Agricultura de chalaça
Em tempos de emergência climática, colapso hídrico e perda acelerada de biodiversidade, o uso banalizado da expressão “agricultura sustentável” tornou-se não somente contraditório, mas em muitos casos, uma verdadeira chalaça, uma brincadeira de mau gosto com a inteligência coletiva, com a ciência e, sobretudo, com a vida sobre a terra.

O termo, antes carregado de esperança e responsabilidade ética, hoje é manipulado com tamanha leviandade que já não distingue práticas comprometidas com o futuro daquelas que mascaram destruição com discursos verdes.
Nas últimas décadas, a adoção indiscriminada de tecnologias agrícolas que se autointitulam “sustentáveis” vem servindo de cortina de fumaça para modelos produtivos essencialmente extrativistas, que continuam baseados na mobilização intensa do solo, no uso abusivo de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, e na negação sistemática da importância da agrobiodiversidade, do conhecimento ecológico tradicional e da agroecologia. O marketing verde passou a compor o vocabulário de corporações e instituições que mantêm suas estruturas produtivas ancoradas na lógica da degradação e da homogeneização da paisagem.
Essa distorção de linguagem é o que define a “agricultura de chalaça”, uma agricultura zombeteira, descomprometida com os fundamentos ecológicos, mas extremamente hábil em manipular narrativas para manter a aparência de modernidade, inovação e responsabilidade socioambiental. Nesse teatro de aparências, as palavras perdem seu peso, os conceitos se esvaziam, e o que resta é uma caricatura de sustentabilidade.
É comum encontrar eventos agropecuários em que se exaltam as “boas práticas”, ao mesmo tempo em que se glorifica o uso de máquinas pesadas que revolvem o solo até sua exaustão, se promovem “bioinsumos” em campos estéreis e se marginaliza o agricultor que aposta na diversidade, no consórcio de culturas ou na recuperação ecológica dos agroecossistemas. Nessa lógica, o solo é um suporte inerte, a água é um insumo, a floresta é obstáculo, e o agricultor ecológico, muitas vezes, é visto como excêntrico ou ultrapassado.
A chalaça se revela também na forma como a agroecologia é sistematicamente desvalorizada. Embora essa abordagem represente o caminho mais promissor para restaurar o equilíbrio entre produção, território e cultura, ela é frequentemente tratada com escárnio ou indiferença pelos grandes atores do agronegócio. Rotulada como improdutiva, romântica ou ideológica, a agroecologia segue à margem dos investimentos públicos, das linhas de crédito e da pesquisa de ponta, ainda que seja reconhecida internacionalmente como base para a transformação dos sistemas alimentares rumo à resiliência e à justiça social.
Na prática, o que se vê é um sistema produtivo que mantém sua dependência química e energética, que promove a expansão horizontal sobre áreas de vegetação nativa e que se sustenta à custa da concentração de terras, da precarização do trabalho rural e da contaminação ambiental. Tudo isso, paradoxalmente, sob o rótulo de “sustentável”. Como é possível sustentar esse modelo sem cair na contradição?
A resposta está na manipulação do discurso. A “agricultura de chalaça” se alimenta do marketing de responsabilidade, das certificações flexíveis, dos relatórios de sustentabilidade corporativa repletos de eufemismos. Fala-se em pegada de carbono, mas omite-se a perda da biota do solo. Fala-se em economia circular, mas oculta-se a exportação massiva de nutrientes. Fala-se em conservação, mas remove-se a cobertura vegetal e ignora-se o papel das sementes crioulas, dos quintais agroflorestais e das práticas culturais dos povos do campo.
Mais grave ainda, esse tipo de agricultura opera por meio de apologias disfarçadas: valoriza-se a produtividade a qualquer custo, normaliza-se o uso contínuo de venenos, justifica-se a erosão como “efeito colateral” e trata-se a monocultura como sinônimo de eficiência. A agricultura de chalaça é, nesse sentido, mais ideológica do que técnica, mais teatral do que agronômica, e mais marqueteira do que ecológica.
É necessário romper esse ciclo de ironia e desinformação. A agricultura do futuro, ou melhor, do presente urgente, não pode se basear em chalaças. Ela precisa ser radicalmente coerente, ou seja, ir à raiz dos problemas, repensar o modelo de produção, rever a relação entre ser humano e natureza, resgatar o senso de pertencimento ao território e abandonar a lógica predatória que reduz o solo a uma “plataforma de insumos”.
Sustentabilidade, quando levada a sério, implica resiliência ecológica, autonomia camponesa, conservação hídrica, bem-estar animal, integração com a paisagem e respeito ao ciclo da vida. Implica também reconhecer os saberes tradicionais, promover a justiça agrária e estimular a inovação verdadeiramente ecológica, aquela que nasce da observação da natureza e da escuta atenta das comunidades.
A agricultura orgânica, a regenerativa, a agroecologia, os sistemas agroflorestais, o manejo ecológico do solo, o respeito ao tempo da terra, tudo isso compõe um caminho possível, coerente e ético. Um caminho oposto à chalaça. Um caminho que recusa as soluções fáceis, os pacotes prontos e as verdades absolutas, para construir, em seu lugar, um modelo dinâmico, diverso e conectado com os princípios da vida.
Assim, ao nomear esse fenômeno de “agricultura de chalaça”, o que se propõe não é uma simples crítica sarcástica, mas uma denúncia ética. É preciso desmascarar as incoerências que se escondem sob o manto da sustentabilidade e exigir que a agricultura volte a se alinhar com os ciclos naturais, com a justiça social e com a verdade dos ecossistemas.
Não se brinca com a terra. Não se brinca com a água. Não se brinca com a vida. A agricultura precisa reencontrar sua vocação ancestral de nutrir, e não de zombar da própria existência.
- Editado por: Nathallia Fonseca.
Fonte: Brasil de Fato