Entrevista especial com Antonio Turiel. A era do descenso energético e os limites da transição energética: "O problema fundamentalmente termodinâmico e geológico"

Idioma Portugués

"É preciso recordar que este modelo de transição energética [elétrico] que está sendo proposto não é o único concebível e, do ponto de vista técnico, temos que fomentar a energia renovável e não a elétrica", afirma o pesquisador espanhol do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC).

"Estamos em uma situação de descenso energético incomparável e inevitável; é um problema fundamentalmente termodinâmico e geológico e vai seguir se estendendo." Para reforçar esse prognóstico,  Antonio Turiel apresentou os dados que indicam a  crise do sistema energético baseado em energias fósseis, como petróleo, carvão e urânio, na conferência intitulada " A Era do Descenso Energético. Guerras, fome e crise climática", ministrada virtualmente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 03-06-2022.

No evento, que integra o  Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo, o físico também alertou sobre os desafios da  transição energética e a implementação de energias renováveis, em especial ao modelo elétrico que tem sido defendido na Europa como opção em substituição às fontes fósseis. Segundo ele, a transição energética é incontornável nas próximas décadas. Entretanto, adverte, "a pergunta a ser feita é se essa energia 100% renovável vai estar disponível na mesma quantidade de energia que temos agora ou se vai ser uma quantidade inferior. A resposta, ao que tudo indica, é que vai ser em uma quantidade bastante inferior à atual porque os sistemas de captação de energias renováveis têm muitas limitações, que raramente se discutem, mas que realmente estão aí".

Na conferência a seguir, que publicamos no formato de entrevista, Antonio Turiel explica as dependências fósseis do sistema de energia renovável e reflete sobre os próprios limites dos recursos naturais. "Como conclusão, estamos vivendo uma situação em que estamos produzindo um colapso das fontes de energia fóssil e de urânio, o qual nos leva a uma situação complicada nos próximos anos. O modelo de transição energética renovável elétrico que se propõe como única alternativa sofre de muitos problemas porque depende de materiais que são escassos; seu potencial não é tão grande como muitas vezes se quer fazer acreditar. Além disso, ele depende dos combustíveis fósseis e se orientará pela produção de eletricidade, que tampouco se sabe se pode generalizar e aumentar indefinidamente, além da forte dependência energética e tecnológica. É um modelo que já chega tarde, ou seja, este já não é o momento para pensar nele pois já deveríamos estar pensando em coisas muitíssimo mais básicas", resume.

Turiel também comenta as implicações sociais e políticas da crise energética atual e da própria  transição energética nos países, especialmente naqueles que já sofrem os efeitos da escassez de combustíveis e alimentos.

Antonio Turiel. Foto: Reprodução

Antonio Turiel é doutor em Física Teórica, especialista em oceanografia e pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC. Recentemente, publicou o livro: El otoño de la civilización (Escritos Contextatarios, 2022).

IHU – Qual é a situação mundial dos recursos fósseis, especialmente do petróleo?

Antonio Turiel – Vou apresentar essencialmente o que está ocorrendo a nível mundial com os recursos fósseis, como o petróleo e as matérias-primas não renováveis, que estão afetando a  transição energética, sobretudo, na Europa e nos Estados Unidos da América.

O primeiro fenômeno que temos que entender é o que está acontecendo com a produção de petróleo e de gás a nível mundial. A  Repsol, principal companhia petroleira da Espanha, recentemente anunciou seu plano estratégico para os próximos anos, de 2021 a 2025. Desde 2014, a empresa reduziu em 90% seu gasto na busca de novos campos de petróleo, ou seja, hoje está gastando a décima parte do que estava gastando em 2014. Essa mudança brusca na quantidade de dinheiro investido não acontece apenas com a Repsol, mas está acontecendo de modo geral em todo o mundo. Ao observar o conjunto das companhias petroleiras do mundo, vemos que, do ano de 1993 até 2014, elas haviam incrementado seu gasto e, desde 2014 até agora, com algumas oscilações, esse gasto diminuiu em 60%.

A pergunta é: por que isso está acontecendo? A razão fundamental tem a ver com a perda da rentabilidade dos produtos do petróleo no mundo. Isso ficou bastante claro em um informe do Departamento de Energia dos Estados Unidos, do qual extraí esta imagem (abaixo).

A linha de cor verde indica os ingressos [de dinheiro] por operações das 127 companhias de petróleo e gás de todo o mundo. A linha de cor azul representa os gastos dessas mesmas companhias. Como podemos ver, de maneira consistente, entre a metade do ano de 2011 até o ano de 2014, quando foi lançado este informe, as 127 maiores companhias de petróleo e de gás estavam perdendo dinheiro, com um prejuízo de 210 milhões de dólares a cada ano. Isso aconteceu em um momento em que o preço do barril de petróleo estava com valores médios historicamente elevados – o pico de preços mais importante ocorreu em 2008, quando o valor do barril quase chegou a 150 dólares. Nas médias anuais, o período que vai de 2008 a 2014 corresponde à maior alta dos preços médios de toda a série histórica.

Uma coisa interessante é que nesse período o barril de petróleo se manteve no valor máximo que a economia mundial pode suportar. Diversos estudos, alguns destacados pelo professor de economia James Hamilton, da Universidade de San Diego, mostraram, naqueles anos, que o preço máximo que se pode pagar pelo barril de petróleo foi 120 dólares. Se superassem esse limite [de preço por barril], a economia internacional entraria em recessão, situação que não interessava às companhias petroleiras porque isso geraria uma queda da demanda e, portanto, dos benefícios. Portanto, foi mantido o preço alto, cerca de 100 a 110 dólares por barril, tentando não superar o máximo de 120 dólares o barril e, rapidamente, se tentou baixar o preço para tentar evitar que o mundo entrasse em recessão. Mas, nesse movimento, as companhias petroleiras perderam dinheiro – cerca de 110 milhões de dólares ao ano. Isso mostra que possivelmente as companhias investiram muito dinheiro entre 1993 e 2014, mas depois viram que esse era um objetivo inútil porque não haveria rendimentos.

Isso levou a Agência Internacional da Energia – AIE a aceitar que algo estava acontecendo em relação ao petróleo, ou seja, aceitar algo que não queria: que a  produção de petróleo já não estava mais subindo. Isso refletiu progressivamente nos informes anuais da agência. Por exemplo, no informe anual de 2010, pela primeira vez, a AIE mostra que a produção de petróleo tinha chegado ao seu máximo – a produção já havia chegado ao máximo anteriormente, em 2005, com 70 milhões de barris diários e, a partir de 2005, começou a cair continuamente. Essa situação corresponde às três últimas faixas do gráfico abaixo.

A cor azul escura representa a produção dos campos que já estavam em funcionamento no ano de 2010, a qual caiu muito depressa, a um ritmo de 5% ao ano. Na faixa de cor cinza, vemos os campos que já eram conhecidos no ano 2010, mas ainda não estavam destinados à exportação. E, por último, a faixa de cor azul celeste corresponde à produção que viria dos campos a serem descobertos nos próximos 25 anos – conforme a previsão que estava nascendo à época –, cujo petróleo seria exportado nos anos seguintes. Como podemos ver, juntando essas três faixas, havia campos de exportação em 2010, campos pendentes, que seriam explorados para a exportação de petróleo, e campos a serem descobertos.

Para dar uma impressão de que a situação não era tão grave, a AIE também apresenta, no mesmo gráfico, os dados sobre o gás natural. A faixa de cor roxa corresponde a uma meta em relação ao gás e a faixa de cor amarela representa os óleos não convencionais, que naquela época eram fundamentalmente o petróleo extrapesado e os combustíveis. Resumindo, esse era o cenário apresentado pela AIE em 2010.

Entretanto, no ano de 2018, quando já era bastante evidente que havia um problema, a AIE apresenta um cenário completamente diferente. Na imagem (abaixo) podemos ver dois cenários de demanda.

Esses cenários são modelos da AIE feitos a partir de dados dos modelos econômicos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE para ajustar os cenários de produção em função dos cenários de demanda. O cenário de referência é aquele marcado pela linha de cor azul, denominado de “new policies” [novas políticas]. Comparando o cenário de novas políticas previsto com as duas faixas de tons vermelhos, que correspondem à produção dos campos de petróleo, percebemos que há um declive muito rápido, que se produz na tentativa de manter os campos existentes, cujo déficit seria de 34% na escala mundial. Esse déficit é enorme se pensarmos que em 2008, quando ocorreu a crise econômica global, a demanda de petróleo caiu 1.4% – agora, estamos falando de um déficit de 34%. Outras quedas tão grandes em relação ao petróleo remontam à Segunda Guerra Mundial, quando houve uma queda de 20% da demanda. Entretanto, é estranho que a AIE avisasse, no informe de 2018, que seriam produzidos diversos picos de preço de petróleo até 2025.

No informe do ano de 2020 da AIE, o cenário é alargado até 2040. O gráfico (abaixo) mostra que pintaram de forma sólida as faixas azul e verde, correspondentes à demanda.

A faixa de cor marrom claro mostra um cenário em que não há novas inversões. A faixa marrom escuro indica o que venderiam os campos se investissem em sua manutenção. Outra coisa interessante que o gráfico mostra é que já havia se chegado ao máximo da  produção de petróleo no ano de 2018 e que havia tido uma queda importante no pior dos cenários. A oferta de petróleo estaria aproximadamente 50% abaixo da demanda no ano de 2025, o que seria bastante catastrófico.

No ano passado, a AIE introduziu um novo cenário – que corresponde à faixa de cor verde (imagem abaixo) – que representa o que aconteceria se as companhias mantivessem os investimentos até 2050.

Segundo essa projeção, a única maneira de evitar o pior cenário [em relação ao petróleo] é com uma transição renovável abrupta. Trata-se de um cenário sem precedentes e, além disso, fisicamente impossível. Para se ter uma ideia, o informe projeta que a produção anual de lítio seria multiplicada por 120, e a de níquel e cobalto, por 42. São valores absurdos e impossíveis de serem viabilizados, mas foram apresentados para tentar encobrir o descalabro da queda [da produção de petróleo] que estava sendo produzida.

Outra coisa interessante, como nos mostra o gráfico sobre o gás (imagem acima), é que também o gás natural está muito perto de chegar ao máximo de sua produção e isso vai acontecer nesta década, entre 2020 e 2030.

Situação atual do petróleo

Na situação atual, o que observamos efetivamente é que o máximo da produção de petróleo ocorreu em novembro de 2008, com a produção de 84.5 barris diários. Essa produção foi oscilando ao longo dos próximos anos e, no primeiro momento de confinamento por causa da Covid-19, houve uma queda enorme da demanda nos países ocidentais. Depois, iniciou-se uma recuperação, e no momento atual a demanda está 25% abaixo dos valores de 2008. Os EUA insistem que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo – Opep aumente a produção e está apurando ao máximo a exploração dos poços de fracking, mas tampouco podem implementá-la. A Rússia, por sua vez, como sabemos, enfrentou problemas com sua produção. Então, o cenário mais provável é que no final deste ano a produção global de petróleo esteja 6 ou 7% abaixo dos valores de 2008.

Isso não está acontecendo somente com o petróleo, mas também com as demais matérias-primas energéticas não-renováveis, como o  carvão.

IHU – Qual é a situação internacional em relação ao carvão?

Antonio Turiel – O gráfico (abaixo) é um informe anual da AIE, publicado em 2014, no qual vemos a previsão que faziam naquele ano sobre como seria a evolução da produção de carvão.

A faixa de azul escuro corresponde às minas existentes à época e, como podemos ver, a projeção sobre elas cai muito rapidamente daquele ano até a projeção para 2040. A faixa marrom corresponde aos projetos de extensão das minas existentes, a qual também representa uma queda muito grande. A única maneira de poder incrementar a produção de carvão nos anos seguintes seria através das minas de campos verdes (greenfield mines) [conforme a faixa verde do gráfico] – e, portanto, há uma estimativa de quanto carvão deve haver no subsolo desses campos, mas não se pode saber porque não começaram os trabalhos de mineração e, portanto, há muita especulação em torno disso.

Apesar das previsões da AIE no ano de 2014, com o passar dos anos temos visto o que realmente aconteceu, conforme mostra o gráfico abaixo: a produção de carvão foi subindo em 2014, chegou em um máximo e depois começou a oscilar. A produção absoluta foi em 2019, mas tudo indica que ela não vai aumentar muito mais. Já há uma queda nos valores e provavelmente eles vão cair muito mais.

Colapso do urânio

A situação é muito pior no caso do urânio, conforme mostra o gráfico abaixo, extraído do informe da AIE, publicado em 2014.

O que vemos no gráfico são as distintas categorias de fontes de urânio. A faixa de cor azul escuro mostra a produção das minas existentes – e há uma queda na produção entre 2012 e a expectativa de como será o cenário em 2040. A faixa de cor verde corresponde ao urânio extraído em décadas anteriores, que majoritariamente está na forma de bombas atômicas – 20% do combustível nuclear se extrai de bombas que se desmantelam afortunadamente e servem para dar combustível às centrais nucleares. Por último, o gráfico mostra a produção das minas identificadas com os campos verdes (greenfields mines) do carvão, na faixa amarela, que são minas abertas para a especulação sobre a quantidade de urânio que pode ser extraída desses locais. Graças a essas minas identificadas, mas ainda não exploradas, a tendência é que a produção de urânio continue crescendo progressivamente até o ano de 2025 e, a partir de então, comece uma queda irreversível. Nesse cenário, haveria uma lacuna de fornecimento (supply gap) de urânio, conforme marcado pela linha azul e a faixa vermelha que a indica. Ou seja, não sabemos como vamos cobrir essa demanda porque não há possibilidade física de cobri-la.

Como disse, esse é o cenário apresentado em 2014, mas o que tem acontecido nos últimos anos é ainda pior. O gráfico abaixo indica a produção de urânio nos últimos anos: ela chegou ao máximo absoluto em 2016 e, desde então, caiu 20%. A previsão é que continue caindo bastante e de maneira rápida.

IHU – O que todos esses dados indicam em relação à energia fóssil?

Antonio Turiel – Se fizermos um resumo da situação das  fontes de energia não-renováveis, podemos dizer que a produção de petróleo cru, que se extrai dos poços convencionais e nos dá o líquido convencional, que é muito mais sensível de processar, chegou ao seu máximo em 2005, como vimos no informe da AIE. Faz 17 anos que o petróleo convencional chegou ao máximo e, desde então, está estagnado e com tendência de queda acelerada nos últimos meses. Se consideramos todos os líquidos oriundos do petróleo, podemos dizer que o máximo da produção ocorreu no ano de 2018. O petróleo representava 33,6% de toda a energia primária que se consumia no mundo. O  carvão, que é a segunda fonte de importância, alcançou o máximo em 2019 e representava 27,2% da energia primária consumida no mundo. O gás natural, que é a terceira fonte de importância, ainda não chegou ao seu máximo. Estamos esperando que chegue em algum momento desta década e, provavelmente, isso acontecerá nos próximos cinco anos. Mas até agora o gás natural representa 23,9% da energia primária mundial. Por fim, o urânio atingiu a produção máxima em 2016 e representava 4,4% de toda a energia primária mundial. Considerando o conjunto de todas essas fontes de energia, podemos dizer que o máximo da produção de energia não-renovável foi em algum momento entre 2018 e 2020 e, conjuntamente, ela representava 89% de toda a energia primária mundial.

Descenso energético

Uma coisa que quero deixar clara é que quando falamos do pico de produção, estamos falando do momento de máxima produção e extração. O problema é que quando se ultrapassa esse máximo, a produção fica cada vez menor e isso cria problemas, sobretudo, em um sistema econômico como o nosso, que está orientado ao crescimento e com interesses que levam a ganância a ser algo crescente. Portanto, o problema que se coloca [em relação à energia fóssil] é semelhante ao de uma pessoa que está trabalhando e tendo seu salário reduzido a cada ano. Imagine uma pessoa que reduz seu salário 1, 2 ou 3% a cada ano. Com o passar dos anos, essa pessoa segue trabalhando e cada vez cobra menos, cada vez está mais pobre e lhe custa mais conseguir chegar ao final do mês e pagar as contas. Estamos em uma situação de descenso energético incomparável e inevitável e isso não tem nada a ver com inversão ou com a tecnologia que poderia ter sido adotada; é um problema fundamentalmente termodinâmico e geológico e vai seguir se estendendo. Temos que nos adaptar e aprender a viver cada vez com menos energia; sobretudo, os países da Europa e os EUA. Aí está a dificuldade, porque isso implica o conflito entre os países e dentro de cada país.

IHU - A solução está nas energias 100% renováveis?

Antonio Turiel – A questão é se a solução está nos  100% renováveis. Está claro que, no longo prazo, vamos ter que aprender a enfrentar uma situação em que acabarão as  energias não-renováveis e, portanto, em algum momento, no futuro, nas próximas décadas, faremos uma transição [energética] em que se usará unicamente energia renovável. Isso é inevitável e também acontecerá no caso do Brasil, que é produtor de petróleo.

A pergunta a ser feita é se essa energia 100% renovável vai estar disponível na mesma quantidade de energia que temos agora ou se vai ser uma quantidade inferior. A resposta, ao que tudo indica, é que vai ser em uma quantidade bastante inferior à atual porque os sistemas de captação de energias renováveis têm muitas limitações, que raramente se discutem, mas que realmente estão aí. Entre elas, destacam-se:

1. A limitação de chegar na quantidade máxima de energia renovável que se pode captar;

2. Dependem de materiais que são escassos no planeta;

3. Dependem de energias fósseis para fazer sua instalação e manutenção;

4. Tem a dificuldade adicional de que as energias renováveis estão orientadas para a produção de eletricidade.

Sobre a questão acerca do potencial máximo da energia renovável, a comunidade científica ainda não chegou a um acordo e a um consenso sobre qual é essa quantidade máxima de energia que se pode produzir por meios renováveis. Anos atrás, falava-se de quantidades bárbaras de energia renovável produzida: mil vezes, cem vezes do consumo total de todas as fontes de energia do mundo, mas agora está se vendo que o consumo máximo poderia ser quatro vezes todo o consumo de energia da humanidade. No entanto, alguns autores com os quais me alinho dizem que, por razões físicas, a quantidade máxima aproveitável de energias renováveis está ao redor de 1.30, 1.40% do consumo total atual, o que é igualmente um grande consumo de energia, que daria para satisfazer todas as necessidades da humanidade. Mas, obviamente, isso seria possível fazendo mudanças muito importantes nos estilos de vida para não sermos tão consumidores de energia, sobretudo na Europa e nos EUA.

Em todo caso, essa não é uma questão fechada, mas o que está claro é que há uma quantidade finita de energia que se pode produzir por meios renováveis. Muito mais crítica ainda é a situação da necessidade de materiais escassos para a instalação desses sistemas renováveis.  Alicia Valero, professora da Universidad de Zaragoza, com seu grupo de ecologia industrial, analisou a disponibilidade de materiais e recursos e encontrou uma quantidade grande de materiais para os quais não havia reserva o suficiente no planeta se todos os países implementassem, ao mesmo tempo, a transição de energia renovável.

Isso inclui, por exemplo, a prata, que é utilizada para os conectores das placas fotovoltaicas, o telúrio [elemento químico], que também é utilizado na fabricação de placas fotovoltaicas, o lítio manganês e o níquel de cobalto, que são utilizados nas baterias e, igualmente, o cobre – não haveria cobre suficiente. Temos, então, um problema muito sério. Esse problema é tão sério que a própria AIE apresentou um informe em maio do ano passado sobre materiais críticos, identificando que seria preciso incrementar a produção destes. O importante do informe são suas recomendações; entre elas, seis que recomendam aos países da OCDE a necessidade de haver reservas estratégicas desses materiais no sentido de que talvez nem todo o planeta possa fazer a transição energética, mas pelo menos nós (países da OCDE) podemos fazê-lo.

Dependência dos combustíveis fósseis

De outro lado, os sistemas de captação de energia renovável industrial têm uma forte dependência dos combustíveis fósseis. Hoje, em todos os processos de extração dos materiais na elaboração de fontes renováveis, seja na fabricação de elementos, no transporte, na instalação, na manutenção e, eventualmente, no desmantelamento dessas instalações, é preciso usar combustíveis fósseis. A situação é tal que alguns autores dizem que não é viável fazer energia renovável sem energias fósseis e que esses sistemas renováveis são apenas extensões dos combustíveis fósseis, sistemas que podem estar aí unicamente se têm energia fóssil para respaldá-los. Este é um dos problemas que temos e que está claro nos sistemas de hidroeletricidade, de geração elétrica e eólica, ou fotovoltaicos e solares.

IHU – Que outras questões são importantes de serem observadas quando se trata de defender a transição energética?

Antonio Turiel – A última questão que se coloca a respeito do  sistema de transição energética que está sendo puxado desde a Europa e os EUA é que são sistemas que estão orientados à produção de eletricidade, ou seja, de energia renovável elétrica industrial. Os problemas estão colocados na Espanha e em geral na maioria dos países da OCDE. Um deles é que a eletricidade só representa 20% de toda a energia final consumida no mundo. Na Espanha, a porcentagem tem variado um pouco com os anos e está ligeiramente maior atualmente, ao redor de 23,6%, mas há uma porcentagem de processos que não são elétricos e, além disso, há uma boa parte de processos que é difícil e impossível de eletrificação. Há uma série de processos que são muito difíceis de serem eletrificáveis e isso é uma coisa que já se sabe. Então, não se sabe muito bem qual é o sentido de produzir tanta eletricidade quando não se sabe como aproveitá-la.

Qual é o agravante disso? O caso da Espanha é similar ao que está acontecendo na Europa e nos EUA: o consumo de eletricidade não cresce. No caso concreto da Espanha, inclusive, diminui. Na Espanha há planos enormes, com fundos que vêm da União Europeia, para instalar mais sistemas elétricos quando já temos uma capacidade de instalação enorme de 116 GW instalados, para um consumo médio que em 2008 era de 32 GW. Não se sabe muito bem o que fazer com toda essa eletricidade e esse é um problema que é geral. Estão apostando muito na eletrificação sem ter um sistema adequado de aproveitamento.

Sabemos que há um problema com as baterias e com o lítio porque sabemos que não poderemos produzir tanto lítio quanto se necessitaria. Além disso, não se pode fabricar veículos pesados autônomos elétricos, ou seja, não se pode produzir um caminhão com uma bateria elétrica porque ela ocuparia a maior parte da carga útil do caminhão. Da mesma forma, não se pode criar escavadoras elétricas nem tratores elétricos. Claro que há protótipos, mas a autonomia de um trator elétrico com baterias é de seis horas. O que faz um agricultor que trabalha no campo com um trator que tem uma autonomia de seis horas? Então, esse tipo de veículo não pode ser feito com baterias porque elas têm pouca densidade energética e a quantidade de energia por litro de bateria ou por quilo de bateria é muito baixa e muito inferior a dos combustíveis fósseis.

Hidrogênio verde

A única alternativa viável para tentar aproveitar a energia elétrica renovável é através do que se chama de  hidrogênio verde. O hidrogênio verde consiste em tomar a eletricidade de meios renováveis com geradores, placas fotovoltaicas, hidroeletricidade e utilizá-la para romper a molécula de água e separar o hidrogênio do oxigênio. É isso que se chama de hidrogênio verde. Mas o problema do hidrogênio verde é que ele tem um rendimento realmente muito baixo. O próprio processo de eletrólise em plantas comerciais – os rendimentos da energia que se inverte em função da energia que se recupera em forma de hidrogênio – está ao redor de 50%, ou seja, se perde a metade da energia invertida. Quando se pretende utilizar hidrogênio verde para veículos pesados e autônomos, como caminhões e escavadoras, tratores, barcos, aviões, as projeções são muito maiores por causa de todos os processos de conversão que têm que ser feitos. As perdas projetadas são ao redor de 90% ou mais.

Colônias energéticas

O informe do  IPCC sobre mitigação, publicado no ano passado, disse que essa tecnologia não está madura para implementação massiva, apesar de ser o modelo no qual se está apostando muito fortemente na Europa neste momento. Mas a Estratégia Europeia de Hidrogênio reconhece que a Europa não pode abastecer-se de hidrogênio verde porque é impossível a Europa produzir tanto deste a partir de meios renováveis para abastecer-se. Mesmo assim, os  planos energéticos que vêm desde a Europa são um pouco neocoloniais. O governo alemão está firmando acordo com muitos países para garantir que o hidrogênio chegue até a Europa. O governo alemão, com um grupo de empresas alemãs que está por trás dele, a Ucrânia – antes da guerra –, a Namíbia, o Marrocos e o Congo estão tentando fazer com que o hidrogênio verde venha da Alemanha. E isso explica o interesse que há na Europa em relação ao trem que funciona com motor de hidrogênio – e ele é muito mais ineficiente do que um trem eletrificado convencional.

Ultimamente, o que estamos vendo a nível da Espanha, é que há muito interesse em que EspanhaPortugal e Itália, os países do sul da Europa, produzam sistemas renováveis e hidrogênio para que possa ser exportado para o norte do continente. Essencialmente, pretendem converter também a nós (espanhóis) em colônias energéticas igual está se fazendo com outros países. É uma situação bastante desagradável, mas é um pouco do que está acontecendo por causa dessa situação de escassez generalizada e crescente de energia.

IHU – Quais tendem a ser as tendências globais em termos de energias renováveis?

Antonio Turiel – Falando mais das tendências globais, temos vários problemas que são bastante complicados de questionar. O primeiro é o colapso da produção de diesel. Este é um problema que já detectei há anos. De todos os combustíveis que se extraem e refinam do petróleo, esse é o primeiro que vai apresentar problemas por suas características e pelas características químicas dos distintos combustíveis que estavam substituindo o petróleo convencional. O que podem ver no gráfico abaixo é a evolução da produção de diesel mundial nos últimos anos: ela subiu em 2005, e depois que atingiu a produção máxima, entre 2016, ocorreram oscilações e, desde 2018, houve um processo de queda, enquanto que no ano de 2021 a produção de diesel era 15% inferior a que foi no ano de 2015.

Isso está gerando problemas por todo o planeta porque o diesel é fundamental para o transporte terrestre e, indiretamente, para o transporte marítimo, o que faz com que este último também tenha encarecido muito. Isso também está afetando o processo de mineração porque muitos países, com a falta de diesel – como acontece no Brasil –, estão abandonando minas que deixaram de ser viáveis. Algumas minas simplesmente fecharam e outras encareceram muitíssimo o material extraído, o que está gerando um problema generalizado de falta de matérias-primas por todo o planeta, que vão de metais até outros materiais que por si não são escassos, mas que pela falta do diesel ficam muito caros: falta um pouco de tudo devido à falta do diesel, papel, madeira etc.

IHU – Como o mercado de alimentos é afetado nesse contexto? 

Antonio Turiel – Mais preocupante ainda é como esta circunstância está afetando o  mercado dos alimentos, porque em primeiro lugar o encarecimento do diesel está levando ao encarecimento da produção agrícola.

Nos últimos meses também temos visto um processo de redução da disponibilidade de  fertilizantes. No Brasil, isso não os afeta tanto pelas características do país, mas na Europa esse é um problema que nos afeta muito. Boa parte dos fertilizantes nitrogenados são produzidos utilizando o gás natural, que está muito escasso e muito caro em todo o planeta por causa dos processos que descrevemos antes. Então, temos uma situação de cada vez menos fertilizantes e isso gera medidas protecionistas por parte dos países. Por exemplo, em setembro do ano passado, a China reduziu em 90% suas exportações de fertilizantes nitrogenados. 

No final de 2021, fecharam plantas de produção de fertilizantes em toda a Europa – algumas reabriram, mas não de maneira completa. Em fevereiro deste ano, a Rússia decretou o embargo das exportações de fertilizantes; em 24 de fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia e deixou a situação ainda pior, porque a Ucrânia é um país de 40 milhões de habitantes que produz cereais para dar de comer a 600 milhões de pessoas.

Em abril ocorreram problemas bastante sérios com a colheita na Argentina, porque faltava diesel e não conseguiram comprá-lo no mercado internacional porque o preço estava caríssimo – há, sobretudo, uma escassez de diesel no norte do país. Mais recentemente, temos visto situações de embargo total de alguns alimentos, como a não exportação de  trigo da Rússia, da Bielorrúsia, do Cazaquistão, da Índia, da Indonésia, que é o grande exportador do azeite de palma [azeite de dendê], que é o mais consumido pelos seres humanos. Somente a Indonésia produz 30% de todos os azeites vegetais consumidos no mundo, mas o país já não exporta azeite de palma e este tem sido outro problema de escassez global que está tendo repercussões desde já.

Em outubro do ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO avisou sobre uma situação de crise alimentar e do preço dos alimentos. O Banco Mundial já falava em uma catástrofe humanitária que ameaçava 40% do mundo, especialmente no Norte da África, no Oriente Médio e também na América Latina e na Ásia. É uma situação muito complicada que está se estendendo por todo o planeta.

IHU – Quais são as consequências sociais, políticas e econômicas desse cenário nos países e nas relações entre eles? 

Antonio Turiel – Estamos vendo situações muito duras em alguns países, apesar de não se falar muito sobre isso porque na Europa as informações são muito intensas por causa da guerra da Ucrânia. Vou mostrar um pouco o que está passando no mundo.

O caso mais complicado é o do  Sri Lanka, um país que até dois meses atrás era um paraíso turístico, mas, como deixou de ser visitado, colapsou completamente: faltou dieseleletricidade, o governo caiu duas vezes, e a população, depois de saquear os supermercados, queimou as casas dos representantes políticos. Pessoas começaram a morrer por falta de medicamentos e outras questões. Esse é um país com 22 milhões de habitantes. 

Laos é um dos países com menos habitantes, cerca de 7,2 milhões, e está passando pelo mesmo processo do Sri Lanka por falta de diesel e problemas com eletricidade.

Paquistão, com 220 milhões de habitantes, vive uma situação muito preocupante porque não tem diesel, há cortes de eletricidade, começou a faltar alimentos e ainda tem armas atômicas.

Cazaquistão, um país tremendamente instável, com 19 milhões de pessoas, que a Rússia pacificou no final do ano passado, enfrenta os mesmos problemas: falta de diesel e de alimentos, e deixou de exportar trigo por temor de não ter o que dar de comer para a sua própria população.

Irã, um país de 82 milhões de habitantes que é exportador de petróleo e é fundamental para a produção de diesel mundial, enfrenta uma escassez muito grande de alimentos, grãos e cereais.

Senegal tem problemas com a falta de combustível e a instabilidade social.

Quênia também enfrenta problemas como falta de combustível e falta de alimentos.

Nigéria, com 206 milhões de habitantes, é um país extremamente povoado e exportador de petróleo, mas não pode manter os voos domésticos por falta de querosene.

África do Sul é um país onde há máximas restrições por causa da escassez dos combustíveis e também enfrenta a escassez de carvão, embora o produza.

Peru é um país que esteve em estado de emergência e a população protesta pelo encarecimento do custo de vida e do preço dos alimentos.

Bolívia é um país que tem sérios problemas de acesso aos combustíveis.

Argentina viveu uma situação difícil em relação à colheita e ao combustível.

Alguns outros países estão mais ou menos colapsados em função das guerras, como IêmenLíbanoSudão do Sul etc.

A situação é terrível e a projeção para os próximos meses, segundo as notícias internacionais, é que os países europeus e os EUA também serão afetados – os EUA estão com dificuldades de produzir combustível suficiente para os aviões. A AIE recentemente fez um prognóstico de que teremos uma crise energética pior do que a dos anos 1970 e que haverá uma escassez global de combustíveis que afetará especialmente a Europa. De outro lado, temos uma situação de  insegurança alimentar global enorme e há possibilidade de problemas de abastecimento em países tão ricos como a Alemanha.

Transição energética possível

Nesse sentido, também é importante recordar que outro tipo de transição energética é possível. Trata-se de um modelo de transição utilizando receitas do passado, das mais sensíveis às mais tecnológicas, como, por exemplo, o modelo da antiga fábrica têxtil da Catalunha, que utilizava a força hidráulica dos rios para um sistema de engrenagem mover todos os mecanismos da fábrica. Há coisas mais simples, como o sistema termossolar. Esses modelos de transição dependem menos de uma tecnologia que depende de ministros globais e também não dependem de materiais escassos. Além de serem muito mais locais e eficazes, têm um impacto ambiental muito menor. O que se passa é que se trata de um sistema que não permite manter a ilusão do crescimento econômico.

IHU – Que sociedade vislumbra para o futuro diante desses cenários?

Antonio Turiel – A Espanha produz cereais de sobra para alimentar a sua população. Um caso ainda mais claro é o do  Brasil, que, por suas características, tem um potencial mais que de sobra para alimentar sua população.

Há diversos estudos que mostram que se pode manter um nível de vida semelhante ao que temos na Espanha e nos países europeus, consumindo a décima parte da energia e dos materiais que estamos consumindo atualmente. Além disso, a diferença está no modelo: se fosse possível exportá-lo para todo mundo, todo mundo poderia viver assim. Mas uma mudança importante diz respeito ao estilo de vida – não em relação ao nível de vida. O nível de vida poderia se manter e inclusive melhorar. Se poderia melhorar muitíssimo a eficiência do transporte, deixando os caminhões e usando trem movido por eletricidade. 

Trabalho muito para a Agência Espacial Europeia e quando se fabrica instrumentos com especificações eletrônicas – e lhes digo que atualmente é perfeitamente possível fabricar uma eletrônica que seja virtualmente eterna –, se produz para forçar as pessoas a mudarem o celular, o computador ou o que quer que seja constantemente. Mas seria possível fazer uma eletrônica levando em conta a quantidade de recursos que implica possuir um circuito integrado em qualquer dispositivo eletrônico para que não seja preciso mudá-lo de tempo em tempo. Seria possível também incrementar enormemente a reciclagem, mudando o desenho dos sistemas e os modos de uso dos materiais. Se pode reduzir o volume dos resíduos e reaproveitá-los, considerando o ideal da economia circular. E, por fim, se pode conter o problema populacional empoderando as mulheres.

Como conclusão, estamos vivendo uma situação em que estamos produzindo um colapso das fontes de energia fóssil e de urânio, o qual nos leva a uma situação complicada nos próximos anos. O modelo de transição energética renovável elétrico que se propõe como única alternativa sofre de muitos problemas porque depende de materiais que são escassos; seu potencial não é tão grande como muitas vezes se quer fazer acreditar. Além disso, ele depende dos combustíveis fósseis e se orientará pela produção de eletricidade, que tampouco se sabe se pode generalizar e aumentar indefinidamente, além da forte dependência energética e tecnológica. É um modelo que já chega tarde, ou seja, este já não é o momento para pensar nele pois já deveríamos estar pensando em coisas muitíssimo mais básicas.

As tendências que temos pela frente também são muito más e podem levar a situações de grandes conflitos entre os países e dentro deles, sobretudo se os governantes não quiserem aceitar todos esses problemas. Eles podem desviar a atenção e criar problemas novos, como, por exemplo, o que ocorre hoje no Paquistão, que pode bombardear a fronteira com o Afeganistão e criar uma nova guerra como forma de camuflar seus problemas internos. 

É preciso recordar que este modelo de transição energética que está sendo proposto não é o único concebível e, do ponto de vista técnico, temos que fomentar a energia renovável e não a elétrica. Do ponto de vista social, é imprescindível abandonar a ideia de que podemos crescer indefinidamente dentro de um planeta finito. Temos que abandonar a ideia de crescer, essa ideia absurda que está nos levando a uma situação não só de destruição do ecossistema, mas também de mudança climática, que é muito grave, mas que, em todo o caso, está se chocando com os limites dos recursos finitos. Temos que atender à relocalização da produção para produzir o mais local possível para diminuir os gastos energéticos necessários e poder ser sustentável.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

Temas: Crisis capitalista / Alternativas de los pueblos, Crisis energética

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