Entrevista a João Pedro Stedile: agora o Brasil tem chance de derrotar o latifúndio
Governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está disposto a dar absoluta prioridade para a reforma agrária, afirma João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Junto com os demais integrantes da direção do MST, Stedile participou de uma audiência com Lula e vários ministros, no Palácio do Planalto, dia 2. O presidente recebeu o MST de forma muito simpática. Usou o boné com o logo do movimento, brincou com uma bola de futebol fabricada nos assentamentos e chegou a oferecer a um sem-terra um biscoito também produzido pelos trabalhadores rurais. Foi o suficiente para que a mídia, expressando o ponto de vista dos latifundiários, provocasse artificialmente um escândalo nacional. Na entrevista concedida ao Brasil de Fato, Stedile conta como foi a reunião, os principais tópicos discutidos e suas impressões sobre o encontro com Lula. Otimista, Stedile acredita que o Brasil tem a oportunidade histórica de derrotar o latifúndio atrasado (veja na página 10 as opiniões de Lula sobre a Alca, segundo o relato de Stedile). NACIONAL Recepção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pelo governo, em Brasília, provoca turbulência entre fazendeiros conservadores; a reforma agrária recebe apoio do presidente Lula e da Justiça Federal para ser implantada no país ENTREVISTA Quem é João Pedro Stedile é um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e membro da direção Nacional do Movimento. É formado em Economia pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Porto Alegre (RS) e com Pós-Graduação em Economia pela UNAM (México). Filho de pequenos agricultores, Stedile nasceu em Lagoa Vermelha (RS) em 26 de dezembro de 1953. Dentre as várias lutas desenvolvidas, atuou como membro da Comissão Regional de Produtores de Uva, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Sul, assessorou a Comissão Pastoral da Terra no Rio Grande do Sul e, em nível nacional, trabalhou na Secretaria da Agricultura do Governo do Estado do Rio Grande do Sul; desde 1979, participa das atividades da luta pela reforma agrária no Rio Grande do Sul e no Brasil. Stedile é autor de vários livros: Assentamentos: Uma Resposta Econômica da Reforma Agrária , A Luta pela Terra no Brasil (também lançado em italiano – Senza Terra ), A Questão Agrária Hoje – 7ª edição, Questão Agrária no Brasil , A Reforma Agrária e a Luta do MST , Brava Gente – a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil (também publicado em espanhol, pela editora das Madres de la Plaza de Mayo). Foi entrevistado por praticamente todos os jornais e revistas de circulação nacional; escreveu inúmeros ensaios e artigos sobre a questão agrária, publicados no Brasil e no exterior. Brasil de Fato – A direção do MST esteve com presidente Lula para discutir a situação da reforma agrária no país. Qual avaliação o movimento fez desse encontro? João Pedro Stedile – A audiência foi muito importante e positiva, porque permitiu uma avaliação conjunta da oportunidade histórica que temos para implantar a reforma agrária. Há um entendimento comum, no governo e nos movimentos sociais, de que existe uma correlação de forças favorável para derrotar o latifúndio atrasado. O governo está disposto a priorizar a reforma agrária no segundo semestre, fazendo inclusive uma autocrítica, de que nesses primeiros seis meses apenas se preocupou com a política agrícola (plano safra) e com arrumar a casa. O sinal positivo da audiência foi tão claro, que o latifúndio atrasado e seus representantes na imprensa e no parlamento reagiram de forma imediata. BF – Quais foram as principais reivindicações apresentadas pelo MST? Qual o compromisso estabelecido por Lula? Stedile – O MST não levou ao presidente uma pauta de reivindicações. Levamos um documento com reflexões do que consideramos necessário para uma verdadeira reforma agrária. Mostramos ser necessário um processo “massivo”, ou seja, para atender os milhares de pobres no campo, e que a reforma agrária precisa vir casada com agroindústria, assistência técnica e educação no meio rural. E em vez de priorizar exportações e o agronegócio, precisamos de um novo modelo, que priorize a produção de alimentos, o mercado interno, a geração de empregos e a distribuição de renda. Essa é a essência de nosso documento. No Planalto, houve debate, diálogo, não uma pauta. Notamos uma convergência muito grande de idéias, fruto dos compromissos históricos dos partidos de esquerda no governo, da pessoa do presidente e do acúmulo dos movimentos sociais. BF – De que maneira o presidente pretende priorizar a reforma agrária? Foram estabelecidos prazos para o cumprimento das metas pelo Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA)?
Stedile – Primeiro, o governo vai mobilizar vários ministérios, não só o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Segundo, foi constituído um grupo interministerial, para um levantamento concreto de quantas terras públicas e hipotecadas com órgãos públicos podem ser mobilizadas imediatamente. Terceiro: compromisso em reestruturar o Incra, com os recursos financeiros e humanos necessários. Nós apresentamos a idéia de que é possível em quatro anos de governo assentar no mínimo um milhão de famílias. BF – Qual o novo modelo de assentamento apresentado pelo MST? No que ele se difere do anterior? Qual a avaliação que o presidente fez desse novo projeto?
Stedile – É difícil falar em modelo. Apresentamos idéias históricas, acumuladas ao longo desses anos, pelo MST, movimentos sociais e intelectuais orgânicos que entendem de reforma agrária. Não podemos nos prender em simplesmente distribuir lotes individuais, mas trabalhar a perspectiva de lotes menores e organizar a cooperação agrícola na produção. Trabalhar a perspectiva de aglutinar as casas em agrovilas, urbanizar o núcleo comunitário para facilitar o acesso a serviços públicos como água, luz elétrica, escola. Combinar com assistência técnica, em que os técnicos morem nos assentamentos.Desenvolver a agroindústria, como forma de melhorar a renda e criar empregos para jovens do meio rural. Casar com um grande processo de escolarização, de educação adequada. BF – Um dos problemas dos agricultores assentados é a falta de crédito para a produção. Sabe-se que em algumas regiões a produção agrícola é responsável por abastecer vários municípios. Como esses aspectos foram avaliados pelo presidente?
Stedile – Em primeiro lugar há um aspecto de emergência, que foi solucionado. O presidente assinou um decreto que normatiza e autoriza a Conab a compras antecipadas e compras diretas dos produtos dos assentamentos, em todo o país. Foram liberados R$ 400 milhões do Ministério da Fome Zero. Essa é uma grande conquista, pois garante a compra, por parte do governo, e a preços de mercado, de tudo o que o assentado produzir. Assim, ele foge do atravessador. Por outro lado, como são recursos do Fome Zero, a idéia é que a Conab repasse esses produtos para as prefeituras e escolas do próprio município, para atendimento dos pobres. Além disso, os assentados mais antigos e mais estruturados terão acesso aos recursos previstos no Pronaf, do plano safra. BF – Nos últimos meses, a violência no campo tem se acirrado. A formação de milícias organizadas pelos latifundiários para conter os sem-terra tem sido amplamente divulgada pela imprensa. Como o presidente avaliou este cenário? Stedile – Esse tema não entrou no debate. Nossa avaliação é de que existem dois aspectos. Há muito blefe de latifundiários atrasados, interessados em criar um clima de falsa tensão no campo, para assustar governo e opinião pública. Mas também há setores radicalizados dos fazendeiros que criam suas milícias armadas, empresas de segurança, contratam jagunços, em geral perto da fronteira, ligados à pecuária extensiva, que fazem contrabando de armas pesadas. Mas esses grupos são poucos, insignificantes e não têm apoio das organizações mais representativas dos fazendeiros. Para esses, só há um caminho: a Polícia Federal abrir inquérito e prender os criminosos. O ministro da Justiça garantiu que vai colocar a PF atrás desses marginais. BF – A postura dos latifundiários se deve a um aumento de ocupações que o MST vem realizando?
Stedile – Não. Primeiro, esses latifundiários atrasados se armam e ficam criando agitação sempre que percebem que sociedade e governo avançam para realmente combater o latifúndio. Segundo, as ocupações de terra ocorrem como resultado de uma grande contradição que existe: de um lado, grandes áreas improdutivas; de outro milhões de famílias sem terra. O governo anterior passou quatro anos reprimindo a luta pela terra e isso gerou uma demanda social reprimida, que agora aparece. Depois, o modelo do agronegócio é perverso. BF – Após o encontro com Lula, o MST pretende oferecer uma trégua?
Stedile – A imprensa, com seus editores de direita, introduziu a palavra trégua na questão da reforma agrária. Trégua existe quando há uma guerra. No nosso caso, não há guerra. Temos ao nosso lado a sociedade, o governo e os movimentos sociais, querendo aplicar a Constituição que determina que todo latifúndio improdutivo deve ser devolvido à sociedade para gerar trabalho e produção. O presidente, sabe que todas as mudanças sociais dependem das lutas sociais. As ações do MST estão dentro da lei. Um acórdão do STF, de alguns anos atrás, considerou que “a ocupação de terras como forma de pressão para a reforma agrária é uma forma legal, legitima do povo cobrar a reforma agrária”. Pode-se considerar abusivo (embora não ilegal) uma manifestação nos prédios públicos ou rodovias. BF – Qual avaliação o presidente fez sobre os transgênicos no país? Stedile – O presidente revelou que 90% de seu governo é contra os transgênicos, e que ele, pessoalmente, é contra. Mas reconhece que o tema é mais complexo e polêmico, e que o governo precisa consultar a sociedade e a comunidade científica, para que a nova legislação seja adequada à realidade. BF – Está sendo elaborado por uma comissão mista do Congresso um projeto de lei sobre transgênicos. O que o governo acha disso? Stedile – O governo criou um grupo de trabalho interministerial, e o Ministério de Ciência e Tecnologia está preparando as consultas e uma primeira minuta. O IPEA ficou encarregado de organizar o debate com a sociedade. Há setores do governo, no Ministério da Agricultura e na Embrapa que querem os transgênicos. Mas advertíamos que a Monsanto tem a patente mundial sobre a soja transgênica, que o mercado brasileiro é a única salvação para a Monsanto. E que se o governo liberasse a soja, a Monsanto receberia em royalties em torno de 500 milhões de dólares de nossa sociedade. O governo nos assegurou estar atento aos interesses da Monsanto e que não vai tolerar monopólio e nada que prejudique os interesses dos agricultores brasileiros. Dissemos ainda que o governo não deveria ter pressa em fazer uma nova lei de transgênicos. Que bem ou mal, a atual legislação resolve. Que devemos divulgar para que todos os agricultores saibam que é expressamente proibido plantar sementes transgênicas, e que todo supermercado precisa colocar rótulo dos produtos que tenham transgênico. BF - Após o encontro do MST com Lula, a bancada ruralista e as elites brasileiras ficaram enfurecidas. O que significa esse tipo de reação? Stedile – A simbologia da audiência mostrou que existe nova correlação de forças unindo o governo, os partidos de esquerda, os movimentos sociais, as igrejas e a sociedade. O latifúndio ficou só. Então, para defender privilégios, partiram para suas armas clássicas: orientaram seus parlamentares, escalaram seus jornalões, jornalecos e televisões para atacar. Os fazendeiros resolveram mostrar as armas, provocando o governo. BF - O resultado foi o pedido de abertura de uma CPI, aprovada no Senado, para investigar o MST. O que representa a abertura dessa CPI para o MST?
Stedile – Em menos de 12 horas, tentaram criar uma CPI, é um recorde na historia da legislatura brasileira. Na verdade, é forma de pressionarem o governo e arrancarem outros interesses.Não temos medo da CPI. Vamos utilizá-la para explicar porque existem o latifúndio, os sem-terra, as terras griladas, o trabalho escravo etc. Jornal Brasil de Fato, julho de 2003 |