Bela viola, por Carmelo Ruiz Marrero
Interessadas em neutralizar a produção orgânica, corporações trabalham para conciliá-la com grandes propriedades, uso predatório da água e ataque à agricultura familiar
Todo domingo de manhã, no agitado mercado de produtores de orgânicos, na rural Point Reyes Station, na Califórnia, os moradores compram alimentos diretamente dos agricultores que os cultivaram. É possível atravessar o mercado de ponta a ponta em apenas um minuto e a diversidade de ofertas é impressionante. Primeiro, há os vegetais: alhos-poró pontiagudos, folhas verdes maduras e morangas coradas. Logo em seguida há os alimentos processados. Tudo: desde sorvete a azeite e sopas. Um músico toca para o público e as conversas são vivas.
Aqui a Cowgirl Creamery Dairy vende queijo Mount Tamalpais. Mais além, Kevin Lunny, da Inverness, vende bife de gado alimentado com pastagens, enquanto Warren Weber da Star Route Farms of Bolinas, vende flores viçosas e Margie McDonald, da Wild Blue Farm, vende abóboras.
Os compradores podem te dizer que preferem os alimentos orgânicos por dois motivos: porque são saudáveis e por razões ambientais. E a ausência de pesticidas é tão importante quanto a garantia de que aquele alimento não conterá organismos geneticamente modificados (OGMs), cujos efeitos para a saúde ainda são amplamente desconhecidos.
Uma quitanda de 5,5 mil metros quadrados Enquanto isso, na outra ponta do continente norte-americano, Whole Foods, uma cadeia de alimentos sediada no Texas, abriu recentemente a maior quitanda de Nova York no Time Warner Center, ocupando 5,5 mil metros quadrados com a “A Maior Experiência de Compras em Alimentos e Estilo de Vida”.
A empresa promete tornar “um afazer mundano sem sentido em um dos passatempos favoritos de Nova York”. Aos consumidores são oferecidos os sucos de frutas Jamba Juice, o sushi Genji Express embalado em alga marinha orgânica, mais de 700 variedades de vinho e uma estação de chocolate Enrobing, “onde os consumidores podem pedir quase tudo coberto em chocolate”.
Até uma década atrás, os alimentos orgânicos só podiam ser comprados em mercados de pequenos produtores ou lojas de produtos e alimentos naturais. Mas hoje, sua crescente popularidade significa que mais alimentos orgânicos são vendidos por grandes redes norte-americanas, como a Whole Foods. Freqüentemente, a própria comida é produzida por empresas que vão da General Mills à Nestlé e à Coca-Cola, e cresce em fazendas de propriedade de corporações, deixando de serem sinônimo de pequenas propriedades, comunidades rurais, justiça social e tratamento humano dos animais.
“Sou totalmente a favor disso desde que seja de forma verdadeira”, diz Jeremy Rosen, da Fresh Run Farm, do mercado de Point Reyes, de cujo pequeno balcão anuncia vegetais que vão de alcachofras a rúculas e nabos. “[Mas as grandes corporações] não serão capazes de dedicar todo o cuidado à terra que os produtores de orgânicos dedicam”
Conservar o solo nos latifúndios? A fazenda de Rosen, que fica a poucos quilômetros de Point Reyes, está em uma das primeiras zonas de produção de orgânicos da Baía de São Francisco. Ele duvida que as grandes fazendas das corporações serão realmente sustentáveis porque “conservar o solo em uma grande fazenda não é possível”.
Atualmente, para conseguir satisfazer a crescente demanda por alimentos orgânicos, a produção está crescendo bem além de sua base original. As vendas de alimentos e bebidas orgânicas nos EUA ultrapassaram a marca de US$ 11 bilhões em 2002 e, de acordo com uma pesquisa de 2003 patrocidada pela cadeia de vendas Whole Food, 54% dos consumidores estadunidenses já experimentaram alimentos orgânicos e um terço consumiu mais destes do que no ano anterior.
Grandes lojas dos EUA como a Wal-Mart, Price Chopper e a 7-Eleven já atuam no mercado de orgânicos, oferecendo esses produtos em suas prateleiras. As corporações alimentícias, como as gigantes Archer Daniels Midland e a Sopas Campbell, já adicionam itens orgânicos em suas linhas de produção. O mercado de orgânicos nos EUA espera alcançar US$ 30,7 bilhões em 2007, com uma média de crescimento annual de 21,4%, de acordo com a empresa de pesquisa de mercado Datamonitor.
“Há pessoas que criticam a entrada dessas megacorporações nos orgânicos”... Eles temem que elas comprometam os padrões dos orgânicos e as idéias sobre as quais a agricultura orgânica é baseada”, diz Helge Hellberg, diretor da Marin Organic, uma ONG que promove a agricultura sustentável. “Mas também é verdade que nós precisamos dessas empresas para criarmos um movimento nacional pelos produtos orgânicos”, adiciona ele.
O filão que o agronegócio quer abocanhar O crescimento da demanda dos consumidores significa um período de boom para os produtores de orgânicos dos EUA. O estado de Vermont, por exemplo, tinha 78 produtores certificados de orgânicos em 1993. Em 2003, esse número cresceu para 289. A área de platação certificada no estado cresceu de 9,5 mil hectares em 2001 para 12 mil hectares em 2003. Na Califórnia, os Produtores de Orgânicos Certificados confirmam que o estado tem 69 mil hectares de plantações orgânicas. Com a taxa atual de crescimento, as vendas de orgânicos devem constituir 10% da agricultura dos EUA em 2010.
Essas taxas exponenciais de crescimento convenceram o ministério da Agricultura dos EUA a estabelecer padrões para os orgânicos em outubro de 2002, depois de doze anos de adiamentos. Enquanto alguns advogados dos orgânicos consideram o reconhecimento do Ministério um triunfo, de acordo com Ronnie Cummins, da Associação de Consumidores de Orgânicos (baseada em Minnesota), o ministério estabelece os padrões de acordo com os pedidos da corporações do agronegócio e dos grandes revendedores. Ele acredita que eles querem uniformizar os padrões nacionais para acelerar sua entrada no mercado de orgânicos, substituindo as múltiplas normas estaduais que tornam tudo mais complicado para as redes, que mantêm os cultivos em uma parte do país e vendem para o outro lado da nação.
“O maior problema com as regulações do ministério é que elas não dizem nada sobre a água subsidiada, o tratamento dos animais, padrões trabalhistas e a distância da produção (defensores dos orgânicos querem reduzir a distância que os alimentos viajam da fazenda ao consumidor para assim reduzirem o uso de combustíveis fósseis e promoverem o desenvolvimento sustentável local). Os padrões para os orgânicos também são enviesados em favor das grandes corporações por serem neutros com relação ao tamanho dos produtores, ou seja, elas se aplicam igualmente ao gigante do agronegócio e à pequena agricultura familiar. O grande negócio pode cobrir facilmente o custo dessa regulamentação”, diz Cummins.
Uma oportunidade para a cooptação De fato, de acordo com um relatório recente da Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica (IFOAM, pela sigla em inglês), o Ministério da Agricultura dos EUA está agora estudando o apoio a uma norma internacional para os orgânicos visando a facilitação do comércio internacional desses produtos.
O ministério em si não certifica produtos ou produtores. Ao invés disso, ele credencia instituições, sejam elas agências públicas ou empresas privadas, a fazer essa certificação. Nem aos plantadores nem aos vendedores é permitido rotular como “orgânico” qualquer produto que não tenha sido certificado dessa forma por uma instituição credenciada pelo ministério. E a agência é a autoridade final para apelações sobre o que significam as normas para os orgânicos.
Olivia Sargeant, uma consultora nutricional de São Francisco, que trabalha na Marin Sun Farm, também no mercado de Point Reyes, acha que as grandes corporações e a regulamentação governamental “tem prós e contras”. A maior penetração “trará alguma educação às pessoas, mas também está cooptando o termo 'orgânico'”.
Sargeant também está preocupada por os grandes vendedores de alimentos, como a Whole Foods, colocarem as lojas familiares para for a do negócio, assim como já fizeram as grandes cadeias como a Wal-Mart e a Safeway. “Minha loja de alimentos saudáveis faliu por causa da Whole Foods. Grandes cadeias de revendedores, não importa quão 'ecológicas' elas pareçam, são ruins para os negócios locais”.
Mas mesmo gigantes dos produtos naturais, como a Whole Foods, poderiam perder para as lojas convencionais. As estatísticas do ministério da Agricultura estimam que a participação de mercado das lojas de orgânicos são: supermercados convencionais tem 49%, lojas de produtos naturais tem 48% e as feiras dos fazendeiros e cooperativas de compras de alimentos são apenas 3%. E um estudo, de junho de 2003, da MarketResearch.com, que usa um critério estrito sobre o que constitui uma comida saudável e uma loja de produtos naturais, estimou que a porcentagem de produtos orgânicos vendidos por esses agentes caiu de 62% em 1998 para apenas 31% no ano passado.
Poder dos pequenos: realidade ou ilusão? Apesar de a maioria dos consumidores estarem comprando sua comida orgânica das grandes revendas, a pesquisa da Whole Foods feita em 2003 traz outra informação interessante: 57% dos consumidores de orgânicos acreditam que esses produtos são cultivados por pequenos produtores.
Enquanto Cummins acredita que isso, ná prática, ainda é em boa parte verdade, ele diz que isso irá mudar ao longo do tempo. “Eu vejo implicações perigosas, especialmente para os orgânicos derivados de leite. Nesse setor, há um grande movimento de abandono da estrutura familiar em direção às fazendas industriais. A Horizon controla 70% do mercado de orgânicos derivado de leites, e no ano passado ela foi comprada pela Dean Foods”, disse ele ao CorpWatch.
“De maneira alguma você pode ser um produtor orgânico se você tem mais de uma centena de cabeças de gado. Depois de um certo tamanho, uma operação dessas não pode mais soar como ecológica, entre outros motivos devido ao esterco produzido”, adiciona Cummins.
“Na Califórnia há grande fazendas que produzem alface e cenoura orgânicos em grandes monoculturas, usando grandes fontes de energia e tendo sua água subsidiada – três elementos que são anti-ambientais e inaceitáveis para aqueles que querem uma agricultura que soe ecológica”, completa.
Nas mãos de 10%, metade da produção agrícola Em um estudo de 2002, conduzido pela Univerdadede da California de Davis, Karen Klonsky afirma que a produção de alimentos orgânicos nesse estado já é concentrada. Dois porcento das operações das fazendas orgânicas (27 produtores) geram mais de US$ 1 milhão por ano e representam a metade das vendas de orgânicos do Estado.
De fato, enquanto mais de 90% de todos os fazendeiros dos EUA são classificados pelo ministério da Agricultura como pequenos. Os outros 10% -- o grande agronegócio – provê aproximadamente 60% de toda a venda de alimentos.
Duas corporações de alcance nacional, a United Natural Foods e a Tree of Life, controlam a distribuição de quase três quartos de todos os produtos naturais. A Tree of Life é de propriedade da Koninklijke Wessanen, um conglomerado holandês que é uma das maiores empresas de alimentos da Europa.
Nem todo o setor de negócios orgânicos vê essa tendência como negativa. Barbara Haumann, porta-voz da Associação de Comércio de Orgânicos dos EUA (OTA, pela sigla em inglês) considera que, “quanto mais atores, mais produtos estarão disponíveis aos consumidores. Estes, por sua vez, vão comprar mais produtos. Isso vai resultar em mais terra sendo cultivada com orgânicos, não importando o tamanho das operações. E isso será melhor para o meio-ambiente, para as comunidades e para o planeta.”
Outro apoiador da entrada das corporações no mercado é o pioneiro do mercado de iogurte orgânico Gary Hirshber, executivo-chefe da Stonyfield Farms. Ele conduziu a venda do primeiro fabricante de iogurte orgânico dos EUA para a multinacional francesa Danone, enquanto manteve a si mesmo executivo-chefe da empresa adquirida. A família de Hirshberg lucrou US$ 35 milhões de uma venda total de US$ 125 milhões. Ele diz acreditar que o resultado final do negócio é uma situação de dupla vitória, para os produtores e consumidores de orgânicos.
A “liberdade” que a Danone oferece Perguntada se a compra afetou as práticas da Stonyfield, a porta-voz Mary Townsend diz: “A Danone na verdade nos deixa operar da maneira como sempre fizemos, com contratos com agricultores familiares e de acordo com os estritos padrões orgânicos. Mais, a Danone está nos pedindo para ajudá-los a tornar todas as suas operações mundiais orgânicas.”
Laurent Sacchi, vice-presidente de comunicações corporativas do Grupo Danone, diz ao CorpWatch: “A Danone tem encorajado (e continuará a fazer isso) a Stonyfield a continuar as práticas que a tornaram reconhecida. Por exemplo, os 10% dos lucros destinados ao Programa Planeta, o apoio à agricultura familiar, o apoio aos orgânicos. A Danone está usando Stonyfield como um modelo de como as alternativas de negócio e agricultura pode ser desenvolvidas com sucesso, mesmo funcioanado dentro do escopo de uma empressa tradicional”.
Executivos que acompanham o negócio notam que, já que custa entre US$ 70 e 80 milhões para lançar uma marca nos EUA, adquirir um estabelecimento como a Stonyfield é algo de muito menos risco do que abrir uma nova empresa que competirá com ela.
Mas Paul Cienfuegos, do Comitê Arcata sobre Democracia e Corporações – baseado na Califórnia – e um crítico há tempos dos “orgânicos corporativos”, acusa grandes empresas como a Stonu]yfield de usar suas subsidiárias orgânicas para se infiltrarem na agricultura sustentável e jogarem os padrões orgânicos por água abaixo.
Ele cita uma recente convenção de orgânicos no Texas, onde um painel patrocinado pela OTA discutiu como a agricultura orgânica e transgênica pode co-existir. Cienfogos afirma que a maioria dos defensores dos orgânicos acreditam que a discussão em torno dos trangênicos deveria se focar em como é possível baní-los, e não em como eles podem co-existir com os orgênicos. “O fato de que a corporação General Mills [dona da marca orgânica Cascadian] é a maior doadora (da OTA) pode ter algo a ver com isso”, diz ele.
E críticos como Rich Ganis, que escreve para o boletim eletrônico informedeatin.org, discordam que os modestos benefícios ecologicos de mais terras orgânicas sob o controle da agricultura corporativa estão sendo “varridos pela gigantesca quantidade de combustível fóssil, embalagens e outros recursos que se expandem na produção e distribuição desses produtos de valor 'agregado'”.
Taduzido por Rafael Evangelista.
Publicado em Planeta Porto Alegre