A heurística do temor e o despertar da responsabilidade

Idioma Portugués

Tom antecipador e “primazia do mau prognóstico” são característicos dessa heurística, afirma Jelson Roberto de Oliveira. Jonas acusa Kant de ter permanecido num modelo antropocêntrico de ética, por reconhecer a natureza como campo eticamente neutro e porque sua ética se limita ao âmbito humano.

Um dos conceitos mais interessantes e polêmicos da obra de Hans Jonas. Trata-se da heurística do temor, erroneamente traduzida do alemão como heurística do medo, acentua o filósofo Jelson Roberto de Oliveira. “Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas, Jonas propõe utilizar-se o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza. Para o autor, é preciso utilizar as predições e os presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação das condições desastrosas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade”. E completa: “Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor tem, portanto, um tom antecipador e é a “primazia do mau prognóstico” que despertaria no ser humano a responsabilidade. O pesquisador fala também sobre a crítica de Jonas ao marxismo e a Kant. “Para Jonas o marxismo é um tipo utópico de proposta política que não se deu conta dos limites das condições materiais. Ao ser embasado numa esperança redentora através do materialismo, leu errado os limites da tolerância da natureza e da sua oferta”. Sobre o filósofo de Könnigsberg, Jelson assinala: “Em Kant, Jonas reconhece um vazio ético no que tange ao problema dos riscos de extinção do homem, de alteração de sua essência, de cuidado com a natureza, de uma marca profundamente antropocêntrica da ética, de uma ausência do problema do futuro e das exigências que ele traz em termos de garantia de sua factibilidade”. As informações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em Filosofia, especialista em Sociologia Política e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Jelson Roberto de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR com a tese Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011), A solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010) e Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental (São Paulo: Paulus, 2008). Leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a heurística do medo, de Hans Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – Um primeiro ponto que deveríamos nos ater diz respeito à tradução desse conceito Heuristik der Furcht por heurística do medo. A palavra medo tem uma posição negativa na língua portuguesa que não traduz bem o alemão Furcht, que seria melhor traduzido por temor, que daria a ideia não de um medo passivo, mas de um receio fundado, de um medo acompanhado de respeito frente à força do mal eminente. Tem a ver com escrúpulo e com zelo e menos com a perturbação mental provocada por algo estranho e perigoso, como um sentimento desagradável frente ao desconhecido.

Dito isso, podemos afirmar que esse é um dos conceitos mais interessantes e, por isso mesmo, mais polêmicos da obra jonasiana. Trata-se de uma opção ética pelo mau prognóstico, de um antídoto contra a esperança sem sentido que pode afetar a ação humana no mundo. Em vez das probabilidades otimistas e idealistas, Jonas propõe utilizar o medo como forma de aprendizado e fazer da projeção da possibilidade da previsão negativa como condição para alterar a atitude do ser humano frente à natureza. Para o autor, é preciso utilizar as predições e os presságios apontados pelos saberes científicos modernos como forma de antecipação das condições desastrosas previstas caso o ser humano não altere as suas ações, em sentido de fomentar a responsabilidade. Catástrofes e calamidades serviriam, portanto, de mote para refletir e vislumbrar os desastres futuros que podem levar à extinção da própria humanidade. Esse prognóstico negativo não é um mero pessimismo ou um procedimento puramente instrumental. Mas a heurística do temor não deve ser entendida como uma palavra última da nova ética da responsabilidade proposta por Hans Jonas. Aliás, muitas confusões apareceram entre os intérpretes justamente por causa dessa má compreensão do conceito. A heurística, como hipótese adotada provisoriamente na forma de uma diretriz moral da qual se aprende tendo em vista a descoberta que se faz a partir dos eventos que despertam o temor, é um passo considerado indispensável na reelaboração do agir moral.

Tomada de consciência

Como princípio prático da sua ética, a heurística do medo remete à ideia de que o uso desse sentimento de preservar-se frente à ameaça possível. Quanto mais investirmos no conhecimento e na divulgação desse temor, mostrando as reais possibilidades e o quão terrível pode ser a ameaça, mais seria despertado o temor das pessoas e mais elas estariam dispostas a alterar as causas dessa ameaça. Para isso, a heurística também seria um princípio de conhecimento, porque sua efetividade e eficácia estariam ligadas justamente ao conhecimento (ou, se quisermos, à tomada de consciência em relação às causas, ou aos agentes e motivos geradores da crise, no sentido de domínio dos conhecimentos científicos que ajudam a realizar o diagnóstico e o prognóstico, bem como da reflexão ética a respeito da ação humana no mundo). Trata-se de uma tomada de consciência do perigo, do risco do mal que adviria do uso perigoso do poder da técnica. Como a ameaça ambiental é geralmente imperceptível ou, pelo menos, de difícil acesso para o cidadão comum, a heurística poderia contribuir para revelar a real possibilidade do perigo e serviria de convocação. O temor tem, portanto, um tom antecipador e é a “primazia do mau prognóstico” que despertaria no ser humano a responsabilidade.

Obviamente a polêmica do conceito logo salta aos olhos. Poderíamos resumi-la em duas perspectivas: uma primeira, que remete ao fato de que talvez seja problemático que uma ética do porte proposto por Hans Jonas necessite se fundamentar numa objeção adversária, ou seja, na representação de um perigo exterior pela via de um sentimento que altere e mobilize o sentido ético dos sujeitos; e uma segunda, que diz respeito ao fato de que, talvez, frente ao medo do absurdo fim (extenuado em vista do benefício de uso heurístico do temor) a consequência pode não ser a mudança das ações, mas justamente, pela gravidade do prognóstico, o despertar de um sentimento contrário, do tipo “por que mudar a minha atitude se tudo vai acabar mesmo”; ou ainda: ao exacerbar com vivacidade o perigo, ele pareça tão exagerado que soe justamente como impossível de acontecer realmente, porque tal perigo não tem nenhuma semelhança com a experiência real de mundo das pessoas. Seria, então, essa representação do medo algo inerte? Talvez, mas aqui incorremos no erro de interpretar, mais uma vez, o conceito como fundamento último. Jonas é claro: a heurística do temor é um antídoto contra as profecias de salvação (muitas vezes anunciadas, hoje em dia, pela boca daqueles que esperam da ciência, mais uma vez, uma solução milagrosa para os problemas ambientais que nos afetam, enquanto cruzam os braços para atitudes urgentes que indiquem a responsabilidade com o meio ambiente) e não um pessimismo em relação do futuro.

A “profecia da desgraça” não é a mesma coisa que a heurística do temor. Pessimista, diz Jonas, é a posição daqueles que julgam o existente tão ruim que não mereça ser considerado do ponto de vista do risco de sua extinção.

IHU On-Line – De que forma esse conceito se relaciona com a utopia da abundância, a que o autor se refere?

Jelson Roberto de Oliveira – O diagnóstico de Hans Jonas remete ao imenso poder humano representado pelo advento da técnica e à promessa de felicidade escondida sob o afã do progresso infinito e da esperança utópica por ele prometido. Para isso, o autor passa em revisão os ideais utópicos que encontraram na técnica e nos seus utensílios, a promessa de bem-estar. A abundância de recursos e de possibilidades oferecidas pela natureza torna-se, assim, o alvo da crítica jonasiana, de tal forma que poderíamos afirmar que o princípio responsabilidade aparece como antinomia dessa promessa, cujo maior prejuízo revela-se como dano à natureza. O que fundou a promessa da abundância natural em benefício do bem-estar absoluto e infinito do homem no mundo é a ideia de que a natureza era inviolável e, mais ainda, doadora de forças, energia e matérias-primas infinitas e ilimitadas para a construção da felicidade pela via do progresso tecnológico. As éticas do passado e os saberes disponíveis em outros tempos não foram capazes, por erros de interpretação da história evolutiva da vida, de diagnosticar de forma correta os limites da natureza em fornecer as bases dessa abundância desejada. O que descobrimos – agora já como dano e como prejuízo inalterável e, segundo muitos, irreversível – é que a oferta de alimentos, matérias-primas e energia por parte da natureza não é ilimitada, mas justamente o contrário. As condições materiais que fundaram as utopias de tipo desenvolvimentista, marxista, liberal, progressista, político-revolucionárias ou conservadoras (tanto faz, todas acreditaram na utopia da abundância), revelam-se agora como excessivas no que tange ao desgaste dos recursos. Não há abundância, portanto, quando a Terra é reconhecida em seus limites. Só poderíamos falar de abundância em sentido fraco, na medida em que reconhecêssemos a urgência do uso responsável desses recursos. A abundância é do tamanho da nossa responsabilidade!

IHU On-Line – Nesse aspecto, como compreender a crítica ao marxismo que advém da filosofia de Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – Para Jonas o marxismo é um tipo utópico de proposta política que não se deu conta dos limites das condições materiais. Ao ser embasado numa esperança redentora através do materialismo, leu errado os limites da tolerância da natureza e da sua oferta. É a determinação material da proposta marxista que está em jogo. Portanto, por creditar à determinação material as benesses da sua proposta utópica, o marxismo acabou dando de ombros para a responsabilidade, por não ter se dado conta desses limites. Se, como afirma Jonas nas primeiras linhas do capítulo intitulado A crítica da utopia marxista, do seu O princípio responsabilidade, “a primeira condição da utopia é a abundância material, de modo a satisfazer as necessidades de todos; a segunda condição é a facilidade em adquirir essa abundância” na busca do lazer, alcançado pelo conforto promovido pelo acesso aos bens de consumo que tornam a “abundância” algo rapidamente acessado pela maior parte da sociedade, mesmo a parcela proletária, então essa foi a viseira vestida pelos marxistas.

Se o lazer, chamado por Jonas de “essência formal da utopia”, remete à liberdade da servidão do trabalho, então não é estranho reconhecer nessa a chave de entrada no modelo proposto por Marx. A “radicalização da técnica” oferece a possibilidade (ainda que ilusória) para o alcance dos bens de consumo em cujo seio vem, embrulhados, os ideais essenciais do lazer e do conforto associados à felicidade. O marxismo, então, constituiu-se como “agressão intensificada” à natureza na medida em que se estabeleceu sobre essas bases. Esqueceram-se, os marxistas, de perguntar: até onde a natureza pode suportar? E dessa resposta dependeria todo o futuro dessa proposta. Marxismo e liberalismo, proletários ou burgueses, países desenvolvidos ou subdesenvolvidos igualam-se quanto à gravidade dessa pergunta e à urgência dessa resposta. Nesse sentido, a crítica de Jonas não é uma crítica política efetivada como crítica a um regime político-econômico, mas, antes, uma crítica ao ideal que serviu de motor para a maioria dos regimes políticos e ao erro a que estiveram submetidos.

IHU On-Line – Como analisa a herança kantiana no pensamento desse autor?

Jelson Roberto de Oliveira – Jonas reconhece em Kant um modelo exemplar do modo de pensamento ético vigente no Ocidente. Nesse sentido, trata-se, mesmo, de um reconhecimento, no sentido de dar aceitar a importância e o prestígio dessa filosofia. Mas isso não o impede (como jamais é o caso na filosofia!) de mostrar o quanto a tese kantiana é insuficiente para dar conta da nova realidade. Insuficiente, quer dizer, não significa que Jonas afirme a não validade da ética kantiana. O que ele propõe é um novo modelo ético em função dos novos saberes, frente aos quais a ética não pode mais fechar os olhos. Como se ampliaram o conhecimento científico e o poder de intervenção da técnica, é necessário e urgente que também a ética alargue a sua perspectiva de análise. É preciso superar limite da visão existente no século XVIII, o século do Iluminista, que fundou muitas das teorias da liberdade e da abundância, a despeito da responsabilidade.

O imperativo categórico de Kant seria limitado à perspectiva do conhecimento e ao tamanho da técnica existentes em seu tempo. Em Kant, Jonas reconhece um vazio ético no que tange ao problema dos riscos de extinção do homem, de alteração de sua essência, de cuidado com a natureza, de uma marca profundamente antropocêntrica da ética, de uma ausência do problema do futuro e das exigências que ele traz em termos de garantia de sua factibilidade.

IHU On-Line – Qual é o fundamento da rotulação antropocêntrica da filosofia de Jonas se pensarmos nessa herança kantiana?

Jelson Roberto de Oliveira – Jonas acusa Kant de ter permanecido num modelo antropocêntrico de ética, por reconhecer a natureza como um campo eticamente neutro e porque sua ética esteve limitada ao âmbito humano, tratando da relação ser humano/ser humano. Essa crítica parte da concepção de que a ética kantiana (como modelo daquilo que Jonas chama, em termos gerais, de éticas tradicionais) esteve reservada ao âmbito da “cidade”, ou seja, do artefato criado pelo ser humano e dele dependente. A ética seria a reflexão para a vida dentro dos muros da cidade, que foi erguida, no geral, de costas para a natureza, como uma forma de proteção e esconderijo, de conforto e segurança no meio do reino natural. Isso se deu porque a natureza foi tida sempre como um campo selvagem, violento, inimiga que ou cuidava de si mesma, ou era cuidada por “Deus”, ou melhor: que fosse mesmo reprimida ou domesticada, com vistas ao seu enfraquecimento. Frente à natureza, o homem se comportava como detentor de uma arma de domínio e exploração (com vistas à domesticação e usufruto das condições materiais): a razão amplamente elogiada e examinada na teoria kantiana. Com racionalidade, o ser humano quis decifrar e inventar formas de domínio da natureza sem que, em algum momento, tenha se colocado o problema das consequências negativas que adviriam desse processo. A partir da cidade, o ser humano iria à natureza pela via do domínio e da exploração, sem se dar conta do tamanho do seu impacto e sem prever (como prognóstico negativo) o que poderia acontecer depois de sua passagem.

Kant, então, formulou uma ética centrada na “cidade”, na qual o ser humano deveria construir uma vida feliz a partir do reconhecimento de si mesmo como “reino dos fins”. Nenhuma perspicácia de longo alcance, nenhum conhecimento para além do âmbito da urbes, nenhuma preocupação para além do âmbito imediato e presente da ação: Kant foi reducionista e seu imperativo categórico recusou os saberes que se revelavam como braço humano que se alongava para além do domínio da cidade, atingindo de forma catastrófica a natureza como um todo.

IHU On-Line – Em que aspectos é possível aproximar a ética da responsabilidade de Jonas e a ética da amizade, de Nietzsche?

Jelson Roberto de Oliveira – Apenas num ponto de vista generalista: ambos os conceitos e autores servem de crítica à modernidade e aos grandes valores éticos da modernidade. Nietzsche criticou Kant pela via da crítica a Schopenhauer no que tange ao seu projeto crítico que, segundo o filósofo de Sils Maria, acabou deixando entrar pela porta dos fundos aquilo que tentara expulsar pela porta da frente: ou seja, ao tentar criticar a razão metafísica, reconhecendo seu limite no que tange ao conhecimento de uma verdade última do mundo, Kant acabou, segundo Nietzsche , colocando-se num lugar seguro e inquestionável. Jonas também critica os limites da ética kantiana, mas obviamente por outros motivos. Isso posto, é preciso reconhecer que, no que tange a Kant, Nietzsche e Jonas estão em lugares infinitamente distantes quanto aos motivos dessa crítica. Mesmo assim, ambos elaboram sua filosofia como uma crítica às éticas tradicionais e também como crítica ao modelo de racionalidade eleito como paradigma no Ocidente. Ambos são grandes críticos dos ideais modernos.

IHU On-Line – Poderia contextualizar a compreensão do conceito de vida por Hans Jonas?

Jelson Roberto de Oliveira – A questão da vida é central no pensamento de Hans Jonas, seja em termos absolutos seja quando pensamos no fundamento da sua ética da responsabilidade. Esse problema remete à sua obra Princípio Vida e se relaciona diretamente ao problema da relação entre necessidade e liberdade. Se a tradição moderna ligou a primeira à natureza e a segunda apenas ao reino da racionalidade, Jonas, como resultado de suas pesquisas em torno de uma filosofia da biologia, chega à afirmação de que a liberdade é uma característica presente em todo o mundo orgânico – e não apenas no humano. O que ele pretende é superar o dualismo ontológico reinante na filosofia e na ciência ocidental moderna que não passaram de um erro de avaliação a respeito do fenômeno da vida por limitarem-se a uma leitura materialista da vida, deixando para a religião o problema do espírito e a dimensão interior que marca a história da vida. Para Jonas, por estarem presentes também no homem, as características espirituais só podem ter derivado das demais formas de existência orgânica. Ou seja, o homem seria apenas um resultado do progresso que liga o “primitivo” ao “evoluído”, vindo a representar, pela consciência e pela busca da verdade, o degrau mais elevado desse desenvolvimento. Não é possível mais pensar segundo esse dualismo: o homem não está separado e desligado das demais formas de vida, mas justamente se liga a elas pelo processo evolutivo. Essa foi, segundo ele, a maior consequência filosófica do darwinismo.

Metabolismo inicial

Jonas precisa voltar, então, ao problema da origem da vida que, segundo ele, fora esquecido pela ciência moderna, cujo modelo mecanicista buscou na natureza apenas as estruturas já prontas, presentes no mundo e nele em funcionamento, atendo-se ao desafio da explicação da matéria e do movimento. Por isso, ao se perguntar sobre a origem, a ciência moderna logo se deu conta de seu limite e passou a reconhecer a origem e a existência como estados anteriores e posteriores de um mesmo substrato, como diferenças meramente cronológicas. Não há causa diferente do efeito. A organização tardia não passou de um resultado da instabilidade primordial de todo ser orgânico e é nesta etapa que deve ser reconhecida e buscada uma explicação para a origem do espírito. É como prolongamento desse estado inicial, portanto, que o espiritual deve ser entendido. Por isso, ao perguntar sobre a origem do espírito do homem, é preciso reconhecer necessariamente que ele já é antecipado nas formas mais primordiais da vida. Essa é a consequência mais radical do darwinismo. Para ele, é pela via da hereditariedade que cada “pequenino passo do acaso” acumula “informações” que se manifestam, através do tempo, em “grandes e completos genótipos” até alcançar a sua plenitude na forma de vida humana. É no metabolismo inicial dos seres que Jonas reconhece o primeiro gesto de liberdade da vida: “esse tema, comum a toda a vida, buscaremos acompanhá-lo através do crescente desenvolvimento das capacidades e funções orgânicas: metabolismo, movimento e apetite, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito – uma escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano”, escreve o autor no seu Princípio Vida.

IHU On-Line – Qual é a maior contribuição desse pensador para a construção de uma ética da responsabilidade?

Jelson Roberto de Oliveira – Acredito que a proposta ética de Jonas não esconde suas dificuldades quando pensamos nos seus fundamentos. Mesmo assim, o tamanho, a originalidade e a coragem que ela guarda, é incomparável. É justamente pela grandiosidade e pela urgência do projeto que esses problemas aparecem. Devemos evitar, a meu ver, dois extremos: recusar o modelo em função de seus limites; exacerbar seus méritos fechando os olhos para esses problemas. Jonas conseguiu condensar, em seus escritos, um dos problemas mais fundamentais de nosso tempo: a relação entre o afã da técnica, o poder do homem e as consequências no campo da natureza. Ética, técnica e natureza se articulam numa obra de grandeza inegável, cujo impacto foi (é) muito relevante nos anos posteriores à sua publicação até os nossos dias.

Gosto de pensar que Jonas está enfrentando um problema que esteve alheio da filosofia. E o faz com a nobreza de um filósofo que acumulou, na própria vida, conhecimento e vivência suficiente para se tornar eloquente e fecundo. Trata-se de um convite para que a responsabilidade guie as ações humanas e conduza a sociedade tecnológica para um uso responsável do poder oferecido pela técnica.

Seu livro, assim, é um marco para o pensamento da responsabilidade num âmbito novo e muito grande do ponto de vista do poder de impacto desse poder. Dando-se conta de que “a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça”, Jonas faz uma experiência que o conduz a resultados realmente impressionantes do ponto de vista ético e filosófico.

O novo modelo ético sugerido (na forma de uma convocação, que é como as teses éticas geralmente se apresentam) parte, em primeiro lugar, do indeferimento da superioridade da racionalidade técnica humana sobre os demais seres vivos, o que significa uma recusa da superioridade do homo faber (homem que faz) cujo entusiasmo incoerente subjuga o homo sapiens (homem que pensa). Em segundo lugar, da supressão da fronteira entre a “cidade” ou o Estado (o mundo da pólis) e a “natureza”, já que uma e outra estão confundidas no mundo contemporâneo, já que “o natural foi tragado pela esfera do artificial”. Do primeiro caso nasce a necessidade de refletir sobre a técnica como uma vocação humana, mas despi-la desse infinito impulso e desse cego triunfo. Da segunda negação advém a exigência de que a ética pense a conservação do mundo físico de forma a garantir a existência da própria vida no futuro. E não há outra exigência mais grave, urgente e imperiosa para a ética do que a vida.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Jelson Roberto de Oliveira – Só queria dizer que Jonas coloca a ética no campo de uma futurologia, como possibilidade de criação e de alteração do futuro mesmo, hoje fornecidas pela técnica moderna. A perspectiva do futuro, presente em sua proposta, nos remete à urgência de fazermos uma escolha quanto à possibilidade de existir, quanto àquilo que queremos ser e ao mundo no qual queremos viver. É a ética e não a técnica (muito menos essa ideologia da técnica usada pelos tecnocratas a serviço das grandes corporações) que deve nos ajudar a chegar a uma resposta para essas questões.

Fuente: Instituto Humanitas Unisinos

Temas: Defensa de los derechos de los pueblos y comunidades

Comentarios