Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos
Chegou ao limite do suportável o rebaixamento das águas do Rio Arrojado, em Correntina-BA, sem as quais seus ribeirinhos não existem. Apelar às autoridades governamentais de nada adiantou. Daí que, com plena consciência de um Direito Humano fundamental e capacidade de agir por ele, cerca de um mil destes ribeirinhos, em 02 de novembro de 2017, dia de Finados, quebraram e incendiaram asminstalações de irrigação agrícola da empresa que lhes sugava o sangue, quer dizer, as águas.
Nove dias depois, uma multidão de 12 mil pessoas saiu às ruas da cidade de cerca de 12.600 habitantes (Censo 2010) em apoio àquela ação: “Ninguém vai morrer de sede às margens do Arrojado”. (Ruben Siqueira, pela Comissão Pastoral da Terra/Bahia e Coordenação Nacional da CPT).
O conflito em Correntina, município situado no Oeste da Bahia, expõe algumas das consequências da expansão do agronegócio no Brasil, especialmente sobre os Cerrados. Esse conflito se constitui em um caso emblemático, como o principal no Brasil relacionado às águas, e remete ao desmatamento do Cerrado, que provoca a redução de vazão e mesmo morte de rios.
Formado há cerca de 65 milhões de anos, osCerrados [1] constituem o mais antigo e o segundo maior bioma brasileiro, dominando 36% do território nacional, sendo 192,8 milhões de hectares de Cerrado Contínuo e 114,4 milhões de hectares para as áreas de transição (Mazzeto Silva, 2009). Essas áreas se encontram nos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão, Bahia, Piauí, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, além do Distrito Federal. Por seu tamanho e complexidade natural, interage com a Amazônia, o Pantanal, a Caatinga e com a Mata Atlântica, constituindo ecótonos de grande complexidade e diversidade vegetal e animal (Barbosa, 2008).
Abriga diversas fitofisionomias como os Campos, o Cerradão, Matas, Matas Ciliares, Veredas e Ambientes Alagadiços e o Cerrado propriamente dito. Nele vivem 11.627 espécies vegetais, 250 espécies de mamíferos, 837 espécies de aves, 1.200 espécies de peixes e 150 espécies de anfíbios (MMA, 2009).
O relevo dos Cerrados, geralmente em chapadas e baixões, e sua diversificada vegetação nativa tem relação intrínseca com sua riqueza em águas e com a dinâmica de seu ciclo hidrológico, que conta com três grandes aquíferos, importantes tanto para outros biomas do Brasil como para outros países da América do Sul: o Guarani, o Bambuí e o Urucuia.
Como nos ensina Altair Sales Barbosa: os aquíferos são responsáveis pelas nascentes que dão origem à maioria dos rios do Cerrado. Sua existência está na dependência das águas precipitadas e de suas captações principalmente pelas vegetações de raízes profundas e de sistemas radiculares complexos (Barbosa, 2008).
Essas águas transbordam de seu berço nos Cerrados para perenizar rios da margem direita da bacia hidrográfica amazônica (Araguaia/Tocantins, Xingu, Madeira e Tapajós) e para as bacias do São Francisco, do Paraná e do Prata, do Parnaíba, do Jequitinhonha e do rio Doce. Aos Cerrados estão relacionadas as maiores e preciosas áreas continentais alagadas do Planeta, o Pantanal e o Araguaia.
A descoberta arqueológica de esqueleto de homo sapiens sapiens em Goiás confirma que povos originários vivem nos Cerrados há pelo menos 13 mil anos (Barbosa, 2008), construindo conhecimentos e saberes em estreita relação com os diferentes subsistemas do bioma para sustentar sua reprodução social, como enfatiza Porto-Gonçalves (2019, p. 40-41):
[...] ninguém vive em uma região, seja ela qual for, se não souber caçar, coletar, pescar e/ou eventualmente agricultar, ou seja, se não for capaz de garantir seu alimento e, assim, de se reproduzir de um modo próprio; ninguém vive numa região se não souber curar-se, ou seja, se não for capaz de desenvolver/ inventar uma medicina própria; ninguém vive em uma região se não souber se proteger das intempéries, ou seja, inventar uma arquitetura própria. [...] dito de outro modo, ninguém vive sem conhecimento, sem saber (alimentar-se, curar-se e habitar). O saber está inscrito na vida, no fazer.
Como herdeiros culturais desses primeiros habitantes, os Cerrados são hoje habitados por uma ampla diversidade de povos e comunidades tradicionais que “representam a sociodiversidade do bioma e ao mesmo tempo são os guardiões do patrimônio ecológico e cultural da região” (ActionAid, RSJDH, 2017, p. 24). São mais de 80 etnias indígenas, reunindo 44.118 pessoas, distribuídas principalmente em terras do Maranhão, Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul,
[...] dos grupos linguísticos Jê e Macro-Jê. No primeiro, encontramos os Timbira (que incluem os indígenas Canela, Krinkati, Pukobyé, Krenjé, Gavião, Krahô), os Kayapó (que incluem os Kubenkranken, Kubenkrañoti, Mekrañoti, Kokraimoro, Gorotire, Xikrin, Txukahamãe), os Xerente, Karajá, Xavante, Xakriabá, Apinayé (hoje tido como do grupo Timbira), Suyá, Kreen-Akarôre, Kaingang e Xokleng. O tronco linguístico maior (Macro-Jê) incluiria ainda os indígenas Pataxó, Bororo, Maxakali, Botocudo, Kamakã, Kariri, Puri, Ofaié, Jeikó, Rikbatsá, Guató e Fulniô, além dos Guarani Kaiowá (Silva, 2009, p. 51).
Como povos e comunidades tradicionais, habitam também os Cerrados os quilombolas, descendentes dos povos pretos sequestrados em África e trazidos ao Brasil para serem escravizados nas sesmarias. Submetidos a condições de vida e trabalho compatíveis com a condição de não huma- nos que a Modernidade inventou para eles, a fim de justificar o projeto colonial, muitos fugiam das senzalas para tentar constituir comunidades em que pudessem reconstruir sua identidade e cultura – os quilombos. A Lei de Terras, de 1850, já antecipava barreiras para que, com a abolição da escravatura, eles não pudessem ter acesso a terra e fossem le- vados a ocupar terras devolutas entre os latifúndios em expansão.
A despeito do imaginário de “vazio demográfico” construído e difundido em torno dos Cerrados, vivem ainda em estreita relação de interdependência com o bioma vários grupos e comunidades tradicionais que compõem o campesinato na região:
[...] os geraizeiros (norte de Minas Gerais), os geraizenses (Gerais de Balsas/MA), retireiros (áreasalagadas do Araguaia/MT); beiradeiros, barranqueiros e vazanteiros das beiras e das ilhas do São Francisco (MG); quebradeiras de coco (Zona dos Cocais/MA,PI e TO), pantaneiros (MT e MS), camponeses dos vãos (sul do Maranhão) e outras denominações mais gerais, como varjeiros e ribeirinhos (ao longo dos rios São Francisco, Grande e Paraná), caipiras (Triângulo Mineiro e São Paulo) e sertanejos (norte de Minas, Bahia, Maranhão e Piauí), bem como as comunidades de fundo e fecho de pasto do oeste da Bahia (Silva, 2009 apud ActionAid; RSJDH, 2017, p. 26).
Os ricos e diversificados modos de vida desses povos incluem, em geral, viver em terras devolutas nos chamados baixões, onde chega a água das nascentes nas chapadas, possibilitando a pesca e o cultivo de suas roças de mandioca, arroz, milho, feijão, além da criação de galinhas e porcos. As chapadas são utilizadas como terras comuns para a criação de gado, a caça e a extração de frutos e ervas medicinais. Ou seja, a relação entre as terras comuns da chapada e a posse nos baixões é o que permite a reprodução dos modos de vida desses camponeses posseiros (Alves, 2006).
É este o rico território que o povo de Correntina (e muitos outros) defende(m).
Atualmente, os Cerrados brasileiros, enquanto espaço produtivo, têm sido aceleradamente tensionados pela expansão do agronegócio2, constituindose na maior região brasileira produtora de grãos.
O modelo produtivo do agronegócio, baseado em extensas áreas de monocultivos, implantase a partir do desmatamento, destruindo a biodiversidade e comprometendo o ciclo hidrológico; demanda enormes volumes de água, restringindo seus usos pelas comunidades locais; e ainda, entre outras consequências socioecológicas, utiliza intensivamente fertilizantes químicos e agrotóxicos – 602.303.236 de litros de agrotóxicos no ano de 2018, nos cultivos de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão –, os quais têm implicações na contaminação do ar, do solo e das águas e, muito especialmente, no adoecimento de trabalhadores/as e moradores/as (Pignati et al., 2017; IBGE, 2020).
Pretendemos neste artigo defender que está em curso um processo de Ecocídio nos Cerrados brasileiros nas últimas décadas. De acordo com o Estatuto do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) [3], baseado na Declaração Universal dos Direitos dos Povos aprovada em Argel em 4 de julho de 1976,
[...] ecocídio é entendido como o sério dano, destruição ou perda de um ou mais ecossistemas, em um determinado território, seja por causas humanas ou por outras causas, cujo impacto causa uma diminuição severa nos benefícios ambientais dos quais os habitantes desse território desfrutavam.
No intuito de contribuir para qualificar o Ecocídio dos Cerrados, vamos caracterizar especificamente duas das (muitas) implicações socioecológicas relacionadas à expansão do agronegócio sobre o bioma: a espoliação das águas, com aprofundamento nos conflitos em curso no oeste da Bahia e na bacia dos rios Formoso e Javaés em Tocantins; e alguns impactos do uso intensivo de agrotóxicos sobre a saúde dos povos dos Cerrados, como as intoxicações agudas, as más-formações congênitas e os cânceres infanto-juvenis.
Autores:
Daniela da Silva Egger, Raquel Maria Rigotto, Francco Antonio Neri de Souza e Lima, André Monteiro Costa, Ada Cristina Pontes Aguiar
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Notas:
[1] Adotamos neste artigo a denominação Cerrados, no plural, para nos referir ao Cerrado Contínuo e suas áreas de transição, como recomendam
diversos estudiosos do bioma.
[2] Neste artigo vamos nos referir ao termo agronegócio a partir do conceito proposto por Guilherme Delgado, que o define como um “pacto de economia política entre cadeias agroindustriais, grande propriedade fundiária e Estado, que impõe cada vez mais uma estratégia privada e estatal de perseguição da renda fundiária como diretriz principal de acumulação do capital para o conjunto da economia” (Delgado, 2012, p. 111).
[3] O Estatuto atualizado do Tribunal Permanente dos Povos está disponível em: < http://permanentpeoplestribunal.org/estatuto/?lang=es>, sendo
a definição de ecocídio trazida no artigo 5 do Estatuto. Acesso em: jan. 2021.