Brasil: feijão "Sopinha": Valores milenares para um desenvolvimento sustentável, por Ronaldo Martins Botelho

A biotecnologia e os recursos genéticos são questões que se encontram prementes inseridas na política científica e tecnológica do governo brasileiro. O propósito de proteção da biodiversidade sem a obstrução do comércio internacional dos produtos geneticamente modificados é definido como um dos desafios nessa área para a transição rumo ao desenvolvimento sustentável

Integrando um grupo de 30 estudantes da Ufrgs e Ufpel, no mês de maio de 2000 - há exatamente dois anos atrás - tivemos a oportunidade de conhecer pessoalmente o forte impacto que o resgate de uma antiga variedade alimentar pode criar em uma pequena comunidade agrícola. A Brigada Pedagógica Professor Agrônomo Antônio Tavares Quintas, realizada a partir daquele mês nas cidades gaúchas de Mostardas e Tavares, nasceu a partir da iniciativa de um pesquisador local, que recebera de uma idosa, descendente de escravos, um punhado de sementes de um certo feijão quase extinto na região. Essa ação extensionista foi integrada por vários setores da Comunidade local: Sindicatos de Trabalhadores Rurais e da Alimentação, Prefeituras das duas cidades e Universidades envolvidas.

Com o propósito de resgatar a diversidade alimentar das comunidades remanescentes de quilombolas através do cultivo daquelas sementes - identificadas posteriormente como 'Feijão Sopinha' - foi realizado naquela região atividades de plantio, colheita e debulhamento do cultivar. Mais importante do que o trabalho em si, todavia, foi o valor simbólico da ação. Além do mérito da experiência do contato direto com o ambiente da lavoura, universitários extensionistas de oito diferentes áreas do conhecimento puderam também debater com os trabalhadores rurais e professores a importância daquele feijão - trazido do oeste da África, onde era cultivado desde o século XVI.

Mas, qual a dimensão científica e tecnológica de uma iniciativa desse tipo? O que, efetivamente, pode envolver uma breve atividade de um grupo de universitários em torno de uma variedade alimentar em uma comunidade quilombola do litoral sul gaúcho? Muito além do que pudemos supor a priori.

A perspectiva de desenvolvimento agrícola que prevalece hoje no Brasil tem a sua origem histórica construída a partir dos princípios da maximização lucrativa. Esse modelo difundido pelo mundo através da Revolução Verde, nunca levou seriamente em conta as implicações negativas de longo prazo ao meio ambiente, decorrente do uso desenfreado de defensivos químicos e da rápida mudança nas práticas agrícolas em prol dos monocultivos. Atualmente, graças à universalização dos reflexos negativos do mau uso dos recursos naturais, diferentes povos organizações ecológicas de todas as partes do mundo integram-se cada vez mais em torno da causa ambiental, em prol da preservação de espécies vivas e dos ambientes naturais. Nesse contexto, a preservação da biodiversidade natural do planeta constitui-se um tema principal na definição de políticas tecnológicas para o setor rural, apoiadas em princípios de conservação do meio-ambiente.

A ameaça aos ambientes naturais e a preservação das variedades de espécies animais e vegetais vivas sempre envolveu grandes interesses econômicos e já mobilizou inúmeras bandeiras ao longo das últimas décadas. Entretanto, a partir da gradual transposição da matriz energética do petróleo para a biotecnologia, têm se alterado substancialmente o rumo dos interesses de mercado das grandes empresas agro-alimentares, que passaram a investir pesadamente nesse novo campo (PINHEIRO,1999).

Gigantes complexos agro-industriais percebem a fenomenal riqueza passível de exploração nos organismos vivos. Primeiramente, através pura e simples biopirataria biológica e, mais recentemente, através de leis facilitadoras, transacionais do setor químico e alimentar investem no patenteamento de gens com vistas a assegurarem a exclusividade sobre o comércio dessas espécies em um futuro não muito longo. Assim, especialmente ao longo dessa última década, construiu-se uma 'onda ambientalista', patrocinada pela iniciativa privada, com o intuito último de assegurar a sobrevivência das matérias primas para a sua atividade industrial (2). Desse modo, torna-se imprescindível distinguir-se as iniciativas efetivamente comprometidas com o resgate do patrimônio genético daquelas que assumem um discurso preservacionista, mas tem na realidade o interesse único em da manutenção da natureza como uma espécie de reservatório natural para transações e especulações financeiras (3).

A acirrada disputa atual da opinião pública em torno dos alimentos transgênicos - liderada hoje por ambientalistas de um lado, e complexos agro-alimentares de outro (4) - tem, em sua essência, posicionamentos políticos distintos ao que se refere a um projeto de desenvolvimento para o País. Ao contrário do que ás vezes se pretenda fazer crer, a ciência tem alta dose de relação e responsabilidade com esse debate (GOODFIELD,1998). Nas entrelinhas de seus argumentos, os defensores da liberação comercial imediata de cultivos transgênicos sugerem que a humanidade corre sérios riscos de sofrer a escassez de alimentos em um período não muito longo, caso não adote sistemas de 'aumento da produtividade por unidade de área' (5). Sinteticamente, o dilema estabelecido por esses postulantes seria: 'Transgênicos ou Fome'.

Paralelo a essa polêmica cresce a sustentação de amplos setores da Sociedade Civil a um modelo alternativo à agricultura industrial predatória e custosa, que tem predominado nos países em desenvolvimento como o nosso. Ambientalistas do mundo inteiro observam que a erosão genética, provocada pela destruição dos ecossistemas naturais e pela substituição das variedades locais por variedades economicamente uniformes, tende a se constituir futuramente uma crise sem precedentes no setor agrícola. Alertam tais setores da sociedade civil que essa ameaça recai não apenas as nações desenvolvidas, que dependem do terceiro mundo como suporte genético, mas também os países subdesenvolvidos, obrigados a importar sementes patenteadas pelas multinacionais do setor agro-alimentar - sementes estas, muitas vezes originárias nos próprios germoplasmas dos países dependentes.

Atentos a esse cenário, retomemos a indagação inicial, a respeito do real significado de uma ação integrada da universidade, governo e pequenas comunidades em torno do resgate de uma simples semente que ameaçava perder-se ao longo do tempo.

A semente de um cultivar e os alimentos dele derivados pode representar valores culturais e religiosos determinantes em uma sociedade. "Cada semente é uma vida, tem memória e tem história. Ela traz uma carga genética milenar que precisa ser conservada " (6), observa o agrônomo e pesquisador gaúcho Sebastião Pinheiro. O alimento se constitui um forte elemento cultural. Para o antropólogo Roberto Damatta, em alguns rituais religiosos, a comida tem a força de uma pessoa (7). Em uma lavoura, a variedade genética significa a adaptação diferentes meios e condições de crescimento das plantas, a capacidade de uma variedade determinada para enfrentar a seca ou a má qualidade do solo, para resistir a uma praga de insetos, proporcionar uma produção rica em proteínas ou, simplesmente, produzir alimentos de melhor sabor (HOBBELINK,1990). Todavia, as comunidades locais, que são historicamente os maiores responsáveis pela manutenção e perpetuação da biodiversidade agrícola, encontram-se legalmente excluídas do centro das decisões como a biodiversidade, comércio mundial e proteção da propriedade intelectual.

Através do trabalho de extensão e pesquisa os estudantes gaúchos observaram que o feijão Sopinha surgia nos relatos dos moradores daquela região do litoral sul do RS como um alimento usado por seus ancestrais. Essa espécie de feijão teria sido trazida para o Brasil com os nativos da África nas navegações do período escravista, tendo sido utilizado como comida de escravos. O trabalho do grupo também apurou que essa variedade pertence ao grupo de feijões Caupi (Vigna sp), cultivado no Nordeste brasileiro, onde é conhecido como 'Feijão Macássar' e, em outros Países, como 'Pingo de Ouro' (8). Foi identificado nesse alimento um alto conteúdo protéico, possuindo este baixos fatores antinutricionais e alto teor de carboidratos. Outra característica verificada nesse feijão é a de que o mesmo não responde à adubação química, possivelmente um dos motivos de não Ter se tornado interessante a sua comercialização em larga escala. Todavia, características como o seu acentuado potencial nutritivo, seu curto período de cozimento (8 a 10 min) e sua fácil adaptação aos solos secos e arenosos tornam o feijão Sopinha altamente apropriado para o consumo pelas classes de menor poder aquisitivo.

Além do amplo debate com a Comunidade sobre a importância cultural do feijão naquela região - considerada etnicamente açoriana, embora constituída por uma expressiva população negra - a ação realizada pelas duas universidades gaúchas viabilizou a comercialização da produção do Feijão em uma conhecida feira ecológica de Porto Alegre, sendo inaugurada a venda direta desse cultivo em Feiras da Capital gaúcha. A partir de então, novas Brigadas foram realizadas pela Ufrgs, sendo as duas últimas ocorridas nesse mês de dezembro, em uma Escola Técnica Agrícola e em um assentamento rural, ambas na cidade gaúcha de Viamão. Ainda através da parceria com o sindicato rural local, foi viabilizado a exportação de sacos de sementes para outros estados brasileiros, como São Paulo, Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas.

A experiência do feijão Sopinha constitui-se um exemplo concreto da contribuição do conhecimento científico, através da parceria Governo-Universidade-Comunidade, para a recuperação e difusão da diversidade genética. Comprova também tal iniciativa, que as pesquisas e ações governamentais no setor agrícola, dirigidas para o atendimento das necessidades sociais, não precisam estar restritas exclusivamente aos centros de pesquisa ou salas de aula, nem envolver necessariamente grandes custos financeiros. O resgate do patrimônio genético através de ações descentralizadas é uma possibilidade não apenas ecologicamente correta, como viável economicamente para quem o pratica. A construção de um projeto nacional de desenvolvimento sustentável que incorpore as modernas tecnologias e pesquisas científicas na agricultura, não deve ignorar nem o saber, nem as possibilidades de sobrevivência das comunidades agrícolas locais. Da mesma forma, o preemente desafio do progresso científico da aliança tecnologia-sustentabilidade não pode estar divorciado da perspectiva de construção de uma sociedade saudável e ciente de que a natureza se constitui um espaço de vivência cuja formas de manutenção e exploração semeiam o modo de vida de todas as espécies, inclusive a humana.

(1) Jornalista, Pesquisador e Assessor de Comunicação das Faculdades Integradas de Palmas, PR - Brasil
(2) HATHAWAY, David. ONGs e a biodiversidade na Rio 92. In: tempo e presença. RJ: CEDI, set-out / 92. Ano 14, n.265.
(3) O dinheiro é verde. In: Carta Capital. Ano VII, n.136, Pp.64-66. Nov / 2000.
(4) O cerco aos transgênicos. Consumidor S.A. SP: IDEC. Set, 2000.
(5) PATERNIANI, Ernesto & AZEVEDO, João Lúcio. Salvando o planeta com alta tecnologia agronômica. In: Ciência Hoje, v.21, n. 122, Jun / 1996.
(6) A meta é diversificar (Reportagem). In: ADVERSO. POA: Associação dos Docentes da Ufrgs. Pp. 6 e 7, nov / 2000.
(7) DAMATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. Correio da Unesco, jul, 1987, ano 15, n.7.
(8) ADVERSO, Op. Cit.

Bibliografia Auxiliar:

MOONEY, Pat Rou. A Revolução Verde. In: O escândalo das sementes - o domínio na produção de alimentos. RS: Nobel, 1987, pp. 18-23 e 41-51.

PINHEIRO, Sebastião. Espectro de fins e meios. In: Transgênicos: o fim do gênesis. POA: Fundação Juquira Candirú. Pp.31-68, 1999.

HOBBELINK, Henk. De onde vêm as sementes... e para onde vão? In: Biotecnologia: Muito além da revolução verde - Desafio ou desastre? Lerna / ICDA, Barcelona, 1987. Trad: PINHEIRO, Sebastião. POA, 1990

GOODFIELD, June. Brincando de Deus: a engenharia genética e a manipulação da vida. trad. Regina Régis Junqueria. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.

OUTHAWAITE, Wiliam e BOTTOMORE, Tom. Mudança tecnológica; Revolução científico-tecnológica e Racionalização. In: Dicionário do Pensamento social do século XX. RJ: Jorge Zahar Editor, vers. Bras. De LESSA, Renato e SANTOS, Wanderlei Guilherme dos Santos, 1996, pp.504-505, 666-669 e 641-642.

Documentos Consultados:

De patentes y piratas - EL ABC DEL PATENTAMIENTO DE LA VIDA. www.biodiversidadla.org (Home Page mantida pela Genetic Resourses Action International - GRAIN, Barcelona / Espanha e pela Rural Adancement Foudation International - RAFI, Winhipeg / Canadá). Documento n.95.

PIERRE, Jean. MANIFIESTO POR LOS DERECHOS DE LOS AGRICULTORES EN LA CONSERVACIÓN Y USO DE LA BIODIVERSIDAD. www.biodiversidadla.org. Documento 102.

El patentiamento de los descubrimientos biotenconológicos. Documento 101. www.biodiversidadla.org

Posição do setor sementeiro frente aos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). www.mct.gov.br - Home Page do Ministério da Ciência e Tecnologia - Governo Federal do Brasil.

SANDENBERG, Ronaldo Mota (Ministro da Ciência e Tecnologia). Forum de Biotecnologia e Biodiversidade. www.mct.gov.br Canal do Ministro - Artigos.

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