Brasil: Carta do Maranhão

Povos do Cerrado expõem seus pleitos e visão de mundo

À Sociedade Brasileira

Nós - agroextrativistas, mulheres quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, índios - etnia Kaiowa - Guarani, ribeirinhos, geraizeiros, assentados, organizações de base e entidades de apoio do Maranhão, Goiás, Piauí, Minas Gerais, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul - da Articulação do Agroextrativismo da Rede Cerrados de ONGs, reunidas nos dias 21 e 22/11/2002 em João Lisboa / MA, vimos publicamente manifestar o nosso repúdio a situação atual de degradação sócio-ambiental em que se encontra o Cerrado brasileiro e nossa disposição de lutar pela inclusão dos Povos do Cerrado, enquanto sujeitos políticos importantes em qualquer processo de desenvolvimento que se pretenda para e com o Cerrado.

O Cerrado tem sido um bioma esquecido no debate, nas ações e políticas ambientais bastando lembrar que sequer é considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal, ao contrário do Pantanal, da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica. Entretanto, o valor dado às regiões ocupadas pelos Cerrados está no centro da política econômica com o avanço destruidor do agronegócio (agrobusiness) globalizado com as monoculturas de exportação, dos transgênicos, da grande criação de gado, onde ainda se usa o famigerado Agente Laranja (Tordon) testado nos desmatamentos da Guerra do Vietnam e além de outras ações de infra-estrutura, igualmente destruidoras, que esse modelo requer - hidrovias, grandes barragens, irrigação de pivôs centrais entre outras.

Queremos afirmar que o Cerrado não pode estar subordinado à lógica e ao valor do business (negócio). Para nós, o valor do Cerrado é antes de tudo o valor da vida de todos os seres e elementos que o constituem, que nele habitam e que dele dependem: homens, mulheres, os bichos, as plantas, a terra, as águas, os minerais, valor esse cujo aprendizado do seu profundo significado traduzimos em nossas múltiplas e variadas culturas enquanto povos dos cerrados.

Falamos de um Cerrado cujas qualidades já foram dimensionadas e mesmo sendo considerado a caixa d'água brasileira, sendo portador de 1/3 de nossa enorme riqueza em biodiversidade e abrigando em sua história nada menos que 11.000 anos de ocupação humana - Luzia, a primeira mulher das terras hoje brasileiras morou aqui no Cerrado -, vem sendo relegado por essa lógica perversa de um agronegócio desempregador.

As conseqüências do impacto desse modelo sobre nossas regiões tem sido dramático na medida que, em amplas áreas, diversas populações teceram complexos sistemas de uso da terra com o manejo combinando das terras do fundo dos vales (as veredas, os brejos, os pantamo, os varjões)- nossas terras de cultura-, da meia encosta e a chapada - nossas terras de uso comum (nossos gerais), combinação essa que nos permitia o uso múltiplo dos recursos naturais com a agricultura, o extrativismo e o pastoreio do gado. Hoje, nossas populações se encontram literalmente encurraladas pela apropriação das chapadas pelos latifúndios produtivos do agronegócio que não só concentram poder e riqueza como, ao usar irresponsavelmente a irrigação, estão contribuindo para desperdiçar a água trazendo diretamente como conseqüência o secamento de rios, córregos e lagoas, inviabilizando as práticas agrícolas de agricultores nos fundos de vale.

Estamos, pois, diante do confronto de dois modelos de uso dos recursos naturais nos Cerrados: 1- o dos Povos dos Cerrados, que maneja os recursos naturais conservando a biodiversidade e a água, fundamentais não só para nós como para toda a humanidade e o planeta, que sabe que a sobrevivência de todos e de cada um depende da conservação da fertilidade natural da terra e; 2- o do Agronegócio, que beneficia poucos, sendo que a maioria sequer habita a região e que, exatamente por isso, não respeita os lugares, sua natureza e sua cultura e coloca em risco todo esse patrimônio natural e cultural.

As populações do Cerrado, agroextrativistas desenvolveram formas particulares de utilização dos ambientes, construindo redes complexas de conhecimentos adquiridos e acumulados ao longo dos tempos, que ainda continuam invisíveis para a sociedade brasileira, e muitas vezes encobertos pela marginalidade da pobreza. As experiências apresentadas pelas comunidades que estiveram neste encontro, de 22 entidades, demonstram a imensa contribuição que suas culturas e práticas prestam à Humanidade, desmentindo a idéia, infelizmente amplamente difundida, de que só há um modelo possível para os cerrados.

Enquanto protagonistas de todo este legado, os Povos do Cerrado, nos sentimos responsáveis e com autoridade para dizer não à grilagem de terras, à etnobiopirataria, à contaminação de nossa gente e da água de todos, ao processo de modernização homogeneizante, à erosão dos solos e ao assoreamento dos rios e reivindicamos um amplo processo de diálogo entre sociedade e Estado onde, desde já, assumimos nosso compromisso de contribuir para garantir, ao conjunto da sociedade brasileira, a segurança alimentar, a conservação da biodiversidade, para a fertilidade dos solos e, como verdadeiros guardiões da água, contribuindo assim para a sustentabilidade social, cultural e ambiental.

Vivemos um momento de esperança de mudanças com a eleição de um novo governo mais sintonizado com as aspirações populares. Mas sabemos que os lobbies (hoje em nível global) pelos privilégios que mantém esse modelo destruidor e excludente não só não cessarão, como deverão se tornar mais intensos nesse período. Desta maneira, se faz premente a sinalização de propostas que não apenas reforçam o diálogo, mas apontem caminhos para a inclusão do Cerrado, com seus Povos, no contexto sócio-ambiental, político brasileiro. Para isso, as populações do Cerrado e demais organizações participantes deste Encontro reivindicamos:

1- o reconhecimento do Cerrado na Constituição Brasileira, como Patrimônio Nacional;

2- a Criação de uma Secretaria do Cerrado no Ministério do Meio Ambiente;

3- a democratização da Terra, através da criação de Reservas Agroextrativistas no Cerrado (não existem);

4- Incluir nos eixos estratégicos de combate a fome e desnutrição no Brasil (Programa Fome Zero), assim como no combate à sede (Programa Sede Zero), todo o enorme potencial de produção ecossistêmica manejados por nossas inúmeras experiências agroextrativistas enquanto povos dos cerrados e de suas inúmeras zonas de contato com a Caatinga, com o Pantanal, com os Cocais, com a Floresta Amazônica e;

5- a viabilização de Fundos e Financiamentos para projetos sustentáveis no Cerrado.

Faremos nossa parte na luta pela mudança que, por toda a História que construímos com esse Bioma, deve ser uma mudança de modelo apoiada no conhecimento e na cultura que tecemos. Para isso, estamos construindo essa articulação que valoriza os povos do Cerrado, que fortalece os povos indígenas, populações remanescentes de quilombos e agricultores agroextrativistas - enfim, aqueles e aquelas que realmente vivem e fazem parte dos ecossistemas que compõem nosso grande bioma.

Estaremos alertas e pressionaremos os novos governos para que não estacionem em discursos bonitos descolados da prática e das políticas concretas, para que não cedam aos interesses privados que só fazem concentrar a riqueza, eliminar postos de trabalho e destruir as condições de reprodução dos ecossistemas.

Esperamos que os novos governos façam sua parte, que coloquem a economia a serviço da vida e não a vida a serviço dos negócios.

Os participantes da Articulação do Agroextrativismo da Rede Cerrado assumem em João Lisboa com seu trabalho, o compromisso de fortalecer, multiplicar, dar visibilidade às experiências em curso e, através disso, lutar com aqueles que se sentem parte do Cerrado, que entendem que sua sobrevivência e a do Cerrado são uma só - é a permanência da vida que está em jogo. Declaramos, publicamente, que assumimos nossas responsabilidades perante a sociedade brasileira e mundial diante da enorme significação que esse bioma tem para toda a humanidade e o planeta. Nossos conhecimentos e todo o nosso acervo cultural foi fundamental para que toda essa riqueza chegasse até nós, e é daí que vem a autoridade com que vimos a público, saindo dos grotões que até aqui estávamos confinados, posto que todas essa riqueza está sendo ameaçada na medida que nossa cultura também o é.

NO CERRADO TEM GENTE.

O CERRADO TEM CULTURAS PRÓPRIAS.

NÃO HÁ DEFESA DO CERRADO SEM OS POVOS DO CERRADO!

Assinam:

Manoel da Conceição Santos - CENTRU-MA/Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

Braulino C. dos Santos - CAA -MG / Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas

Maria Querubina da Silva Neto- CENTRU-MA /Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

Permino Luiz Ferreira - Rede de Comercialização Solidária/ GO

Otoniel Ricardo - Aldeia Indígena TE'YKUE - MS

Joaquim A. de Sousa - CENTRU-MA / Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

Luis G. Santos - Cooperativa de Pequenos Produtores Agroextrativistas de Imperatriz-MA

Olegário de S. Carvalho - AAPC - MA/ Assoc. dos Pequenos Produtores de Carolina

Carlos Eduardo Mazzetto Silva - Pesquisador- Doutorando da UFF.

Heloísa H. V. Aquino - CENTRU-MA/Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

Eduardo C. Barbosa Ayres - CAV-MG/ Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica

Alessandra K. Silva - CEDAC-GO/Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado

Carlos A Dayrell - CAA-MG/ Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas

João Batista Alves de Sousa - Trabalhador Rural / MA

Cleidson P. Marinho - CENTRU-MA / Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

João D'Angelis Filho - CAA-MG/ Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas

Carlos Walter Porto Gonçalves - Consultor Geral da Articulação do Agroextrativismo

Maria Denise B. Leal -CENTRU-MA / Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural

Deuzelina dos S. Tavares - Assoc. de Pequenos Agricultores da Comunidade Soninho/MA

Luzanira Ferreira Lima - ABIPA e ASMUBIP - TO / Assoc. de Apicultores do Bico do Papagaio e Assoc. de Mulheres do Bico do Papagaio

Selma Yuki Ishii - APATO -TO/ Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins

Wilton Lopes de Sousa - CEFAS - PI / Centro educacional São Francisco de Assis

Raimundo Francisco de Araújo - STR - MA/ Sindicato de Trabalhadores Rurais de Esperantinópolis

Emerson Shirota - CTA-MT/ Centro de Tecnologia Alternativa

José Félix Soares Leite - ATRVC - TO / Assoc. dos Trabalhadores Rurais do Vale do Corda

Elias Reis de Sousa - COOPAJOL - MA/ Cooperativa de Pequenos Agricultores de João Lisboa

Joaquim da Silva Campos - Assoc. de Pequenos Agricultores da Comunidade Soninho / MA

José Carlos da Costa Rodrigues - CTI -MA/ Centro de Trabalho Indigenista

Givanildo Raimundo de Paula - STR - TO/ Sindicato de Trabalhadores Rurais de Axixá

Milton Gomes de Sousa - COOPRAMA - MA/ Cooperativa de Pequenos Agroextrativistas

Wilson Moreira da Costa - COOPRAMA - MA/ Cooperativa de Pequenos Agroextrativistas

Rosane Juraci Bastos Gomes - ECOA - MS / Ecologia e Ação

Marcelo do Egito - CEDAC - GO / Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado

Más información:

Carlos Walter

Email: rb.moc.tentin@gpwc

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