Despertar político indígena agita a América Latina
"Em toda a América Latina, e especialmente nos Andes, um despertar político está encorajando os índios que tem vivido quase como cidadãos de segunda classe desde a conquista espanhola"
No Equador, os Shuar estão bloqueando rodovias para defender seus campos de caça. No Chile, os Mapuches estão ocupando fazendas para pressionar por terra, escolas e postos de saúde. Na Bolívia, uma nova constituição dá aos 36 povos indígenas do país o direito de autorregulamentação.
Em toda a América Latina, e especialmente nos Andes, um despertar político está encorajando os índios que tem vivido quase como cidadãos de segunda classe desde a conquista espanhola.
A reportagem é de Frank Bajak, publicada no jornal The New York Times, 02-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Grande parte disso é resultado de uma melhor educação e comunicação, especialmente com a Internet, que permite que os líderes nativos em vilarejos remotos compartilhem ideias e estratégias através das fronteiras internacionais.
Mas boa parte disso nasceu da necessidade: os países latino-americanos estão embarcando em uma caça de recursos sem precedentes, movendo-se em terras que os índios consideram como suas – e cuja característica primitiva e intacta é a chave de sua sobrevivência.
"O movimento indígena se levantou porque o governo não respeita os nossos territórios, os nossos recursos, a nossa Amazônia", disse Romulo Acachu, presidente do povo Shuar, ladeado por guerreiros que portam lanças de madeira e listras pretas pintadas em seus rostos.
Há um mês, os Shuar colocaram bloqueios de arame farpado nas pontes nas florestas do sudeste do Equador para protestar contra a legislação que permitiria a instalação de minas nas terras indígenas sem o seu consentimento prévio e que colocaria a água sob o controle do Estado. No dia 30 de setembro, uma professora indígena foi morta em uma disputa com a polícia.
"Se houver mil mortes, elas serão boas mortes", disse outro líder shuar, Rafael Pandam.
Os Shuar venceram pelo menos esse round.
Uma semana depois do assassinato, o presidente Rafael Correa recebeu cerca de 100 líderes indígenas no palácio presidencial e concordou em rever as leis. Correa, anteriormente, havia chamado os índios de "infantis" por sua insistência em serem consultados sobre as concessões às mineradoras. Mas ele não precisou ser lembrado de que os nativos – um terço da população – se tornaram um constituinte indispensável e ajudaram a derrubar o governo equatoriano no ano 2000.
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Os índios são um em cada dez dos 500 milhões de habitantes da América Latina. Em algumas partes dos Andes e da Guatemala, eles são muito mais numerosos.
Porém, ele continuam muito mais pobres e menos educados do que a população em geral. Cerca de 80% vivem com menos de US$ 2 por dia – uma taxa de pobreza que é o dobro do da população em geral, de acordo com o Banco Mundial –, enquanto cerca de 40% não têm acesso aos tratamentos de saúde.
As ameaças às terras indígenas cresceram nos últimos anos. Com a diminuição das reservas de petróleo em todo o mundo e o crescimento da demanda por minerais e madeira, os interesses por petróleo e mineração estão unindo os extrativistas na invasão das terras indígenas tradicionais.
"Os índios têm progressivamente perdido o controle e a propriedade dos recursos naturais em suas terras", disse Rodolfo Stavenhagen, um proeminente sociólogo mexicano que foi, durante grande parte da última década, advogado-chefe da ONU para os índios. "A situação não é muito encorajadora".
É por isso que as revoltas sobem e descem nos Andes.
No Peru, ao sul das terras dos Shuar, o governo dividiu mais de 70% da Amazônia em blocos de exploração de petróleo e começou a vender concessões. Temendo a contaminação de suas áreas de caça e pesca, os índios começaram a montar bloqueios esporádicos de estradas e de rios no ano passado.
No dia 05 de junho, a polícia abriu fogo contra os índios em um bloqueio de estrada nos arredores da cidade de Bagua, onde a floresta se encontra com as encostas andinas. Pelo menos 33 pessoas foram mortas, muitas delas policiais. Os índios não se mostraram arrependidos pela resistência.
"Quase tudo o que temos vem da floresta", diz um dos manifestantes, um grande e forte professor do ensino fundamental da tribo Awajun chamado Gabriel Apikai. "As folhas, a madeira e as vinhas com as quais construímos nossas casas, a águas de nossos riachos, os animais que comemos. É por isso que estamos tão preocupados".
Mais ao sul, ao longo da maior cadeira de montanhas do mundo, a polícia chilena está protegendo 34 fazendas e áreas de corte de madeira que os índios Mapuches tomaram como alvos para ocupações e sabotagens.
Os Mapuches, que dominaram o Chile antes da conquista espanhola, contam agora com menos de 10% de seu povo e detêm 5% de suas terras – dentre as menos férteis.
Os ativistas Mapuches, que se mobilizam por mais terras e maior acesso à educação e ao tratamento de saúde, intensificaram a desobediência civil neste ano. Em agosto, a polícia, fazendo uma desapropriação, matou um mapuche, e oito ficaram feridos.
"Se o governo e a classe política não ouvirem as nossas demandas, a situação irá ficar muito mais difícil", disse o líder mapuche José Santos Millao, em Santiago. Ele rejeita a criação de um Ministério de Assuntos Indígenas pela presidenta Michelle Bachelet, considerando-a uma "cortina de fumaça".
Em nenhum lugar o poder indígena é mais evidente do que na Bolívia, que elegeu o seu primeiro presidente indígena, Evo Morales, em dezembro de 2005. Morales dissolveu o Ministério de Assuntos Indígenas e Povos Originários, chamando-o de racista, em um país onde mais de três em cada cinco habitantes são aborígenes.
Em fevereiro, os eleitores aprovaram uma constituição que cria um Estado "plurinacional" e concede status soberanos aos nativos da Bolívia. Antigos modelos de governo aborígene, justiça comunitária e mesmo cura tradicional estão agora legalmente em equilíbrio com a lei e a ciência modernas.
Na capital, La Paz, as "cholitas" – índias com chapéus tradicionais e mantos bordados – agora apresentam regularmente telejornais. Concursos de beleza como o "Miss Cholita" estão em voga, e as estrelas nativas do hip-hop exibem-se nas danceterias.
No palácio presidencial, Morales – um ex-fazendeiro de coca aymara que conheceu a fome quando criança – almoça periodicamente com os guardas palacianos mais baixos na hierarquia. Morales está assegurando que os lucros da extração de gás natural e de minérios sejam distribuídas igualmente e que a água – cuja privatização na cidade de Cochabamba causou uma revolta no ano 2000 – nunca mais seja privatizada. Ele também está pressionando para tornar os serviços de energia públicos.
Morales fundou três universidades indígenas, formalizou cotas para índios nas Forças Armadas e criou uma escola especial para aspirantes diplomatas que tenham histórico nativo. E está promovendo uma campanha para exigir que todos os servidores públicos tenham fluência em pelo menos uma língua nativa.
"Não há como voltar para o passado", diz Waskar Ari, um aymara que mudou seu nome para Juan na década de 70 para que pudesse ser aceito como professor do Ensino Médio em uma escola particular de La Paz. Agora, lecionando na Universidade do Nebraska, nos EUA, Ari compara o "renascimento" de seu país com o abandono do apartheid em outro continente, há duas décadas.
"Finalmente", diz ele orgulhoso, "a Bolívia não é mais a África do Sul da América Latina".
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O trabalho de base legal para a obtenção de poderes por parte dos índios latino-americanos foi coroado com uma Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU, em setembro de 2007. Mesmo que não obrigatória, ela aprova o direitos dos povos nativos a suas próprias instituições e territórios tradicionais. Ela foi quase universalmente abraçada pelos governos latino-americanos.
Também ajudou a que os índios obtivessem algumas grandes conquistas legais.
Em 2007, a Suprema Corte do Belize legislou em favor das comunidades mayas que desafiaram o direito do governo de arrendar suas terras aos interesses madeireiros.
Uma lei semelhante da Corte Interamericana de Direitos Humanos em defesa das moradias na floresta dos descendentes de escravos Saramaka, no Suriname, reforçou que os grupos indígenas devem consentir com grandes projetos de desenvolvimento.
Em dezembro passado, o governo da Nicarágua finalmente garantiu a propriedade de terras coletivas ao povo Mayagna, cumprindo a famosa lei de 2001 da Corte Interamericana de Direitos Humanos que afirmava que o governo não tinha nenhum direito de vender concessões de propriedade sobre as terras indígenas.
No mês seguinte, a Corte Constitucional da Colômbia estimou que mais de um milhão de povos indígenas estão "em perigo de extermínio cultural e físico" e pediu que os governos os protejam.
E em maio, a Suprema Corte do Brasil ordenou que os produtores de arroz deixassem a tão disputada reserva Raposa Serra do Sol – 1,7 milhão de hectares habitados por 18 mil índios na região mais ao norte da Amazônia.
Apesar das disposições legais, os índios continuam sendo cidadãos de segunda classe.
Apenas um representante indígena foi eleito até hoje ao congresso nacional do Brasil, de acordo com o escritório do governo que supervisiona questões relacionadas aos índios, que ocupam vastas áreas da Amazônia, mesmo que eles respondam por menos de 5% da população.
Na Guatemala, onde cerca da metade da população é descendente dos Mayas, nenhum índio até hoje chegou ao governo nacional.
As desvantagens educacionais perpetuam a iniquidade.
Na Guatemala, três em cada quatro índios são analfabetos, afirma a ONU. No México, onde 6% da população é analfabeta, o número chega a 22% entre os índios adultos. Até na Bolívia, apenas 55% das crianças indígenas terminam o Ensino Fundamental, comparados aos 81% das outras crianças.
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Os esforços para "descolonizar" continuam frágeis.
No leste da Bolívia – onde as Nações Unidas afirmam que muitos milhares de índios Guaranis, incluindo crianças, trabalham praticamente como escravos em grandes Estados –, Morales prometeu autonomia. Mas a elite da região, os oponentes mais ferozes de Morales, não irão deixar que isso ocorra sem uma disputa.
Obter autonomia seria menos contencioso para os índios nas altas cidades do oeste, como Jesus de Machaca, em parte porque a terra em questão produz muito pouco.
Jesus de Machaca é um vilarejo agrícola de terras poucos produtivas próximo do Lago Titicaca, que possui mais de 96% de índios Aymaras. Ele está entre as 12 cidades bolivianas, em grande parte Aymaras e Quechuas, cujos habitantes irão votar, no dia 06 de dezembro, para se tornar autônomos. Sob autorregulação, eles irão legalizar suas práticas de governo que precedem o império Inca.
Os líderes locais, chamados mallkus, são democraticamente eleitos por suas comunidades em eleições públicas, que então escolhem os principais oficiais do vilarejo. Os cargos são restritos a um ano. O sistema é mais parecido ao socialismo do que ao capitalismo.
O vice-prefeito Braulio Cusi afirma que a autonomia irá beneficiar muito a comunidade, onde quase todos os 13.700 habitantes vivem em casas de tijolos de barro e usam esterco de vaca como combustível para cozinhar, onde grande parte das casas não possui água corrente, e os bebês nascem em casa, porque não há hospital ou postos de saúde.
"Cooperativas de leite, de processamento de queijo... haverá trabalho", diz Cusi, trajando um chicote de couro branco sobre o seu poncho como sinal de autoridade. Ele prevê a construção de um abatedouro e espera atrair um veterinário.
Os mais de 900 quilômetros quadrados da cidade estão dedicados em grande parte à criação de gado, lhamas e ovelhas, de tomates e quinoa [grão típico da Colômbia]. Adquirido nos séculos XVI e XVII por nativos que se recusaram a se tornar arrendatários, o território é de propriedade comum, mas dividido entre os moradores. Vender para pessoas de fora é proibido.
Jesus de Machaca deu o seu primeiro passo rumo à autonomia quando se tornou uma municipalidade independente em 2002. Depois, elegeu o seu primeiro prefeito, também um mallku.
O governo nacional mais do que dobrou o orçamento da cidade. Mais de 70% das casas têm agora eletricidade – uma em cada dez em 2001 –, e recém terminou a construção de um prédio municipal de três andares, com pisos de parquê e portas de carvalho.
A cidade está até construindo um estádio de futebol – com grama sintética, indica um vereador orgulhoso.
"Antes, éramos esquecidos", afirma Cusi depois de assistir a bandeira Wiphala dos povos indígenas dos Andes ser hasteada na sombra de uma imponente Igreja colonial espanhola.
"Agora, nós iremos definir, do nosso jeito, como vivemos – de acordo com nossos próprios costumes e práticas".