O Bem Viver, anticapitalismo e uma arara que não voa
"Construir o Bem Viver nas megalópoles do Cone Sul, tendo como base metrópoles como São Paulo, Buenos Aires ou Santiago, ou mesmo cidades como Belém ou Assunção, pressupõe que se adote outros sentidos no habitar os espaços urbanos; que se desconstrua a noção de modelo único de cidade, levando-se em consideração as diversas subjetividades nela existentes. E que seja fortalecida a territorialidade local, o sentimento de pertencimento, a singularização de processos e sujeitos, ao mesmo tempo em que há abertura para o novo e o outro."
Foto: Débora Ruiz
Por Verena Glass
Juanito é um “araro” predominantemente ranzinza que mora no Centro Paulus, Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo. Do tipo mais comum de arara, azul e amarelo, Juanito é bem apessoado; mas ele não voa, só anda a pé. Seu lugar preferido é atrás da cozinha, onde fica de butuca na conversa das mulheres, algumas vezes resmungando coisas inteligíveis para si mesmo. Quanto aos visitantes que participam de encontros e reuniões em sua casa-território, ele não dá confiança. Quem chega mais perto pode levar uma bicada (inclusive no pé, já que é do chão que ele comumente se relaciona com o mundo). Por vezes, porém, quando se sente ignorado, solta um “oooiii” ou um “arara” para externar sentimentos de autodeterminação.
Juanito abre esta reflexão por possivelmente subjetivizar, à sua maneira, o desafio transformador de uma das ideias centrais do encontro “O Bem Viver nas cidades: perspectivas para o Brasil e o Cone Sul”, que reuniu um grupo sui generis de cerca de 40 pessoas entre os dias 14 e 17 de junho no Centro Paulus – um centro de hospedagem e reuniões, gerenciado por seus próprios funcionários, localizado em meio ao que sobrou de Mata Atlântica na metrópole paulistana. A convite da Fundação Rosa Luxemburgo, militantes de movimentos de moradia e mobilidade, camponeses, acadêmicos, cicloativistas, urbanistas e ativistas culturais, de comunicação e de economia solidária do Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia se juntaram para, a partir das diversas experiências, refletir sobre a idéia do Bem Viver. E sobre como esse impulso, nascido das culturas indígenas andinas, poderia ser relacionado às diversas vivências urbanas.
Mas voltemos a Juanito. Pássaro que não voa, arara que não conversa, rabugento com demandas de atenção e bisbilhoteiro das comunhões alheias, Juanito em suas idiossincrasias remete à ideia-chave trazida pelo educador boliviano Mario Rodríguez desde reflexões e experiências sobre o Bem Viver nos contextos indígenas urbanos de seu país. Há uma palavra aymara, illa, conta Mario, que poderia sintetizar o que propõe o Bem Viver. Illa significa algo que já é sem ser ainda algo que já é. “Algo que contém o que já é mas só vai ser se você cria adequadamente o que já é”, explicou.
Ou seja, a idéia do Bem Viver – que, mais que um conceito, é uma experiência polissêmica – se baseia no fato de que transformações devem ocorrer a partir do existente. Significando que o Bem Viver não é uma utopia de futuro, mas acontece a partir das relações concretas e cotidianas e de seu potencial transformador das realidades.
Se pensarmos nas cidades como concentradoras do poder do capital e dos imaginários e políticas colonialistas – abarcando lógicas de consumo infinito e homogeneizado, especulação imobiliária, gentrificação, mobilidade carrocêntrica, predação de bens naturais, racismo, patriarcalismos, etc. (características que, por sinal, não sofrem grandes mutações estruturais sob administrações de direita ou de esquerda) -, faz-se mais claro que as insurgências urbanas contra o modelo de desenvolvimento baseado em um conceito de modernidade colonial-capitalista são, em sua essência, insurgências contra uma crise civilizatória. Crise esta que se desvela na incapacidade das sociedades modernas de responder adequadamente à busca de equilíbrio nas múltiplas relações entre os seres humanos, e destes com a natureza, com sua história e memória e com o sagrado.
Nos últimos dez anos, o Bem Viver surgiu como uma ideia de resistência anticapitalista, anticolonial e antissistêmica na América Latina. Foi introjetado nas Constituições do Equador (Buen Vivir) e da Bolívia (Vivir Bien) – a partir de onde tem sofrido descaracterizações criticadas pelos movimentos sociais -, mas deve ser entendido como parte das lutas latinoamericanas no campo da construção de alternativas, explica o sociólogo argentino Emilio Taddei: “É o padrão de poder moderno-colonial em crise que está sendo interpelado, a acumulação por despojo, contra a qual se insurgem os movimentos dos ‘sem’ – teto, terra, trabalho, etc.” Assim, continua Emílio, o Bem Viver é uma proposta de novas relações sociais, alternativas ao capitalismo; uma disputa de sentidos e significados, um ato subversivo frente à forma eurocêntrica de construção dos saberes.
Construir o Bem Viver nas megalópoles do Cone Sul, tendo como base metrópoles como São Paulo, Buenos Aires ou Santiago, ou mesmo cidades como Belém ou Assunção, pressupõe que se adote outros sentidos no habitar os espaços urbanos; que se desconstrua a noção de modelo único de cidade, levando-se em consideração as diversas subjetividades nela existentes. E que seja fortalecida a territorialidade local, o sentimento de pertencimento, a singularização de processos e sujeitos, ao mesmo tempo em que há abertura para o novo e o outro.
Assim, não é possível pensar em “meu” Bem Viver (uma dolce vita de abundâncias e prazerosidades), uma vez que o Bem Viver não existe no individual. O Bem Viver só é possível a partir das estruturas relacionais de reciprocidade, explica Mario Rodríguez.
Nesse sentido, reciprocidade vai além da solidariedade, por pressupor relações de “obrigação” mutua que criam um equilíbrio e um sentido de igualdade entre quem dá e quem recebe. “Nas relações com a natureza aprendemos o sentido de interdependência, por exemplo; e isso influi na maneira como vemos a emancipação”. Mais além, prossegue Mario, é preciso atentar aos modos de construção do tecido comunitário, porque não há como disputar os rumos de políticas de Estado se não mudarmos as nossas próprias formas organizativas.
Foto: Marco Túlio de Freitas Amaral
“Muito do que acontece nas nossas organizações são processos profundamente coloniais, patriarcais e mercantilizadores. Temos que reconstruir o tecido organizativo e mudar as relações cotidianas. Precisamos manter um pé no que foram as bandeiras históricas das esquerdas, a luta por igualdade, por democratização, por acesso. O outro pé tem que estar no outro horizonte civilizatório”.
É fato que não sairemos facilmente do discurso da modernidade e do desenvolvimento intrínsecos ao capitalismo por simples decisão. Mas, de tudo que conversamos nestes três dias de reciprocidade e compartilhamento de saberes e experiências em Parelheiros, possivelmente podemos buscar no Bem Viver horizontes de saída.
Retomando o fenômeno Juanito, imaginemos que se tivesse atinado mais ao que se passou em seu território entre 14 e 17 de junho, se tivesse interagido mais, se tivesse reciprocado, possivelmente teria se beneficiado da conversa sobre Illa; uma vez que ele, em relação ao deixar de ser ave pedestre, é “algo que contém o que já é mas só vai ser se você cria adequadamente o que já é”; e poderia quem sabe voar.
Fuente: Fundação Rosa Luxemburgo