Desenvolvimento: Amazônia não é uma tábula rasa. Entrevista especial com Daniela Alarcon
“Precisamos parar de entender a Amazônia como um quintal da região Centro-Sul do Brasil, porque ela sempre foi vista como um lugar a ser desenvolvido, fazendo-se tábula rasa de tudo que existe ali”, adverte a pesquisadora.
Apesar de o Ibama ter cancelado o processo de licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, alegando inviabilidade ambiental, outros empreendimentos continuam em curso na região, compondo o grupo de projetos de infraestrutura e rotas logísticas nabacia do Tapajós. Entre eles, destaca-se a construção da hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós, que “é voltada para o escoamento de commodities e surge do interesse do setor do agronegócio de encurtar as rotas logísticas existentes nesse processo e, assim, reduzir os seus custos”, informa Daniela Alarcon à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Segundo ela, essa proposta está vinculada à criação de portos no Norte do Brasil, especialmente na região amazônica, que encurtariam as rotas internas e externas de exportação. “Nossa crítica é de que esse projeto vê a Amazônia como um espaço que se pode dispor economicamente sem levar em conta o quão intrincado é esse bioma, sem levar em conta a multiplicidade de sujeitos que vivem nessa região, ou seja, é um olhar que se faz da Amazônia a partir de uma ideia de desenvolvimento”, afirma.
Daniela Alarcon é uma das organizadoras do livro, recém-lançado, Ocekadi. Hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na Bacia do Tapajós, que compila uma série de artigos que apresentam as implicações de empreendimentos na região amazônica, entre eles, os que visam à extração mineral. Até o momento, diz, o território em volta da Bacia do Tapajós “já foi todo distribuído com pedidos de concessões apresentados ao Departamento Ambiental de Proteção Mineral”, porque várias empresas já estão “interessadas nessas áreas”, que é “riquíssima em recursos minerais”.
Daniela Alarcon é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília - UnB, com especialização em Estudos Comparados sobre as Américas, e graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você recebeu a notícia de que o Ibama cancelou o processo de licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, por conta da inviabilidade ambiental do empreendimento?
Daniela Alarcon – Em um cenário bastante adverso, essa foi uma boa notícia, a qual demonstra que esse é um projeto insustentável em vários sentidos. Essa decisão é resultado de um esforço muito grande e de muita pressão dos indígenas, ribeirinhos, que estão denunciando esse projeto. Apesar de essa ser uma notícia positiva, o entendimento que se tem é de que as pessoas devem seguir mobilizadas para evitar futuras manobras que podem levar à continuidade do projeto.
Pelo que estou acompanhando até o momento, não há a possibilidade de retomarem o projeto, mas sabemos que os projetos revivem com outros nomes e características e, nesse sentido, o de Belo Monte é bastante emblemático, porque era o antigo projeto Cararaô, que ressurgiu com o nome de Belo Monte. Então, é preciso ficar alerta aosprojetos minerais, hidrelétricos e do agronegócio na Bacia do Tapajós, para além desse empreendimento específico.
IHU On-Line - Em que consistem os planos e projetos de rotas logísticas na bacia do Tapajós, como o de implantação da hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós? Em que momento e por quais razões surge esse projeto?
Daniela Alarcon – O projeto de hidrovia é voltado para o escoamento de commodities e surge do interesse do setor do agronegócio em encurtar as rotas logísticas existentes nesse processo e, assim, reduzir os seus custos. Hoje os portos de Santos(SP) e de Paranaguá (PR) são muito movimentados e têm uma capacidade precária, então, surgem essas propostas de criar portos no Norte do Brasil, na Amazônia, o que encurtaria tanto as rotas internas como as externas para exportação dos produtos brasileiros. O projeto de construção de uma hidrovia no Tapajós vem nesse esforço que já existe há alguns anos. Nossa crítica é de que esse projeto vê a Amazônia como um espaço de que se pode dispor economicamente sem levar em conta o quão intrincado é esse bioma, sem levar em conta a multiplicidade de sujeitos que vivem nessa região, ou seja, é um olhar que se faz da Amazônia a partir de uma ideia de desenvolvimento.
Impactos
Esse projeto, então, prevê a transposição de uma série de cachoeiras, porque o rio Tapajós é bastante encachoeirado, principalmente no alto do Tapajós. Portanto, é um projeto que demandaria muitas intervenções em um bioma muito complexo e pouco conhecido; inclusive, é difícil falar de todos os impactos de um projeto como esse, porque ele prevê uma interferência enorme em um ambiente que sequer é conhecido.
Esses portos, que ficariam na ponta da hidrovia, acarretam impactos profundos. Basta lembrar o incidente que ocorreu em Barcarena (PA), quando um navio naufragou – isso acarretou muitos impactos ambientais. Mas mesmo quando desastres como esse não acontecem, a presença dos portos já representa maior especulação imobiliária e avanço nas áreas tradicionais já ocupadas. Teríamos, então, um impacto não só da hidrovia ao longo do rio, mas do próprio surgimento do porto, dado que as empresas querem comprar uma série de terrenos à beira do rio e populações estão sendo deslocadas para isso.
Dentro desse grande quadro de rota logística, também existe o projeto de asfaltamento da BR-163, que será realizado no norte do Pará, o qual é apresentado como uma região sem gente, num vazio demográfico. A população tem se posicionado contra esses empreendimentos porque tem uma relação muito íntima com o rio, tanto do ponto de vista da sua sobrevivência como do deslocamento, porque é do rio que eles tiram seu sustento.
IHU On-Line - Qual é a previsão para a realização desse projeto? A perspectiva é que ele seja desenvolvido pelo setor público ou privado?
Daniela Alarcon – Esse projeto surge de uma pressão muito forte do setor privado, mas quem arcaria com os custos logísticos, como estabelecimento de eclusas, por exemplo, seria o setor público, e essa é uma das críticas feitas ao projeto, porque ele visa beneficiar um determinado segmento da população que exige recursos muito altos do setor público. Em relação a todos esses projetos, é importante frisar que, mesmo quando são financiados pelo setor privado, recebem um forte incentivo do BNDES.
A informação mais recente sobre os avanços no processo de implementação da hidrovia não é tão recente assim: é de novembro do ano passado, quando o projeto foi aprovado. Enquanto isso, os defensores do projeto não estão parados; seguem em intenso lobby. Com as atuais mudanças feitas no governo, ainda não sabemos o que vai acontecer com esses projetos no momento.
IHU On-Line – Como estão os pedidos de concessão para a exploração minerária na região? Quais empresas já demonstram interesse na extração mineral no entorno do Tapajós?
Daniela Alarcon – Imaginamos que no Tapajós a situação não será diferente do que acontece no entorno de Belo Monte, onde a empresa Belo Sun pretende explorarminérios na Volta Grande do Xingu. A área em volta do Tapajós é riquíssima em recursos minerais, e o território já foi todo distribuído com pedidos de concessões apresentados ao Departamento Ambiental de Proteção Mineral (Ver mapa 1). O estabelecimento de usinas hidrelétricas nessa bacia seria algo extremamente interessante para os setores que buscam explorar essas jazidas. É bom lembrar que estamos em um processo intenso de tentativa de alteração do Código de Mineração, que, se fosse adiante, passaria a permitir a atividade de mineração em terras indígenas. O Tapajós é uma região com várias áreas indígenas e de conservação e já têm várias jazidas minerais identificadas.
Várias empresas já estão interessadas nessas áreas (Ver mapa 4). Os mapas — os quais montamos a partir de dados públicos — mostram que vários quadrados e retângulos se sobrepõem e todos esses são pedidos de exploração mineral e de concessão mineral — alguns já concedidos e outros requeridos — a empresas como Anglo American Niquel Brasil, Brazauro Recursos Naturais etc.
IHU On-Line - Como avalia as declarações de que a construção da hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós ajudaria a acabar com a situação injusta que hoje penaliza os que vivem na região e os produtores?
Daniela Alarcon – É preciso desconstruir essa ideia de que a Amazônia é uma região pobre, porque a ideia de pobreza é algo socialmente construído. Na Amazônia moram pessoas que vivem em ambientes que elas conhecem profundamente, dos quais retiram sua sobrevivência e têm um modo de vida de baixíssimo impacto, e isso muitas vezes é qualificado como pobreza. Mas é preciso ver que os grupos humanos estabelecem formas de viver que não necessariamente devem ser parâmetros uns para os outros.
Portanto, vejo nessa declaração um interesse em convencer a população, de modo mais amplo, da realização de um projeto que é ligado claramente a alguns setores econômicos, os quais não visam beneficiar a sociedade local, porque no máximo a população será incorporada em algum desses projetos como mão de obra precarizada, como já estamos assistindo em outros contextos. Basta ver a situação de Altamira hoje.
A hidrelétrica de Belo Monte foi apresentada como a grande salvação para o município, e hoje sequer há o mesmo número de voos para Altamira como existia há alguns anos e a cidade já sente o baque do fim daquele momento das obras. Então, vejo esse tipo de afirmação como uma tentativa de convencer pessoas que são pouco familiarizadas com o contexto do Pará para tentar vender projetos que são ligados a investimentos restritos.
IHU On-Line - Que abordagem deveria se dar para região amazônica? Que tipo de desenvolvimento você considera que seria adequado para a região?
Daniela Alarcon – Em primeiro lugar, precisamos parar de entender a Amazônia como um quintal da região Centro-Sul do Brasil, porque ela sempre foi vista como um lugar a ser desenvolvido, fazendo-se tábula rasa de tudo que existe ali. Existem iniciativas interessantes de pessoas que estão desenvolvendo atividades de baixo impacto e que poderiam ser mais apoiadas, mas, em primeiro lugar, o que está na raiz de um projeto de desenvolvimento para a Amazônia é a garantia dos territórios, porque estamos falando de populações que vivem situações de simbiose com a natureza e que não têm sequer o seu direito à terra garantido.
Se quisermos falar realmente de um desenvolvimento na Amazônia, a primeira coisa a ser feita é garantir a demarcação das terras indígenas, a criação e manutenção adequada das unidades de conservação, onde já vivem pessoas que garantem a permanência da floresta em pé. A fórmula mágica de pensar a partir do Centro-Sul, que não leva em conta os interesses e desejos das pessoas que vivem na Amazônia, está fadada ao fracasso, é autoritária e equivocada, porque essas populações detêm conhecimento profundo sobre esses territórios e, portanto, se alguém tem condições de desenhar formas de se viver melhor na Amazônia, são as pessoas que vivem ali, no marco de um debate público que não venha impor um projeto salvador para a Amazônia.
IHU On-Line - Quais são as comunidades indígenas que vivem no entorno da bacia hidrográfica do Tapajós e quais são os impactos já identificados caso esses projetos sejam realizados?
Daniela Alarcon – Existem várias terras indígenas que são divididas em várias aldeias e o processo de criação e extinção de aldeias é algo muito dinâmico. Mas certamente é uma das regiões mais diversas do Brasil e tem povos como os Munduruku, Kaiabi, Apiaká, e registros de possíveis povos sem contato.
Evidentemente, os impactos dos barramentos não seriam os mesmos para todos os grupos que vivem nessas áreas. Se, de um lado, a Terra Indígena - TI Maró, habitada pelos Borari e Arapium, situa-se no baixo curso do Tapajós, o que a levaria provavelmente a sofrer impactos mais reduzidos, de outro, há situações como a da TI Manoki, habitada pelo povo de mesmo nome, onde incidem 11 pequenas centrais hidrelétricas - PCHs, e a da TI Sawre Muybu, habitada pelos Munduruku, que teria uma porção alagada por São Luiz do Tapajós.
No que diz respeito à situação dos ribeirinhos, a invisibilidade é ainda maior que a dos indígenas. Há numerosas comunidades tradicionais espalhadas pela região, dentro e fora de Unidades de Conservação, e não há sequer um levantamento mais ou menos exaustivo sobre as mesmas.
Fuente: Instituto Humanitas Unisinos