Brasil: Terras Indígenas na mira do licenciamento

Idioma Portugués
País Brasil

"O novo texto do projeto de lei para alterar o licenciamento ambiental no país ameaça diretamente 45 Terras Indígenas (TIs) que já possuem projetos de infraestrutura ou de mineração planejados ou em operação."

ISA realiza levantamento de empreendimentos que podem impactar Terras Indígenas caso novo projeto ruralista de licenciamento ambiental seja aprovado.

A reportagem é publicada por ISA, 26-04-2018.

O novo texto do projeto de lei para alterar o licenciamento ambiental no país ameaça diretamente 45 Terras Indígenas (TIs) que já possuem projetos de infraestrutura ou de mineração planejados ou em operação. É o que mostra uma análise inédita publicada, na "semana do índio", pelo ISA e elaborada por seu Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas. A nota técnica mostra que, no total, há pelo menos 223 TIs cujos processo de demarcação ainda não foram concluídos e que estão ameaçadas pela proposta ruralista - porque podem vir a ser desconsideradas em eventuais processos de licenciamento.

O levantamento expõe ainda os interesses econômicos e as empresas que podem se beneficiar com as mudanças da legislação. No total, são 42 projetos de infraestrutura e 193 processos minerários que, segundo o projeto, deixariam de ter a exigência de parecer da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a aprovação. São hidrelétricas, linhões, rodovias e ferrovias que podem rasgar os territórios e afetar para sempre a vida dessas populações. Também foram identificadas invasões por fazendeiros, posseiros e grileiros em 65 terras. Alguns desses projetos, inclusive, só não foram efetivados ainda porque a Funai entendeu que as áreas seriam afetadas de forma ilegal e, por isso, o órgão ambiental responsável deu parecer pela inviabilidade ou pela suspensão da licença.

A análise também traz o ranking das áreas que há mais tempo aguardam a conclusão da demarcação. Há comunidades que esperam há mais de 30 anos a caneta do governo para garantir seus direitos.

Há duas propostas ruralistas no Congresso com teor bem semelhante sobre o assunto: o Projeto de Lei (PL) n.º 3729/2004 e o Projeto de Lei do Senado (PLS) 168/2018. O primeiro já está pronto para ser votado no plenário da Câmara. O segundo, apresentado recentemente pelo senador Acir Gurgacz (PDT-RO), está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

O texto de Gurgacz prevê que só seriam consideradas no licenciamento as TIshomologadas. Neste caso, os impactos socioambientais de obras e empreendimentos sobre todas as áreas em etapas anteriores no complexo procedimento demarcatório seriam desprezados e as comunidades afetadas não seriam ouvidas. O problema é grave porque, caso essas obras e empreendimentos tornem-se fatos consumados, o mais provável é que as demarcações sejam paralisadas de vez ou mesmo arquivadas, já que os territórios tendem a ser degradados ao ponto de não conseguir mais garantir a sobrevivência física e cultural das populações indígenas.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) já declarou a inconstitucionalidade de se restringir a proteção das terras indígenas, discriminando-as pela etapa do processo de demarcação. Para a corte, ao demarcar uma terra, o Poder Público meramente declara um direito preexistente, de modo que todas as terras indígenas merecem proteção, e não apenas aquelas homologadas.

“Eventual aprovação do projeto constituirá ofensa direta ao STF. É inadmissível que a omissão do governo em reconhecer uma terra indígena, tal como determina a Constituição, sirva de fundamento para que o licenciamento desconsidere a existência dessa terra e de seu povo. É um duplo ônus, totalmente inconstitucional”, afirma Mauricio Guetta, advogado do ISA.

Aldeia Muratu dos Juruna na Terra Indígena Paquiçamba

Empresas e projetos

Dentre os possíveis beneficiados com o novo PL, estão grandes empresas como a Andrade Gutierrez, que teve um projeto para a construção da Usina Hidrelétrica Pompeu barrado após parecer da Funai. Segundo o órgão, a barragem impactaria 750 hectares da Terra Indígena Kaxixó, em Minas Gerais.

Outro caso emblemático é o da Usina Hidrelétrica São Luis do Tapajós. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) negou a licença para a construção da usina em 2016, depois de considerar o impacto na TI Sawré Muybu, ainda não homologada. Se o novo licenciamento for aprovado, o território, habitado por índios Munduruku, seria inteiramente destruído pelo impacto de três usinas hidrelétricas ( São Luiz do Tapajós, Jatobá e Cachoeira do Caí) e por solicitações de mineração, que ocupam quase a totalidade de suas terras.

Outro exemplo é o da Usina Hidrelétrica Pedra Branca. As empresas interessadas (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, Construtora Norberto Odebrecht S.A., Desenvix S.A. e Engevix S.A.) também tiveram que cancelar o projeto após o entendimento da Funai de que a obra impactaria a TI Tumbalá, na Bahia.

O levantamento do ISA detectou terras indígenas com requisição de mineração em 100% do seu território. É o caso da TI Jauary (AM) que tem prospecção de mineração pela empresa Potássio do Brasil em todos os 24.831 hectares de sua terra. Algo similar ocorre com a TI Murutinga/Tracajá (AM), que tem prospecção de mineração das empresas HJH Mineração do Brasil, Potássio do Brasil e Falcon Metais em seus mais de 13 mil hectares.

As TIs Lago do Limão (AM), Sissaíma (AM), Paquiçamba (PA) ePaukalirajausu (MT) também tem projetos minerários previstos em quase todo o seu território. Segundo o levantamento do ISA, esses projetos atingiriam 97%, 95%, 89% e 86% das áreas dessas terras, respectivamente. Ou seja, com a aprovação do novo projeto de licenciamento, esses territórios seriam inteiramente dominados pela mineração, com consequências drásticas para os povos indígenas que ali vivem, cursos d'água e biodiversidade.

Outras mudanças propostas nos dois projetos ruralistas são a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias, independentemente de porte, localização e potencial poluidor, o que também já foi declarado inconstitucional pelo STF (ADI n.º 1086-7); a criação do modelo de “licenciamento autodeclaratório” e a flexibilização das exigências ambientais ao repassar para estados e municípios a definição sobre o grau de rigor da licença ambiental.

Aldeia Sawré Muybu, do povo Munduruku, que seria alagada caso hidrelétrica no rio Tapajós fosse liberada

"Estamos diante da inconstitucionalidade das inconstitucionalidades. O projeto permite que empreendimentos com impacto ambiental sejam instalados até mesmo dentro de Terras Indígenas sem que a Funai e os povos indígenas impactados tenham sequer a oportunidade de se manifestar”, critica Maurício Guetta. “O que os empreendedores farão se o projeto for aprovado? Passarão por cima dos povos indígenas? Óbvio que não. Isso não interessa a ninguém e só trará insegurança jurídica e judicialização. É um escárnio", completa Guetta.

A Justiça já suspendeu alguns empreendimentos por entender que haveria afetação de terras indígenas. É o caso da Hidrelétrica Paiagua, no rio Sangue, e que atingiria a TI Manoki, no Mato Grosso. A licença foi suspensa por decisão judicial após o empreendimento ter sido liberado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado, contrariando parecer da própria Funai.

Outro ponto problemático dos dois projetos ruralistas é que os empreendedores seriam desobrigados a avaliar os impactos socioambientais indiretos decorrentes de obras e empreendimentos, como o aumento do desmatamento no entorno, mesmo em TIshomologadas. “As alterações propostas no PL de licenciamento ambiental se inserem em um contexto de falta de participação social e transparência em projetos de impacto socioambiental”, explica Antonio Oviedo, do Programa de Monitoramento do ISA.

Campeãs de espera

O PL do licenciamento é igualmente ameaçador para terras indígenas que estão na fila de demarcação há mais de 30 anos. O Decreto 1.775, de 1996, que institui as regras sobre demarcação das Terras Indígenas no Brasil, determina que a análise do Ministério da Justiça deve levar, no máximo, 30 dias.

Mas não é o que ocorre na prática. O levantamento do ISA identifica as terras indígenas que há mais tempo aguardam pela homologação. As campeãs, as TIs Aldeinha (MS), Capivara (AM) e Guapenu (AM), aguardam há 33 anos a finalização do processo de demarcação.

A nova lei do licenciamento, se aprovada, porém, pode colocar em xeque as esperanças dessas comunidades de enfim ter a garantia de suas terras. Isso porque, com o “fato consumado” dos empreendimentos legalizados, o processo de demarcaçãopode ser anulado.

A TI Capivara possui dois processos minerários (autorização de pesquisa), que cobrem a totalidade de seus já reduzidos 650,6 hectares. A TI Guapenu possui três processos minerários uma autorização de pesquisa e dois requerimentos de pesquisa), que incidem numa área de 2.377,2 hectares da TI, mais de 97% de sua extensão.

Pior presidente para os índios

Os projetos do " licenciamento flex" tramitam num contexto já extremamente adverso para os direitos indígenas. Michel Temer é o presidente que tem o pior desempenho nas demarcações desde a redemocratização do país. Ele assinou apenas um decreto de homologação de TIs. Além disso, em sua gestão, apenas duas áreas foram declaradas por ministros da Justiça.

Em 2017, o presidente oficializou o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União(AGU). O parecer restringe drasticamente o direito dos índios à terra ao obrigar a administração pública a aplicar o que foi decidido pelo STF no julgamento da TI Raposa-Serra do Sol (RR). A medida contraria decisão do próprio STF que deixa claro que os parâmetros do caso não devem ser aplicados obrigatoriamente a outros casos.

A redução no orçamento e a precarização da estrutura da Funai também são apontadas como fatores para a paralisação na demarcação das TIs. O orçamento total do órgão caiu de mais de R$ 740 milhões para menos de R$ 540 milhões, entre 2013 e 2017. O orçamento atual fica próximo ao de dez anos atrás. Em março de 2017, o presidente Michel Temer assinou um decreto que extinguiu 87 cargos comissionados, de 770 então existentes no órgão indigenista, quase 12% do total.

Fonte: IHU

Temas: Extractivismo, Pueblos indígenas, Tierra, territorio y bienes comunes

Comentarios