretar estes direitos observar-se-ão os princípios estabelecidos na Constituição, no que procede”.
Os Direitos da Natureza – neste caso outorgados pelo povo equatoriano, quem em última instância redigiu a Constituição através de seus constituintes e que aprovou a com uma amplíssima maioria no referendo de 28 de setembro de 2008 – são considerados direitos ecológicos para diferenciá-los dos direitos ambientais da opção anterior. Na Constituição equatoriana – diferente da boliviana – estes direitos aparecem de forma explícita como Direitos da Natureza. São direitos orientados a proteger ciclos vitais e os diversos processos evolutivos, não apenas as espécies ameaçadas e as áreas naturais.
Neste campo, a justiça ecológica pretende assegurar a persistência e a sobrevivência das espécies e seus ecossistemas, como conjuntos, como redes de vida. Esta justiça é independente da justiça ambiental. Não é de sua incumbência a indenização aos humanos pelo dano ambiental. Expressa-se na restauração dos ecossistemas afetados. Na realidade, devem-se aplicar simultaneamente as duas justiças: a ambiental para as pessoas, e a ecológica para a Natureza.
Seguindo com as reflexões de Gudynas, os Direitos da Natureza necessitam e ao mesmo tempo originam outro tipo de definição de cidadania, que se constrói no social, mas também no ambiental. Esse tipo de cidadania é plural, já que depende das histórias e dos ambientes, acolhem critérios de justiça ecológica que superam a visão tradicional de justiça. Gudynas denomina estas cidadanias de “meta-cidadanias ecológicas”.
Por uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza
Retomando a análise anteriormente realizada, reconhecendo a necessidade de fazer propostas inovadoras, como fez o governo equatoriano com a Iniciativa Yasuní-ITT para deixar o petróleo no subsolo (16) ou com o imposto Daly-Correa a ser cobrado por cada barril de petróleo que seja explorado em nível internacional, destacando a conquista do governo boliviano para que se declare a água como um direito humano fundamental, o Equador, seu governo, deve propor-se uma estratégia coerente que lhe permita assumir posições de liderança na construção de uma sociedade humana equitativa e sustentável.
Esta tarefa eminentemente política, que deve ser inserida na condução das relações internacionais, exige, em primeiro lugar, conhecer o que já foi feito neste campo. Em particular, quais são os passos dados para propiciar uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza.
Estes temas foram discutidos em diversos espaços ainda antes da aprovação da Constituição de Montecristi. Contudo, esta Constituição, com sua declaração que assume a Natureza como sujeito de direitos e abre a porta para a restauração integral da Natureza afetada pela ação dos seres humanos, teve um impacto positivo em amplos segmentos da opinião pública internacional e se converteu imediatamente em um desafio. Este é definitivamente o passo de maior transcendência até agora. É uma proposta de indiscutível vanguarda.
A tomada de consciência a nível mundial sobre os problemas ambientais globais tem história. Desde a metade do século XX começaram a aparecer várias instâncias preocupadas com a terra: a União Mundial para a Conservação da Natureza (UICN), em 1948; a Conferência para a Conservação e Utilização dos Recursos, em 1949; o Convênio de Genebra sobre o Direito do Mar, em 1958; ou, o Tratado Antártico, em 1959, para citar algumas das organizações mais destacadas.
Desde a Conferência de Estocolmo em 1972 os problemas ambientais são definidos como temas que ultrapassam as fronteiras dos Estados nacionais. Já são várias as conferências mundiais dedicadas ao ambiente, como a do Rio de Janeiro em 1991 e a de Johannesburgo em 2001, com indubitável influência nos países e nas próprias relações internacionais. Paulatinamente, estes problemas ambientais globais modificaram a forma como se aborda este desafio e a visão que os seres humanos têm sobre a Natureza.
Uma reivindicação formal por ações globais consertadas foi formulada em 1980. No “Relatório Norte-Sul: Um programa de sobrevivência”, elaborado por uma comissão presidida pelo ex-chanceler Willy Brandt, se estabeleceu que “estamos cada vez mais, gostemos ou não, frente a problemas que afetam a humanidade em seu conjunto, razão pela qual as soluções para estes problemas são inevitavelmente internacionais. A globalização dos perigos e dos desafios demanda políticas internacionais que ultrapassam os temas paroquiais ou, inclusive, nacionais”.
O direito, as instituições e as políticas evoluíram. Desde aquelas agora distantes declarações até a data presente são muitas as mudanças introduzidas. Também a sociedade civil, com crescente consciência global, começa também a colocar em prática uma série de ações e iniciativas. É cada vez mais evidente a necessidade de cooperar para proteger a vida do ser humano e do próprio planeta.
Como recorda Jörg Leimbacher (2008), em 1989, em Seul, na Coreia do Sul, as igrejas evangélicas, pensando em uma ampliação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, trabalharam em uma proposta de “Direitos para as futuras gerações – Direitos da Natureza”. Nessa ocasião, foi proposto um rascunho de declaração. As discussões continuaram em sucessivos encontros em Genebra, em 1990, em São Paulo, em 1991, até que em Wellington, em 1992, não foi discutido o tema. Seria em 1997, em Debrecen, que se voltou a colocar a discussão do tema desde a perspectiva dos Direitos da Natureza no marco da visão bíblica da criação.
Na linha destas discussões, levadas a cabo na sociedade civil, se deve também assinalar que já há propostas de declaração dos Direitos da Natureza. Por exemplo, há a Declaração Universal dos Direitos da Terra, impulsionada pela EnAct International; uma organização impulsionada por Comac Cullinam, jurista sul-africano, que trabalhou sobre esta matéria e tem vários estudos a este respeito. Também há a proposta de George Winter, da Casa do Futuro (Haus der Zukunft), da Alemanha.
Retrocedendo um pouco no tempo, posto que se está pontuando alguns esforços a partir da sociedade civil, é oportuno reconhecer a valiosa contribuição de Christopher Stone, considerado por Leimbacher como o “pai dos Direitos da Natureza”, ou de Albert Schweizer, por exemplo.
Todos estes esforços mencionados e muitos outros prepararam o terreno para caminhar na busca de um reencontro do ser humano com a Natureza, que é do que definitivamente se trata. Então, caso se queira propor como opção a formulação da Declaração Universal dos Direitos da Natureza, seria preciso analisar quais seriam os meios e os caminhos a empregar.
A Bolívia, em cuja Constituição não constam os Direitos da Natureza, como deixamos claro anteriormente, assumiu uma importante liderança. Por conta do fracasso da Cúpula de Copenhague em dezembro de 2009, Evo Morales convocou a Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra, que aconteceu em Cochabamba em abril de 2010. Ali, além de promover o tema dos Direitos da Natureza, se propôs a criação de um Tribunal Internacional para julgar os crimes ambientais.
Mais adiante, em julho do mesmo ano, a Bolívia conseguiu outra conquista substantiva com a declaração da água como um direito humano fundamental no seio da ONU. Esta experiência pode servir como outro ponto de referência.
Em conformidade com os resultados desta ação diplomática boliviana, para impulsionar a Declaração dos Direitos da Natureza se deveria dar lugar à conformação de um bloco de países comprometidos com o tema, que coloque estas lutas em um marco de colaboração e complementação internacional, considerando que este tipo de ação levará tempo para se cristalizar. E que, portanto, estas ações devem contar com uma estratégia de longo prazo, que permita incorporar adeptos à causa.
Uma ação desta natureza exige um esforço sustentado de coordenação e respaldo por parte da sociedade civil de cada um dos países envolvidos neste empenho, assim como também de outros atores da sociedade civil mundial. Não se trata, simplesmente, de uma ação dos governos. Portanto, este esforço a nível diplomático tem que ser complementado com atividades e campanhas propostas e inclusive dirigidas a partir da sociedade civil. Esta conclusão é fundamental considerando que em não poucas ocasiões as mudanças de governo podem levar a perder o rumo traçado inicialmente ou inclusive os governos proponentes podem também perder o interesse nos projetos iniciados.
Se o governo boliviano conseguiu uma importante conquista com a declaração da água como direito humano fundamental, o Equador, com maior razão e argumentos de sobra, poderia liderar este tipo de iniciativa. Isto implica na organização de uma unidade especializada no Ministério de Relações Exteriores do Equador que trabalhe sistematicamente para construir uma frente comum para patrocinar a questão dos Direitos da Natureza na ONU. Igualmente, esta unidade deverá coordenar todas as ações que o Estado equatoriano realiza no exterior em temas ambientais. Não é possível que se sigam mantendo posições diversas e inclusive contraditórias como aquelas propiciadas pelo Ministério do Ambiente.
Contudo, deve ficar claro que se deve estudar todas as opções a seguir no âmbito internacional, conscientes de que não é possível esperar que uma Declaração como a que aqui se propõe dê resultados imediatos.
Deve-se recordar que os Direitos Humanos não surgiram como conceitos totalmente desenvolvidos. Desde a Revolução Francesa até a sua Declaração Universal, em dezembro de 1948, foram muitas as lutas acumuladas. Sua concepção e aplicação implicaram e implicam um esforço continuado. E desde então cada novo direito implica um continuado esforço político, no marco de redobráveis esforços diplomáticos. Assim, o Direito Humano à educação e ao trabalho, incorporado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, exigiu um prolongado processo de debate e construção. Algo similar aconteceu com o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ou com a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Tenha-se presente também o difícil que é a aceitação na prática dos Direitos Humanos, assumidos formalmente como um mandato universal já em 1948. Isto, contudo, não deve levar ao desânimo. Pelo contrário, é indispensável pensar nesta estratégia e no caminho diplomático a seguir.
São muitas as portas de entrada, caso se queira abordar este tema na ONU. Por isso, na minha opinião, é o campo onde se deve desenvolver a maioria destes esforços políticos. Isto não impede, certamente, de apoiar a adoção dos Direitos da Natureza em outros âmbitos ou em outros países através de mudanças constitucionais, por exemplo.
Sem pretender esgotar o tema, apenas como ponto de referência se poderia pensar em agir no Conselho de Direitos Humanos da ONU; ali se poderia encadear o respeito dos Direitos Humanos com a necessidade de garantir um manejo ecológico equilibrado para poder garanti-lo efetivamente. Também se poderiam considerar outras portas de entrada nos programas da ONU que abordam temas ambientais como o United Nations Enviromment Programme (UNEP) ou a Division of Envirommental Law and Conventions, no marco do mesmo UNEP. Certamente, a Assembleia Geral da ONU deve estar na mira desta iniciativa diplomática; aqui existem várias comissões que poderiam ser espaços para propor esta proposta.
Outro ponto a ser esclarecido é a conveniência ou não de uma declaração dos Direitos da Natureza em um texto independente dos Direitos Humanos. Há especialistas que recomendam que os Direitos da Natureza deveriam fazer parte dos Direitos Humanos. Estas não são questões insignificantes. Requer-se uma profunda pesquisa e consultas em diversos âmbitos.
Em síntese, a tarefa pendente é sumamente complexa. É preciso vencer resistências conservadoras e posições prepotentes que escondem uma série de privilégios, ao mesmo tempo que se constroem propostas estratégicas de ação dentro e fora do país. A estrita vigência dos Direitos da Natureza exige a existência de marcos jurídicos internacionais adequados, tendo em consideração que os problemas ambientais são cada vez mais temas que dizem respeito à humanidade em seu conjunto.
Notas:
1. O “socialismo realmente existente”, na realidade, formava parte desta economia-mundo. Nunca conseguiu erigir-se como uma opção alternativa em termos civilizatórios. Provavelmente, as raízes do desprezo pela Natureza no Leste e no Ocidente sejam as raízes comuns judeu-cristãs.
2. O problema surge quando não se reconhecem os limites biofísicos e não se os respeita confiando, talvez, em que os avanços tecnológicos permitirão encontrar respostas para resolver os problemas que este agir provoca, inclusive para superar esses limites.
3. Esta tese, tão mencionada e reconhecida pelos economistas, não aceitava ou não conhecia que se tratava simplesmente da leitura de uma imposição imperial. A divisão do trabalho proposta por Ricardo se plasmou no Acordo de Methuen, assinado em Lisboa em 27 de dezembro de 1703 entre Portugal e Inglaterra. Neste acordo, de apenas três artigos, seguramente o mais curto da história diplomática europeia, se estabelecia que os portugueses comprariam tecidos e produtos têxteis da Inglaterra e, em contrapartida, os britânicos concederiam trato favorável aos vinhos procedentes de Portugal. Esta relação provocaria o que depois se chamaria de “intercâmbio desigual”. No longo prazo, exportar matérias-primas não tem os efeitos multiplicadores que tem a exportação de manufaturas.
4. Convém recorda que este posicionamento não se explica unicamente pela disponibilidade de recursos naturais, mas pela imposição das potências. A Grã-Bretanha, para recordar o primeiro país capitalista industrializado com vocação global, não praticou a liberdade comercial que tanto defendia. Além disso, com sua frota impôs em várias partes do planeta seus interesses: introduziu, com a ajuda de canhões, o ópio na China, por conta da suposta liberdade de comércio ou bloqueou os mercados de suas extensas colônias exitosas para protegê-los com a finalidade de manter o monopólio de seus têxteis. Historicamente, o ponto de partida das economias exitosas se baseou em esquemas protecionistas, muitos dos quais continuam vigentes de diversas formas até hoje (Ha-Joon Chang, 2002).
5. O presidente Rafael Correa, diante dos racionamentos de energia elétrica provocados por uma prolongada estiagem, considerando-os como fruto de uma adversidade ambiental, declarou publicamente em uma de suas alocuções, que “se a Natureza com esta seca se opuser à revolução cidadã, lutaremos e juntos a venceremos, tenham certeza” (7 de novembro de 2009).
6. O próprio presidente equatoriano, em seu relatório ao País, no dia 15 de janeiro de 2009, para defender a Lei de Mineração recorreu à mesma metáfora que Humboldt quando disse que “não retrocederemos na Lei de Mineração, porque o desenvolvimento responsável da mineração é fundamental para o progresso do país. Não podemos nos sentar como mendigos no saco de ouro”. Em termos similares, ajustados às suas realidades nacionais e às conjunturas correspondentes, se expressaram outros governantes da região: Alan García ou Evo Morales, governantes de diversas orientações ideológicas, certamente.
7. Ele afirmou que “as limitações reais da economia tradicional do desenvolvimento não provieram dos meios escolhidos para alcançar o crescimento econômico, mas de um reconhecimento insuficiente de que esse processo não é mais que um meio para conseguir outros fins. (...) Não acontece somente que o crescimento econômico seja mais um meio que um fim; também acontece que para certos fins importantes não é um meio muito eficiente” (1985).
8. Aqui poderíamos citar os trabalhos de Enrique Leff ou Serge Latouche, seguidores tardios de John Stuart Mill, economista inglês, que em 1848 antecipou algumas reflexões fundacionais do que hoje se conhece como uma economia estacionária.
9. Não se trata somente de uma dívida climática. Esta dívida, que se originou com a espoliação colonial – a extração de recursos minerais ou o corte massivo das florestas naturais, por exemplo –, se projeta tanto no “intercâmbio ecologicamente desigual”, como na “ocupação gratuita do espaço ambiental” dos países empobrecidos em decorrência do estilo de vida depredador dos países industrializados. Aqui cabe incorporar as pressões provocadas sobre o meio ambiente através das exportações de recursos naturais – normalmente mal pagos e que também não assumem a perda de nutrientes e da biodiversidade, para mencionar outro exemplo – provenientes dos países subdesenvolvidos, exacerbadas pelos crescentes requerimentos que derivam do serviço da dívida externa e da proposta radical de abertura. A dívida ecológica cresce, também, desde outra vertente inter-relacionada com a anterior, na medida em que os países mais ricos superaram largamente seus equilíbrios ambientais nacionais, ao transferir direta ou indiretamente “poluição” (resíduos ou emissões) para outras regiões sem assumir pagamento algum. A isso teria que se acrescentar a biopirataria, impulsionada por várias corporações transnacionais que patenteiam em seus países de origem uma série de plantas e conhecimentos indígenas. Por isso, bem poderíamos afirmar que não há apenas um intercâmbio comercial e financeiramente desigual, mas também se registra um intercâmbio ecologicamente desequilibrado e desequilibrador.
10. Bruno Latour disse que “se trata de voltar a atar o nó górdio atravessando, tantas vezes quanto fizer falta, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a Natureza e a cultura”. A contribuição de Latour coloca profundos debates na antropologia sobre a divisão entre Natureza no singular e as culturas no plural. Empalmando as duas, a política cobra uma renovada atualidade.
11. Não nos esqueçamos de que “as assim chamadas leis econômicas não são leis eternas da Natureza, mas leis históricas que aparecem e desaparecem” (Friedrich Engels em carta a Albert Lange, 29 de março de 1865).
12. Alexis Mera, secretário jurídico da Presidência, em comunicação eletrônica enviada ao autor destas linhas, em 10 de julho de 2008, em pleno debate constituinte, dizia que “Isto não é um problema ideológico, mas técnico. Estou de acordo com todas as proteções à natureza possível. Inclusive, cheguei à conclusão pessoal que não se deve explorar o ITT. O regime de sujeitos do direito existe no planeta há 2.500 anos, aproximadamente. (...) A diferença está em que o Direito se dirige a regular as relações humanas, como centro do desenvolvimento social que se deve dar em harmonia com a natureza. Por isso, só as pessoas podem adquirir direitos e contrair obrigações. Se a natureza é sujeito de direito, significa que deve ser representada por alguém, o que é estúpido e, além disso, esse alguém poderia se opor à ação do homem. Isto não se aplica apenas à biodiversidade, mas inclusive às moscas e baratas, que deverão ser representadas. Por quem? E as bactérias, os vírus? Corresponderia que solicitemos à OMS para não erradicar a varíola, já que o vírus faz parte da natureza também e extinguimos essa ‘valiosa’ espécie”.
13. A leitura do texto de Galeano no plenário da Assembleia conseguiu consolidar uma posição que não parecia promissora no início do processo constituinte.
14. Além de tradição transcultural que considera a terra como Mãe, ou seja, como a Pacha Mama, há outras razões científicas que consideram a terra como um superorganismo vivo (Gaia), extremamente complexo, que requer cuidados e deve ser fortalecido. Inclusive há razões cosmológicas que assumem a terra e a vida como momentos do vasto processo de evolução do universo. Igualmente se ressalta o caráter das inter-retro-conexões transversal entre todos os seres: tudo está ligado a tudo, em todos os pontos e em todas as circunstâncias (Boff, 2010).
15. Ver o livro de Jörg Leimbacher, Die Rechte der Natur (Os Direitos da Natureza), Baliseia e Frankfurt am Main, 1988. A tradução para o espanhol é feita pelo autor deste escrito. É preciso observar que este e outros textos sobre esta matéria chegaram às mãos do autor destas linhas em consequência da expedição da Constituição de Montecristi. Mais, com vários especialistas em temas constitucionais, com capacidade para abrir a mente e entender a transcendência destas propostas, está se trabalhando no que, em um futuro não muito distante, poderia ser a Declaração Universal dos Direitos da Natureza.
16. Sobre este tema se pode consultar a ampla contribuição de Martínez e Acosta (2010).
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Fuente: Instituto Humanitas Unisinos