ONU discute risco de crise alimentar
Apesar de 2010 estar caminhando para ter a terceira maior safra de grãos da história, a ONU apela para que o mundo se prepare para uma nova crise alimentar, incremente a produção nos países mais pobres e enfrente a especulação com commodities
A reportagem é de Jamil Chade e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 08-09-2010.
O alerta foi feito ontem pelo relator especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, Olivier De Schutter, depois de protestos em países africanos e greves na Índia por causa da alta no preço dos alimentos. Para a ONU, essas manifestações devem servir para "despertar" os governos para o risco de uma nova crise, como a de 2007.
"Os países mais pobres estão altamente vulneráveis. Continuam a depender de suas rendas de exportação de um numero pequeno de commodities e, de outro lado, dependem da importação de alimentos, com preços cada vez mais altos e voláteis. Deixar de agir agora e inaceitável", disse o relator.
Alta de preços. A FAO constatou que os preços de alimentos tiveram uma alta de 5%, apenas no mês de agosto. Os valores ainda estão abaixo dos índices de 2007. Mas os incêndios na Rússia, as chuvas no Paquistão e a seca em grande parte da Ásia Central obrigaram a FAO a rever para baixo a previsão de safra para 2010.
A ONU admite que o comportamento do governo da Rússia não ajudou. A Rússia é o terceiro maior exportador de trigo do mundo. Mas decidiu banir qualquer venda ao exterior até 2011 para impedir a alta nos preços domésticos, depois que parte substancial de suas terras foram destruídas por incêndios no verão.
A produção russa deve ser 38% inferior à do ano passado. Em agosto, a inflação teve sua maior alta em uma década. Depois de subir 5,5% em julho, os preços de alimentos sofreram mais uma alta de 6,1% em agosto. Para o Banco Central russo, a seca e os incêndios devem ter um impacto nos preços nos próximos 12 meses. O preço da farinha subiu 40% em apenas dois meses.
Especulação
Na ONU, De Shutter alerta que não são apenas os desastres naturais que estão elevando os preços. "A inflação é exacerbada pela especulação que, pouco a pouco, consome a renda de famílias" acusou.
O número de protestos aumentou nos últimos dias. Em Moçambique, a população foi às ruas contra a alta de 30% no preço do pão. Dez pessoas acabaram mortas e 150 foram detidas. No Egito, os protestos também se proliferam.
Sindicatos realizaram ontem uma paralisação no leste e no sul da Índia para protestar contra a alta nos preços de alimentos. Escolas e serviços públicos não funcionaram. A inflação na Índia é um dos temas mais polêmicos hoje do país, com taxas acima de 10%. O clima não tem ajudado e a safra acabou sendo menor do que se previa.
"Essa cólera da população era previsível", disse De Shutter. Os incidentes começam a se assemelhar aos protestos de 2007, quando o mundo presenciou uma alta nos alimentos que fez com que a luta contra a fome de toda uma década fosse revertida. A crise financeira em 2008 e 2009 acabou provocando uma queda no preço das commodities. Mas a situação voltou a se agravar.
Produção
A FAO insiste que a produção mundial de cereais será a terceira maior da história. Mas temores da falta de abastecimento fizeram com que o preço do trigo subisse 75% em um ano.
O índice geral de preços de alimentos está em seu ponto mais alto desde setembro de 2008. Os preços de milho estão em seu ponto mais alto desde meados de 2009. Açúcar e soja também sobem.
A FAO realiza no dia 24 em Roma uma reunião para lidar com a situação. Mas tentando acalmar os mercados e evitar especulação, a FAO evita classificar a situação de crise. "Se dissermos que é uma crise alimentar, a situação se transformará rapidamente em crise alimentar", disse Abdolreza Abbassian, economista da FAO.
PARA LEMBRAR
Promessa de ricos na crise foi esquecida
Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o problema é que as promessas feitas em 2007 e 2008 não foram cumpridas pelos países ricos. No auge da crise, o presidente americano Barack Obama convenceu os demais líderes do G-8 a anunciar um plano de US$ 15 bilhões para a ajudar no desenvolvimento da agricultura no mundo. "Os doadores não cumpriram sua promessa. A falta de vontade política e a perda de um sentido de urgência adiaram de forma inaceitável a tomada de medidas para evitar futuras crises", afirmou Olivier De Schutter, da ONU. "Em 2007, o mundo foi pego de surpresa. Desta vez, não há desculpas", completou.