O Brasil da cobiça: Financeirização da natureza
Podemos indagar-se até onde pode levar a ganância, a avidez levada ao extremo que conduz certos seres humanos além do que é humanamente concebível. As guerras já nos mostraram o indizível, mas a fascinação pelo poder não conhece limites na mão dos aprendizes de feiticeiros. Alguns, dos quais lembramos a sede por sangue, são agora substituídos por outros, sedentos por dinheiro.
Assunto que veio se impor na paisagem midiática, e mais especificamente nas mídias independentes em torno da “Cúpula dos Povos” (evento paralelo à RIO+20), a financeirização e a mercantilização da natureza voltaram a tona na hora da décima nona Conferência sobre o clima, a COP-19, em Varsóvia. Como a cada ano, todos se sentem à mesa e conversam sobre os fenômenos climáticos que assolam o planeta. Após ter demorado uma década para concordar que existia realmente um fenômeno de aquecimento devido às atividades humanas, os “especialistas” tentam agora se acordar sobre os meios de revertê-lo, e até remediá-lo, para os mais otimistas.
Mas, da mesma forma que para o Protocolo de Quito que foi o ponto de partida desta problemática mundial e que os EUA nunca quiseram ratificar, todos os maiores poluidores do planeta se entendem sobre um statu quo ao invés de medidas efetivas para combater o problema na fonte: as emissões de gazes de efeito estufa (GEE). Desde então, vão e vêm soluções espúrias chamadas Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) que são uma porta aberta para especulações de todas as ordens. Um dos últimos é o chamado REDD, cujos “efeitos colaterais” são particularmente perversos. Com efeito, no âmbito do desmatamento por exemplo, o carbono (e outros GEE) não possuindo garantias em si se encontra associado a um espaço físico, aquele que vai captar o tal carbono, ou evitar que este escape na atmosfera (através do desmatamento). Isso gera um problema gravíssimo de cunho fundiário[1] no qual o dinheiro acaba sendo o motor e o garante da “solução”.
Assim como o José Bové alertava logo no fim do século passado: “O mundo não é uma mercadoria”, a rede Aliança RECOS, no Brasil, sustenta o mesmo estandarte de contestação há cerca de duas décadas sob a escrita de Amyra El Khalili que é sua fundadora e coordenadora. Muito cedo, Amyra que é economista e professora de engenharia financeira e foi por muito tempo operadora nas bolsas de valores percebeu, a partir do estudo do binômio água e energia, o desvio das finanças rumo à privatização dos bens comuns e à concentração de capital, e busca unir, por meios das redes, as vozes que se levantam nos quatro cantos desse imenso país.
A indignação internacional que marcou a COP-19 é uma dessas oportunidades que permitem reavivar problemáticas que não são manchetes de jornais. Muito pouco divulgadas pela grande mídia brasileira, as informações sobre essas conferências climáticas não repercutem sobre o público em geral, nem mesmo sobre o público alvo das medidas que são, ou não são, tomadas naquelas reuniões. Entretanto, esse público será em breve a próxima vítima dos projetos de Compensação de Biodiversidade ou de Créditos de Carbono[2], e é por esse motivo que as informações veiculadas pela Aliança RECOS e reprisadas por várias outras organizações através dos seus sites e listas de difusão são tão preciosas. Mais do que nunca, essa dinâmica em redes demonstra ser incontornável a fim de brecar a fuga para frente da finança em todas as atividades humanas, e pior ainda, mercantilizando produtos oriundos da natureza – ou de acesso gratuito – em detrimento às comunidades tradicionais, povos da floresta, populações economicamente excluídas (pequenos agricultores, extrativistas, índios, recicladores de lixo, entre outros, cujas produções sustentáveis e diversificadas foram cunhadas como “commodities ambientais”[3] por Amyra), colocando sua sobrevivência em risco.
Se não é exclusivo da Amazônia, pois os outros biomas brasileiros incluem também numerosas riquezas, o tema da mercantilização da natureza é um assunto que permanece ligado a esta região e a sua incrível biodiversidade. Longe dos grandes centros econômicos, aquele oceano verde tornou-se uma mina de ouro para a famigerada “economia verde”[4] que vem impor modelos de compensação das emissões que são, na realidade, “direitos de poluir” que rendem quantias fabulosas àqueles mesmos que poluem! E é o que Amyra denunciou na ocasião da COP-19, em um artigo[5] associando a Aliança RECOS ao alarido guerreiro lançado por dezenas de organizações pelo mundo: “Parem com a aquisição corporativa do clima!”
Entretanto, frente a realidades tais como as parcerias transatlântica (ATP) ou pacífica (TPP) que estão em fase avançada de negociação, esses movimentos pontuais parecem irrisórios e uma conscientização muito mais ampla e significativa é necessária. Por esse motivo, acho que a postura de escrever e publicar nossas apreensões, mas também nossas esperanças, é uma forma construtiva de avançar nesse sentido. É o que buscamos provocar no Brasil, através da rede Aliança RECOS, mas também “saindo das fronteiras”, como aqui (AgoraVox) por exemplo, ou também na edição em português do Pravda-Ru, porque na realidade, a problemática está na escala do mercado: é mundial.
Por Lucas Matheron*
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[1] Glass, V. « Projetos de carbono no Acre ameaçam direito à terra »
[2] PSTU Info « Conflito contra projeto de ‘economia verde’ faz primeira vítima no Acre »
[3] Conceito cunhado por Amyra El Khalili em 1990, enquanto economista, para diferenciar produtos oriundos da natureza (ou não produzidos pelo homem) que garantem a preservação e conservação dos bens comuns e vitais para a sobrevivência da humanidade. As commodities ambientais são as produções das comunidades economicamente excluídas e/ou em risco de exclusão social, fabricadas a partir de sete matrizes: água, energia, biodiversidade, florestas, minério, reciclagem e redução de poluentes – água, solo e ar, em função de critérios socioeconômicos e ambientais construídos de forma horizontal, a partir da base, a partir dos próprios interessados, em cada região e ecossistema onde são produzidas. Ler a respeito. Ver aquí
[4] Entrevista G1-Rondônia sobre o conceito de "economia verde" versus "economia socio-ambiental"
[5] El Khalili, A. « A captura corporativa da COP-19 »
* Lucas Matheron, francês de origem, radicado no Brasil há 30 anos, tradutor independente nos idiomas francês e português. Ecologista, participou de diversas organizações socioambientais no Extremo-Sul da Bahia onde dirigiu projetos educacionais, agroecologia e educação ambiental. Membro da rede Aliança RECOS (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras) desde 1999, da qual é coordenador de comunicação para os países francófonos. www.lucas-traduction.trd.br