Agroecologia ou colapso
No esforço por repensar o mundo, é preciso olhar ao campo. Ali há um sistema de produção cooperativo e sustentável. Subestimado inclusive pelo marxismo ortodoxo, está sendo redescoberto. Será uma das bases para o pós-capitalismo.
No dia 8 de abril, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) publicou uma proposta para retomada do Programa Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). O documento foi assinado por 774 organizações, redes e movimentos sociais do campo e das cidades e propõe a alocação imediata de 1 bilhão de reais para compra e distribuição de alimentos para as populações em situação de fome e de insegurança alimentar e nutricional, montante que deve chegar a 3 bilhões até o fim de 2021. Como procuraremos demonstrar, esta proposta é coerente com a perspectiva agroecológica para transformação dos sistemas alimentares, cuja configuração hegemônica atual é responsável pelo encadeamento de crises que tem nos levado a um verdadeiro impasse civilizatório. Apresentamos aqui o sentido político desta proposição nesse momento histórico de extrema gravidade marcado pelo súbito aprofundamento de crises pré-existentes deflagrado pela disseminação do coronavírus.
A necessidade de um enfoque sistêmico
Crises que se agravam enquanto realimentam-se reciprocamente, como as que se tornaram evidentes nesse momento, conformam um quadro político de excepcional complexidade. Superar os enfoques setoriais que prevalecem no mundo da gestão pública é condição indispensável para que as medidas emergenciais implementadas contribuam para desarticular os círculos viciosos regressivos que fazem com que causas e efeitos da pandemia se confundam. Nesse sentido, urge desfazer a falsa dicotomia entre saúde e economia que polariza o debate público e as iniciativas governamentais no Brasil, enquanto o número de mortos se multiplica e a economia vai à bancarrota. Em um e em outro caso, são as camadas mais empobrecidas e vulneráveis da população as mais penalizadas.
Entender a saúde como direito a ser ativamente promovido pelo Estado e a economia como a administração das riquezas sociais para a promoção do bem comum é condição primeira para que o antagonismo intersetorial característico das gestões neoliberais dê lugar a estratégias de intervenção pública capazes de impulsionar círculos virtuosos entre economias justas e democráticas e a saúde coletiva.
É nessa perspectiva que a proposta apresentada pela ANA deve ser entendida. Mais do que nunca, o fomento público à demanda por alimentos saudáveis mostra-se como uma estratégia ganha-ganha indispensável ao equacionamento combinado de desafios sociais e econômicos de longa data, mas agora agudizados pelo surto da Covid-19. Indo mais além, trata-se de uma estratégia triplamente ganhadora, na medida em que também traz consigo o potencial de produzir benefícios ambientais de suma relevância quando levamos em conta o fato de que os sistemas alimentares organizados segundo lógica técnico-econômica do agronegócio respondem pela emissão de quase 40% dos gases de efeito estufa, sendo ainda responsáveis por acelerados ritmos de desmatamento e perda da biodiversidade, de degradação da terra e dos corpos hídricos. Além desses efeitos desestabilizadores da dinâmica ecológica planetária, numerosos especialistas vêm apontando a relação direta entre surgimento de pandemias e os mega confinamentos nos criatórios industriais do agronegócio.
Ao fim e ao cabo, a crise do coronavírus escancara os limites do capitalismo neoliberal como modelo de gestão política e econômica das sociedades contemporâneas. No mesmo bojo, escancara os limites do regime agroalimentar corporativo (ou neoliberal), abrindo novos horizontes políticos para que a agroecologia seja socialmente assumida e defendida como um enfoque para a transformação dos padrões dominantes de produção, beneficiamento, distribuição e consumo de alimentos.
A retomada imediata do PAA segundo a proposição defendida pela sociedade civil insere-se nesse contexto como uma medida emergencial de caráter estruturante. Uma medida politicamente exequível, desde que fortemente apoiada pela cidadania ativa e suas organizações em um momento em que o receituário neoliberal está colocado em xeque.
Fim de linha da ordem neoliberal?
Muitos têm afirmado que não voltaremos ao mundo que tínhamos até 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o estado de pandemia. Um sinal vermelho foi aceso e repentinamente verificou-se em todo o mundo uma abrupta redução nos frenéticos fluxos de pessoas e mercadorias em função do isolamento social adotado como medida para restringir a disseminação da Covid-19. Da noite para o dia, dogmas neoliberais caíram por terra, levando expoentes do pensamento conservador a clamar pelo intervencionismo estatal. Uma unanimidade se formou em todo o espectro ideológico: sem a ação incisiva dos governos, seria impossível enfrentar a pandemia e suas consequências econômicas e sociais.
O editorial de 03 de abril do insuspeito Financial Times, destacado veículo do pensamento liberal, dizia que “a pandemia de coronavírus expôs a fragilidade da economia em muitos países”, que “são necessárias reformas radicais para forjar uma sociedade que funcione para todos” e que “os governos devem aceitar um papel mais ativo na economia, assumindo os serviços públicos como um investimento”. Um card viralizou nas redes sociais sintetizando o fenômeno com fulminante ironia: “Acreditávamos que o medo de morrer convertia ateus em crentes. Na realidade, converte neoliberais em keynesianos”.
Em que pese a súbita “virada estatista”, nada indica que as políticas keynesianas redivivas vieram para ficar. Pelo contrário, no atual contexto, a intervenção emergencial dos governos mais parece representar para eles um remédio amargo indispensável nos momentos de crise aguda do que uma mudança de hábitos de vida necessária à prevenção de novas crises. Seja como for, a tragédia põe a nu as falácias impostas como verdades inquestionáveis durante os 40 anos de hegemonia neoliberal. Margareth Thatcher, primeira-ministra britânica nos anos 1980, decretou que “não havia alternativas” à nova ordem que então se impunha. No mesmo embalo, Francis Fukuyama, filósofo conservador e ideólogo do governo Reagan, anunciou o “fim da História” com a chegada de um suposto modelo ideal de sociedade.
A atual crise, já considerada a mais grave do último século, relembra que a História não avança por linhas retas pré-estabelecidas, mas por bifurcações, deixando claro que autoritarismo político e arrogância intelectual são péssimas companhias quando nos deparamos com uma dessas disjuntivas históricas. Possivelmente, estamos diante de uma das mais decisivas crises dentre as que já vivenciamos em nossa aventura planetária como espécie. Uma crise que não surgiu com a atual pandemia, mas da progressiva exaustão de um sistema de poder incapaz de reproduzir o seu próprio princípio básico de funcionamento, ou seja, a acumulação desmedida de capital. Argutos críticos do capitalismo, entre os quais Immanuel Wallerstein, recentemente falecido, e David Harvey, há tempos apontam o fato de que as contradições desse sistema chegaram aos seus limites terminais em sua fase neoliberal.
A pandemia iluminou essas contradições, tornando-as mais visíveis. É como se o coronavírus emitisse um grito ao pé dos ouvidos moucos de oportunistas e negacionistas que há décadas impedem a construção política de um novo contrato social capaz de tornar a convivência entre e dentro das nações mais harmônica. Superar o sistema de poder que perpetua e aprofunda as abissais disparidades sociais é condição para que tal harmonia seja construída e mantida. Mas a mensagem da atual crise vai além. Provocada por um ser da natureza diante de processos de degradação ambiental sem precedentes responsáveis pela criação de uma nova era geológica, o antropoceno, a crise deixa claro que o novo pacto de convivência social só terá vigência se for igualmente assumido como um “contrato natural” entre a comunidade humana planetária e os demais seres da Biosfera. Estamos, pois, diante de mais um chamado da Natureza, talvez o último, como alertou o agroecólogo Victor Toledo, atual Secretário de Meio Ambiente e Recursos Naturais do México.
A necessidade de urgências estruturantes
Dada a excepcional gravidade do momento histórico, mesmo destacados ideólogos da direita chamam a atenção para a necessidade da implantação de medidas emergenciais que simultaneamente apontem para transformações estruturais em um sistema à beira do colapso. É o caso de Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, segundo o qual vivemos um “período épico” no qual “o desafio histórico para os líderes é o de gerenciar a crise enquanto construímos o futuro”. Em um tênue equilíbrio entre o emergencial e o estrutural, as medidas tomadas de imediato influenciarão as condições objetivas do futuro pós-pandemia, um futuro em disputa, como alertam numerosos analistas.
Pela extrema direita, campo ideológico que ascendeu recentemente ao poder institucional no Brasil e em vários países no vácuo de legitimidade criado pela crise da hegemonia neoliberal, apresenta-se o caminho que nos levaria ao aprofundamento do autoritarismo demagógico, do capitalismo voraz de corte nacionalista e do salve-se quem puder na arena competitiva dos mercados. Um segundo caminho, também à direita, aponta para a continuidade da democracia liberal, justamente o estilo de gestão política que esgotou seu repertório de respostas frente à acentuação da crise do neoliberalismo. Com auxílio da mídia corporativa, são esses os caminhos que vêm hegemonizando os discursos no plano institucional e junto à opinião pública. Na contra-hegemonia, estão as forças progressistas. Em grandes traços, elas também poderiam ser identificadas em dois grandes blocos. De um lado, está a aposta na possibilidade de conciliação entre a gestão neoliberal com políticas redistributivas, sem que para isso realize reformas estruturais necessárias para uma substancial alteração nas relações entre o capital e o trabalho. Uma conciliação tensa, por alguns denominada de neo-desenvolvimentista, que se sustentou politicamente em vários países latino-americanos no período de excepcional desempenho da economia puxado pela exportação de commodities agrícolas e minerais. Do outro lado, apresentam-se forças que questionam a democracia liberal, lutando pelo aprofundamento de uma democracia econômica assegurada por um Estado garantidor de direitos e assentada em valores da solidariedade e da cooperação em defesa dos bens comuns e da sustentabilidade ecológica.
O avanço de valores e práticas de uma esquerda democrática comprometida com o cuidado ambiental dependerá fundamentalmente da capacidade de articulação de lutas populares neste momento em que atravessamos o túnel escuro da pandemia sem saber o que encontraremos na saída. São exatamente as lutas imediatas travadas nos territórios com o sentido de amenizar o sofrimento humano causado pela crise do coronavírus as que poderão iluminar caminhos para a superação da razão neoliberal, abrindo espaço para o desenvolvimento de instituições radicalmente democráticas fundadas em práticas de solidariedade social e de cuidado com os bens comuns da natureza.
Solidariedade como fundamento econômico
Falar em aprofundamento da democracia e da generalização de práticas de economia solidária nos tempos distópicos que correm pode parecer uma fuga numa utopia irrealizável. No entanto, exatamente no momento em que uma pandemia atinge uma nação desgovernada por uma extrema direita obscurantista, parcela importante da população se auto-organiza em redes locais descentralizadas, acionando sua criatividade e seu espírito de cooperação para proliferar práticas extraordinárias de solidariedade em todo o território nacional. Enquanto o governo federal alimenta a paralisante polarização entre a gestão da economia e a da saúde pública, retardando em semanas a efetivação de medidas de proteção social aprovadas no Congresso Nacional, as redes de solidariedade da sociedade civil deixam claro que o cuidado com a vida e com o bem estar individual e coletivo deve ser o objetivo central da economia.
Em carta enviada aos movimentos sociais no domingo de Páscoa (12/04/2020), o Papa Francisco exaltou justamente o papel dessas redes invisíveis que se multiplicam no Brasil e no mundo. “Se a luta contra a Covid é uma guerra”, disse Francisco, “vocês são um verdadeiro exército invisível que luta nas mais perigosas trincheiras. Um exército cujas armas são a solidariedade, a esperança e o sentido de comunidade que rebrota nesses dias em que ninguém se salva só. Vocês são para mim verdadeiros poetas sociais, que das periferias esquecidas criam soluções dignas para os problemas mais prementes dos excluídos”.
Engana-se, porém, quem entende a solidariedade como um valor acionado somente nos momentos de crise. Não fossem as práticas cooperativas próprias da economia solidária disseminadas no cotidiano de nossas sociedades, o “moinho satânico” dos mercados capitalistas (na certeira imagem criada por Karl Polanyi) já haveria conduzido a humanidade à completa barbárie. Não nos referimos aqui às expressões efêmeras de solidariedade corporativa. Por importantes que sejam, essas ações de caridade pontual tendem a passar junto com a crise, não sem antes receberem sua contrapartida em termos de marketing empresarial. Enquanto isso, as formas permanentes e difusas de solidariedade social seguirão ativas, embora invisibilizadas pelas mídias corporativas, reprodutoras da retórica própria da ortodoxia neoliberal.
Romper essa hegemonia é um desafio de primeira ordem para que práticas de economia solidária na defesa dos comuns sejam socialmente reconhecidas e, se necessário, desenvolvidas com o apoio decisivo das políticas públicas. Mulheres organizadas em movimentos feministas denunciam uma das expressões mais eloquentes dessa combinação paradoxal entre a onipresença e a invisibilidade das práticas de solidariedade responsáveis pela manutenção das sociedades modernas. Ao jogar luzes sobre o papel determinante dos trabalhos de cuidados e domésticos nos circuitos de reprodução do capital, a crítica da economia feminista ao capitalismo revela o indispensável lugar dessas atividades não remuneradas exercidas predominantemente pelas mulheres.
De forma análoga aos movimentos feministas anti-sistêmicos, a maior categoria profissional do mundo contemporâneo, a agricultura familiar camponesa, também associa suas lutas por emancipação sociopolítica à luta contra a invisibilidade das práticas de trabalho solidário intrínsecas ao seu modus operandi econômico. Previsões relacionadas a um inevitável desaparecimento do campesinato diante do avanço do capitalismo nos campos são reiteradas desde o século 19 por teóricos liberais e marxistas. Em grande medida, essa quase unanimidade explica porque até hoje os modos de produção e reprodução da agricultura familiar camponesa sejam tão mal compreendidos e desvalorizados, embora, como aqui defendemos, sejam pilares indispensáveis para a sustentação das economias dinâmicas, democráticas e sustentáveis de que necessitaremos no futuro.
Felizmente, passado mais de um século de aberta hostilidade política e econômica de governos situados em todas as posições do espectro ideológico, a agricultura camponesa permanece entre nós, contrariando as teorias econômicas dominantes, obcecadas pelo viés produtivista das economias de escala e pela ideia de crescimento. E não cabe dúvida que o mundo estaria muito pior se ela houvesse de fato desaparecido. Como bem identificou Teodor Shanin, notório pensador campesinista recém falecido, “dia após dia, os camponeses fazem os economistas suspirarem, os políticos suarem e os estrategistas praguejarem, malogrando seus planos e profecias em todos os lugares do mundo”.
Em âmbito mundial, estamos falando de 2 bilhões de seres humanos envolvidos cotidianamente na produção de comida, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO. No Brasil, segundo o último censo agropecuário (dados de 2017 só divulgados em 2019), cerca de 10 milhões de agricultores e agricultoras familiares representam 67% da ocupação no setor agropecuário e respondem pela parcela majoritária dos alimentos que chegam às nossas mesas, em que pese o fato de disporem tão somente de 23% das terras agrícolas.
Qualidades econômicas a serem politicamente promovidas
A imensa capacidade da agricultura familiar camponesa de perseverar em um mundo crescentemente hostil à sua existência revela uma das qualidades centrais a serem fortalecidas nos sistemas econômicos do futuro: a resiliência. Resiliência que é mais uma vez colocada à prova durante a pandemia, quando agricultores e agricultoras familiares seguem trabalhando em silêncio, prestando um serviço vital para a sociedade, enquanto a economia é virtualmente paralisada pela necessidade do distanciamento social. De onde vem essa virtude da economia camponesa? Como reproduzi-la no conjunto do sistema econômico?
Questões como essa têm motivado nos últimos anos uma prolífica produção intelectual nas ciências sociais, sobretudo entre economistas. O eixo comum que unifica esse amplo e crescente campo de economistas rebeldes é a necessidade de superação do “pensamento único”, imposto a partir do auto-intitulado “consenso de Washington”, para dar verniz científico à narrativa legitimadora da hegemonia neoliberal. É evidente que as ideias contra-hegemônicas não ganham terreno na sociedade somente por suas virtudes, mesmo quando carregam promissoras respostas a crises profundas como a que atravessamos. Considerando que o funcionamento da economia é regulado pelos pactos estabelecidos na sociedade e não por mecanismos teóricos relacionados a supostos equilíbrios nos mercados, tal como reza a cartilha neoliberal, o desafio de construção de alternativas econômicas efetivas se desloca para o plano político.
Daí a relevância da iniciativa do Papa Jorge Bergoglio de propor, em maio de 2019, um amplo movimento mundial para reflexão sobre alternativas ao pensamento e às políticas neoliberais. Ao articular jovens ativistas de todo o mundo com economistas críticos, sendo alguns ganhadores do Nobel, a reflexão proposta vai além da dimensão estritamente técnica da ciência econômica para que os fundamentos éticos que dão sustentação ao sistema dominante sejam também questionados. Não fosse a pandemia, esse processo descentralizado de reflexão crítica teria convergido para o evento intitulado “Economia de Francisco”, originalmente programado para os dias 26 e 29 de março na cidade italiana de Assis, onde viveu o frade que se despojou de sua riqueza para se solidarizar com os mais pobres e com os outros seres da natureza.
Recuperar a solidariedade como valor vertebrador dos sistemas econômicos do futuro é a mensagem que o Francisco papa de hoje quer resgatar do Francisco frade do século XIII. Para coordenar essas reflexões no Brasil, formou-se a Articulação Brasileira para Economia de Francisco (ABEF), cujos debates resultaram na contribuição brasileira a ser levada à Assis, a Carta Brasileira pela Economia de Francisco e Clara. No bojo dos debates que conduziram à carta, a ABEF entendeu que “para as novas economias no século XXI, masculino e feminino tem que caminhar lado a lado, ombreados, nem à frente nem atrás, mas de mãos dadas, como o “Irmão Sol” e a “Irmã Lua”. Economia de Francisco e Clara é o que pretendemos praticar e honrar”.
A agricultura familiar camponesa é apresentada na carta como uma das principais expressões vigentes de economia social e solidária a serem reconhecidas e desenvolvidas pelas políticas públicas. Ao contrário da racionalidade econômica capitalista, orientada para a extração e a apropriação privada da riqueza gerada pelo trabalho alheio, na agricultura familiar é a própria família, enquanto uma micro-comunidade econômica, aquela que aciona o capital mobilizado pelo seu processo de trabalho. Por ser simultaneamente trabalhadora e proprietária dos meios de produção, ela depende da preservação do seu patrimônio produtivo. Isso implica uma racionalidade peculiar de gestão técnico-econômica voltada à otimização a longo prazo das rendas geradas pelo seu trabalho, diferindo diametralmente dos critérios da empresa capitalista, estruturada essencialmente para a obtenção de lucros no curto prazo.
Apostar nas qualidades da agricultura familiar, em síntese, significa fortalecer sistemas alimentares fundados em economias redistributivas e regenerativas, tal como sugere Kate Raworth, em seu livro Economia Donut: uma proposta para o século 21. Significa cultivar agentes econômicos socialmente propensos à solidariedade intra e intergeracional. Significa gerar postos de trabalho dignificantes dedicados à produção de comida em quantidade e diversidade para o abastecimento do conjunto da população com alimentação saudável. Significa reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa e promover sistemas alimentares com maior capacidade de adaptação às já inexoráveis mudanças climáticas. Significa, finalmente, desarticular o poder de controle de grandes corporações do agronegócio sobre os circuitos que encadeiam globalmente a produção, o processamento, a distribuição e o consumo de alimentos.
Fuente: Outras Palavras