México: conhecendo um Caracol Zapatista

Ao chegarmos ao Caracol de Oventic, vimos diversas placas com os dizeres "Você está em território zapatista em rebeldia. Aqui manda o povo, e o governo obedece".

Não sabíamos ao certo se seríamos atendidos em nossa solicitação de entrevistar membros da Junta de Bom Governo. O Movimento Zapatista encontrava-se em alerta vermelho, sinal de extrema precaução em relação às condições políticas do México. Ao mesmo tempo, os principais comandantes do EZLN estavam ao norte do país divulgando a “Outra Campanha” (saiba mais). Tivemos uma surpresa positiva, pois, ainda que estivessem em alerta, os Caracóis já estavam reabertos ao público e, dessa maneira, após nos identificarmos, tivemos permissão para entrar.

Fomos recebidos por um grupo de quatro rapazes mascarados. Todos pareciam ter a nossa idade (entre 17 e 20 anos), não portavam armas e, ainda que nos tratassem bem, todas as perguntas que fazíamos não eram respondidas. Percebemos, então, que o melhor a fazer era apenas sentar e esperar.

Permanecemos em uma pequena sala fechada por cerca de uma hora. Nossos passaportes foram levados à Junta de Bom Governo, para que nos fosse concedida uma eventual entrevista.

Ao chegarmos ao “escritório” da Junta, deparamo-nos com um grupo formado por cinco pessoas, três homens e duas mulheres (na foto). Explicaram-nos que não poderíamos filmar, já que não tinham autorização dos comandantes, pois, como já dito, estavam viajando.

Entretanto, tivemos permissão para uma breve entrevista e também pudemos tirar algumas fotos, desde que pessoas que não usassem máscara não estivessem presente nas imagens.

A entrevista a seguir foi concedida por todos os integrantes da Junta de Bom Governo. Dos cinco, apenas um consolidava as respostas, pois todas as perguntas eram previamente discutidas entre o grupo, que falava a língua indígena Tzotzil.

Latinautas – Por que se formaram os Caracóis?

Junta de Bom Governo – Esse local chamava-se aguacaliente, foi fundado por necessidade, para que as pessoas pudessem chegar e pedir informações sobre o Movimento Zapatista. Na manhã de 8 ou 9 de agosto de 2003, foi transformado em Caracol. Os Caracóis estão divididos em cinco partes, em diferentes localidades de Chiapas. Esse Caracol, Oventic, abarca sete municípios autônomos, os quais possuem seus líderes municipais. O local existe para que as pessoas venham e informem sua situação e para que nós também possamos informar sobre nossa luta. A voz entra, mas também sai. Por isso o nome Caracol.

Latinautas – Os Caracóis sofrem grande repressão?

JBG – Agora nem tanto, mas antes sim. Não convém ao Governo que os indígenas organizem-se, não lhes interessa. O exército sempre provoca problemas nas comunidades zapatistas. Nesse momento, as coisas estão mais tranqüilas. Há quatro ou cinco anos, não sofremos uma repressão muito violenta, mas, ao mesmo tempo, existem diversos acampamentos militares em território indígena. Nós, povos indígenas, não causamos problemas, respeitamos a todos.

Latinautas – Como são tomadas as decisões dentro dos Caracóis?

JBG – O que o mau governo faz é tirar os direitos dos homens. Temos valor, temos voz, todos somos iguais. As companheiras têm espaço para ser autoridade. As Juntas de Bom Governo é que tomam as decisões mais importantes do grupo. Somos eleitos em Assembléia.

Todos têm direito ao voto, é necessário apenas ser maior de 15 anos.

Latinautas – Quando um companheiro(a) infringe alguma norma da sociedade, como é que se procede?

JBG – Nós, como Junta, temos esse tipo de trabalho. Mas também há as autoridades dos municípios autônomos. Se as autoridades municipais não resolvem o problema, o caso nos chega. Cada comunidade resolve seus problemas de acordo com as normas por elas determinadas. É necessário aplicar castigo, seja a pessoa homem ou mulher. Mas a prisão não é o caminho escolhido, e sim o trabalho. O castigo deve ser um trabalho para toda a comunidade.

Latinautas – O trabalho dentro dos Caracóis é feito por todos. Como é feita a divisão das tarefas?

JBG – Trabalhamos coletivamente. Há representantes, escolhidos em assembléia, que decidem o que vai ser produzido. Eles controlam o trabalho dentro de um acordo entre toda a sociedade. São eles que dividem o que devemos consumir e o que devemos comercializar. Aqui, quase tudo é para consumo próprio. Se sobrar, dividimos entre as famílias ou vendemos. O que realmente produzimos para vender é o café.

Latinautas – Qual a diferença entre a educação dentro de uma comunidade zapatista e a educação nas demais escolas mexicanas?

JBG – A educação em nossas comunidades é totalmente independente. Os professores são chamados de “promotores de educação”. São pessoas de dentro das comunidades zapatistas. Pessoas que já tem idéia de como é a educação indígena, de como ensinar aos alunos. São feitas pesquisas para que a educação siga as tradições. Pesquisamos sobre como nossos pais e avós aprendiam. Em todas as atividades de nossa organização, há muito trabalho e não existem salários.

Latinautas – Existe um sistema de Saúde próprio dos Caracóis?

JBG – Os promotores de saúde também vêm das comunidades zapatistas. Receberam diversos cursos de capacitação para aprenderem a manusear os remédios. Não buscamos, em momento algum, pessoas do governo para nos capacitar. Muitas pessoas vieram de todo o mundo e, por meio de trabalho voluntário, ensinaram-nos a tratar da saúde.

Latinautas – Quais são as maiores necessidades das comunidades autônomas nesse momento?

JBG – Nossas necessidades são muitas. A principal delas é a saúde. As doenças estão espalhadas por todo o território. Nós não temos recursos para comprar muitos medicamentos. Também precisamos de material escolar. Falta material escolar para todos os alunos.

Latinautas – Como as pessoas podem ajudar?

JBG – Se vocês não puderem vir de seus países e contribuir com equipamentos diretamente para nós, aqui nos Caracóis, entrem em contato com o escritório do Enlace Zapatista em San Cristobal. Todo o material enviado para eles nos é repassado.

Latinautas – O Exercito Zapatista prevê um futuro sem armas?

JBG – Não podemos responder. (Perguntas que envolvem estratégias não puderam ser respondidas pelo fato dos Comandantes estarem ao norte do país divulgando a Outra Campanha).

Latinautas é o apelido dado pela Carta Maior à equipe da expedição "Da América para as Américas", formada por Milena Costa de Souza, Pedro José Sorroche Vieira, Thiago Costa de Souza e Ligia Cavagnari. Eles atravessarão as américas, passando por 17 países, percorrendo mais de 25 mil km em busca de uma identidade de resistência à hegemonia política, econômica e cultural exercida pelos EUA.

Leia o especial LATINAUTAS, com a íntegra dos relatos e comentários sobre a expedição "Da América para as Américas". ( Leia aqui)

Agência Carta Maior, Internet, 8-11-06