3 anos de lama, 3 anos de luta: a marcha que marcou três anos de injustiça e descaso após o derramamento e rejeitos no Rio Doce
A cada ano que passa, as marcas do crime do dia 5 de novembro de 2015 no Rio Doce ficam mais evidentes. Os mais de 50 milhões de m³ de rejeitos de minério derramados nas águas chegaram como um tsunami, devastando tudo o que encontrava no caminho, matando dezenove pessoas e acabando com o modo de vida ribeirinho.
Três anos depois, uma marcha que percorre o mesmo caminho da nascente (em Minas Gerais) à foz do Rio Doce (no Espírito Santo) encontra saudade, injustiça, indignação, mas também esperança, união e luta.
Foram 10 dias. 11 cidades. 650 km percorridos. Dezenas de entidades apoiadoras. 60 pessoas em movimento constante. Mobilização de quase mil atingidos e atingidas. Uma infinidade de violações de direitos encontrados. Os números marcam a Marcha ‘Lama no Rio Doce: 3 anos de Injustiça’, entre os dias 04 e 13 de novembro, que realizou o trecho percorrido pela lama de rejeitos de Mariana (MG) à Regência (ES).
“Fazemos memória para que nunca mais se repita. Para que os responsáveis sejam devidamente punidos pela lei. Para que os atingidos e atingidas sejam devidamente reparados e indenizados. Para que nossa casa comum volte a ser respeitada e o rio volte a ser sinal de vida e esperança para aqueles que nele veem a própria vida”, assim resume Padre Geraldo, pároco da Igreja Nossa Senhora do Carmo, em missa celebrada no dia 05, em Mariana (MG).
Os atingidos percorreram as cidades de Mariana, Ouro Preto, Ipatinga, Cachoeira Escura, Naque, Governador Valadares, Aimorés e Itueta, em Minas Gerais. No Espírito Santo, o trajeto passou por Colatina, Aracruz e Regência, onde o encontro entre o Rio Doce e o mar recebeu o fim da caminhada.
Por todo o Rio Doce ainda é possível ver os estragos causados na vida da população pelo crime da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, as duas maiores mineradoras no minério de ferro do mundo. “Nós tínhamos as melhores águas do mundo, e agora não temos mais. Eles falaram que em dez anos o rio vai estar limpo mas eu não acredito, porque jamais vão ter condições de limpar o que fizeram”, preocupa-se Gilson, pescador atingido de Cachoeira Escura (MG).
Contaminação, descaso e incertezas
Três anos se passaram. As empresas criminosas seguem impunes, os governos se omitem, a justiça demonstra parcialidade e incapacidade, e as famílias atingidas vivem o cotidiano de precariedade, incertezas e saudades do velho rio. “Não foi um acidente, foi um crime, mas as empresas não querem nem saber. Nós fomos esquecidos”, desabafou Simone Silva, moradora de Barra Longa (MG), no Encontro de Mulheres em Crianças atingidas que abriu a Marcha, entre os dias 04 e 5 de novembro em Mariana (MG).
“São três anos lutando por reconhecimento. Hoje, os criminosos estão soltos, enquanto os meus filhos já foram sentenciados e estão contaminados pela lama tóxica da Samarco”, conta Simone. Seus dois filhos estão no grupo dos 15 atingidos que realizaram exames por uma pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), e foi comprovada a contaminação por arsênio e outros metais pesados.
Problemas de pele, respiratórios, gástricos, dores de cabeça são sintomas sentidos por seus filhos e comuns em toda a Bacia, o que demonstra a possível contaminação de milhares de pessoas. A água do Rio Doce, possivelmente ainda contaminada, abastece mais de 600 mil habitantes.
“Eles falam que a água do rio tá boa mas é mentira. Tem muita gente com enfermidade já, com bolhas, dores, porque tá usando essa água. Eles são mentirosos, estão fazendo análises mentirosas”, denuncia Raimundo, morador de Cachoeira Escura (MG), sobre as análises realizadas pela Renova que apontam que água do Rio Doce está apta para consumo humano. O grito de indignação ecoou com os mais de 100 participantes da Assembleia realizada pela Marcha no município, no dia 08.
Dom Wladimir, Bispo da Arquidiocese de Colatina (ES) reforça que água é utilizada para beber, preparar a comida, tomar banho, entre outras finalidades. “Eu até hoje não arrisco tomar essa água, eu não me adaptei, ela faz mal até para tomar banho. Essas análises deveriam ser diárias, realizadas por laboratórios com independência em relação às empresas”, denuncia. No dia 10, uma celebração realizada pelo Bispo marcou a chegada da Marcha no Espírito Santo.
O bairro IBC, vila de pescadores de Colatina, reuniu a categoria para um bate papo, onde se ouviram denúncias e preocupações. Sem reconhecimento e impedidos de realizar seu trabalho, eles estão por toda a Bacia e litoral. “Nós estamos sofrendo. Não era para eu estar aqui lutando, era para eu estar no meu cotidiano. Eu quero a minha identidade de pescadora e o meu rio de volta”, afirmou Silvia Lafaiate, pescadora de São Mateus (ES).
Mulheres no protagonismo
Dos participantes da Marcha, pelo menos 80% são mulheres, refletindo a organização dos atingidos e atingidas em toda a Bacia. E não é pra menos, elas relatam que a preocupação e o cuidado exigidos após os impactos da lama de rejeitos, como o aumento de doenças, a falta de fonte de renda, a perda da vivência em comunidade e os abalos nas relações familiares são preocupações frequentes durante estes três anos.
Apesar de serem elas as principais vítimas, por essa sobrecarga, são também as menos reconhecidas pela Fundação Renova. Relatos apontam centenas de casos em que somente a perda de renda do homem da família teve algum tipo de compensação da Fundação Renova, desfalcando a renda completa da família e afetando a autonomia da mulher.
Esse é o caso de Fabiana, do Espírito Santo. “Eu trabalhava com artesanato e na pesca, junto com meu marido. Ficamos sem a minha renda também, mas só ele recebe cartão. Perdi minha autonomia, porque meu dinheiro eu que escolhia como ia gastar, com meus filhos e nas compras da casa. Agora tenho que ficar pedindo pro meu marido, isso não é vida”, indigna-se.
Alguns dados apontam o tamanho do problema com que as mulheres do Rio Doce têm tido que lidar durante esses anos. Entre os desalojados logo após o crime e casos de danos posterior, são 2.800 casas que devem ser construídas ou reformadas. No entanto até o momento apenas uma (1) foi feita.
Outra questão que choque aqueles que moram ou visitam o Rio Doce é a qualidade da água: são 8 municípios, totalizando 633.373 habitantes abastecidos com água contaminada do Rio Doce. E desde o rompimento, 3 municípios seguem sem abastecimento de água, Resplendor, Itueta e Ipaba. O Movimento dos Atingidos por Barragens-MAB estima que sejam quase 2 milhões de atingidos, em 43 municípios ao longo da bacia do rio. A Fundação Renova aponta em seu site uma estimativa de cadastramento de 30 mil pessoas, ou seja, ficarão sem reconhecimento mais de 1 milhão de atingidos.
Nas correntes do Rio Doce, também há Luta e Conquistas
Apesar de todo o sofrimento do povo do Rio Doce e litoral, a tristeza se transforma em esperança e coragem. São incontáveis os grupos de atingidos organizados ao longo do rio, e as lutas realizadas são ainda mais numerosas, com fechamento de rodovias e da linha do trem, caminhadas, marchas, assembleias e reuniões, manifestações diversas.
Das conquistas destas lutas, pode-se listar algumas: Foram finalmente reconhecidos os camaroeiros e outras categorias como os garimpeiros, além de municípios atingidos pela lama na costa do Espírito Santo; em acordo mediado pela justiça realizado entre atingidos e empresas criminosas, foi garantida a contratação de Assessorias Técnicas em toda a Bacia em apoio à população; o fim da cláusula de quitação, que impedia atingidos de recorrerem à Renova ou empresas por danos que viessem a apresentar após o recebimento de indenização; houve diversas conquistas específicas em alguns territórios da Bacia, como a revisão de critérios de reassentamento e outros.
Durante a Marcha, reunião realizada entre a Fundação Renova e atingidos, onde estes puderam desabafar e expor sua indignação para a entidade, mais uma conquista: a Fundação admitiu serem injustos os critérios de reconhecimento de atingidos e o LMEO e garantiu a realização de uma revisão.
Ciente da força que têm a organização e a luta, Maria, atingida do Espírito Santo, convoca a todas e todos. “Tô lutando sim, tenho direito. Não quero nada de ninguém, quero o direito dos meus filhos, o que é meu direito. Não vamos nos calar, por medo ou por nada. Uma andorinha não vence, mas esse batalhão que temos aqui, aí sim!”.
3 anos do crime da Samarco na bacia do Rio Doce, de Minas Gerais ao Espírito Santo. Marcha chega ao mar e denuncia a continuidade do maior crime socioambiental do Brasil.
Nenhum atingido reassentado. Nenhum responsável preso. Mulheres são as principais vítimas. 3540 indígenas atingidos. Mais de 140km de litoral e milhares de atingidos não reconhecidos.
Do Rio ao Mar, não vão nos calar!
Texto y foto principal: Comunicação MAB
Fuente: MPA