Fome não se acaba com agricultura "forte", por Antônio Inácio Andrioli
Já há mais tempo a idéia de combate à fome vem sendo relacionada com a necessidade de aumento da produtividade na produção de alimentos. O suposto cenário de crescimento da população mundial e o número de pessoas que passam fome são constantemente usados para justificar a introdução do “progresso técnico” na agricultura
De acordo com essa visão, a agricultura convencional sozinha não seria capaz de produzir alimentos suficientes para uma população de 9,37 bilhões de pessoas estimada para o ano de 2050. Os transgênicos são apresentados, especialmente aos países pobres, como alternativa de aumento tanto da produção como do valor nutritivo dos alimentos. Essa concepção é correta e até que ponto a agricultura pode contribuir, de fato, no combate à fome?
Se antigamente a humanidade convivia com uma produção de alimentos muito baixa e em períodos de catástrofes naturais muitos morriam em decorrência da falta de comida, atualmente estamos confrontados com uma situação totalmente diferente: a superprodução. A produção é demasiada; alimentos são desperdiçados em função do transporte e estragam nos armazéns; prêmios para paralisar a produção foram introduzidos em propriedades rurais dos países industrializados e grandes quantidades de alimentos são intencionalmente eliminadas para evitar a queda de preços. Mas, apesar disso, ao mesmo tempo cerca de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo. De acordo com dados oficiais da ONU estariam disponíveis 2.800 calorias por pessoa ao dia, se houvesse uma correta distribuição dos alimentos (conforme a FAO, são necessárias 1.900 calorias diárias por pessoa). Existem alimentos suficientes para prover em torno de 2 kg de comida diária por pessoa, dos quais 1,1 Kg de cereais, 450 g de carne, leite e ovos e mais 450 g de frutas e verduras. Uma insuficiente produção de alimentos, portanto, não pode mais ser usada como argumento para explicar a fome, o que, por sua vez, contradiz as projeções de Thomas Malthus de um crescente aumento da população mundial incompatível com uma insuficiente disponibilidade de alimentos, pois no mínimo desde 1961 a quantidade per capita de alimentos disponível superou a correspondente necessidade humana, o que significa que se as quantidades produzidas fossem distribuídas de acordo com o consumo de calorias já desde 1961 não deveria mais haver ninguém que sofresse por fome ou desnutrição no mundo.
A fome, portanto, não é um problema técnico e não depende mais de volumes insuficientes de alimentos. Ela também não é um problema ocasionado por superpopulação, pois não há uma relação direta entre população e fome: a fome atinge tanto países de alta concentração demográfica como Bangladesh e Haiti como países de baixa concentração demográfica como Brasil e Indonésia. A disponibilidade de recursos ou catástrofes naturais também não podem mais ser apresentados como causa da fome; se trata de um problema de distribuição dos alimentos disponíveis que só pode ser resolvido politicamente. No que se refere a catástrofes naturais, várias delas já são previsíveis, de forma que é possível desenvolver meios de redução de seus efeitos. Muitas catástrofes naturais também são ocasionadas e/ou aprofundadas pela interferência humana no ecossistema, como a agricultura intensiva voltada a altas taxas de produtividade (desmatamento, longos períodos de cultivo de monoculturas, erosão e lixiviação do solo, uso de agrotóxicos, etc). Quanto aos recursos disponíveis, a sua concentração representa um grande problema em muitos países como, por exemplo, o Brasil, onde apenas 10% da área agricultável é cultivada e 80 milhões de hectares de terra produtiva estão ociosos. Se estes recursos fossem utilizados de maneira sustentável, a população poderia dobrar sem que houvesse problemas em volumes de alimentos disponíveis. Mas, aoi invés disso, dos 175 milhões de brasileiros, 40 milhões passam fome. Em função da concentração da terra e da agricultura baseada na exportação, ainda existe o paradoxo, de que 15 milhões de pessoas (36,8% das famílias rurais brasileiras) são atingidas pela fome na área rural. Isso é novamente um problema de ordem política que não será resolvido através de um simples apoio ou fortalecimento da agricultura. Pelo contrário, o incentivo à agricultura de exportação tem contribuído para a redução da produção de alimentos básicos (como feijão, arroz e mandioca) e a expansão das monoculturas (como soja, cacau, algodão).
Se o problema da fome não pode ser resolvido com avanços tecnológicos, os transgênicos também não representam uma alternativa para sua solução. Assim como já ocorreu com a “modernização” da agricultura a partir dos anos 1950, que veio com a promessa de combate à fome, a população mais pobre não será beneficiada com a transgenia na agricultura, mas grandes multinacionais, como a Monsanto, que lucrarão com o controle e a venda de sementes e agrotóxicos. Através do controle das sementes as grandes corporações também podem controlar a produção de alimentos: o que será produzido, os insumos que serão utilizados e onde os alimentos serão comercializados. Por isso é previsível que, com o monopólio das sementes e a necessidade do pagamento de royalties a produção agrícola fique mais cara e o acesso dos pobres aos alimentos seja ainda mais difícil. Além do mais, os cultivos de transgênicos disponíveis atualmente (soja, milho, canola e algodão) são destinados à exportação para os países industrializados, o que não vem a beneficiar os pobres dos países do sul. As causas da fome como a pobreza, a desigualdade e a falta de acesso aos meios de produção não serão modificadas através da introdução dos transgênicos, mas possivelmente ainda serão aprofundadas, pois poderá ocasionar maior concentração de terras, maior êxodo rural e maior exclusão social dos pequenos agricultores. E, por último, precisa ser reforçado um argumento técnico: os cultivos transgênicos disponíveis até o momento não são mais produtivos que os convencionais, pois eles foram desenvolvidos para apresentar tolerância a herbicidas e insetos, de forma que eles não estarão contribuindo com o suposto e anunciado aumento da produtividade.
Levando em consideração que a fome apenas pode ser solucionada através de ações políticas, o fortalecimento da agricultura familiar (pequenas propriedades, onde a própria família dos agricultores representa a força de trabalho empregada na produção agrícola) pode contribuir com o combate à fome. Em países como o Brasil, onde a agricultura familiar é responsável pela maior parte da produção de alimentos (70% do feijão, 84% da mandioca, 49% do milho, 54% do leite, 58% da carne de porco, 40% da produção de aves e ovos) e representa 84% das propriedades agrícolas (4,1 milhões de estabelecimentos rurais), a manutenção dos pequenos agricultores na atividade agrícola adquire uma grande importância para a redução da pobreza, já que a maioria destes é responsável pelo abastecimento alimentar da própria família. Um conjunto de experiências com agricultura no Brasil demonstra que o modelo da agricultura familiar, baseado na produção diversificada e no reduzido uso de insumos externos, é o mais eficiente e o mais apropriado para a garantia da soberania alimentar e pode ser combinado com programas de combate à fome. Por isso é importante levar em conta o tipo de agricultura a ser apoiado. O modelo denominado pelos grandes proprietários rurais de agricultura “forte”, baseado na monocultura para exportação, com certeza, como podemos verificar na história, poderá conduzir a mais concentração, mais pobreza e mais fome.
* Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha.