Conhecimentos indígenas sem proteção
Os povos originários correm o risco de perder o controle de seus conhecimentos tradicionais se a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) insistir em rígidas normas de patentes para administrar o acesso a essa informação
As patentes e outras formas de restringir o acesso ao conhecimento são muito preocupantes nestes tempos de mudança climática, segundo informe do Instituto Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED), com sede em Londres.
A reportagem é de Stephen Leahy, correspondente da IPS, e produzido para Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde, 06-07-2009.
O estudo foi apresentado nas reuniões da Ompi – vinculada à Organização das Nações Unidas – realizada de 29 de junho a 3 de julho, em Genebra. “As normas de propriedade intelectual restringem o uso dos recursos genéticos, quando precisamos de flexibilidade e adaptabilidade para enfrentar a mudança climática”, disse ao Terramérica Michel Pimbert, diretor do Programa de Agricultura Sustentável, Biodiversidade e Meios de Vida do IIED.
A Ompi pretende desenvolver normas que protejam o conhecimento tradicional indígena sobre, por exemplo, plantas medicinais, que as leis convencionais de propriedade intelectual não incluem. Porém, “o pedido da Ompi de consistência com os padrões de propriedade intelectual existentes é um enfoque errado, pois foram criados com base em pautas comerciais ocidentais para limitar o acesso a remédios desenvolvidos por empresas privadas”, disse Krystyna Swiderska, do IIED, que coordenou a pesquisa na África, Ásia e América Latina.
A propriedade intelectual tem a ver com acesso restrito, monopólios e eliminação da competição, e é impulsionada pelas multinacionais, tanto as farmacêuticas quanto as dedicadas ao desenvolvimento de sementes, disse Pimbert. As empresas de Biotecnologia lançam mão da mudança climática quando prometem desenvolver variedades de cultivos resistentes às secas e ao calor, mas apenas se conseguem uma forte proteção das patentes que desenvolvem, acrescentou. “As regras da propriedade intelectual estão em conflito com a flexibilidade e adaptabilidade” que o mundo precisa para enfrentar a mudança climática, disse Pimbert.
As comunidades tradicionais protegem o conhecimento de um modo completamente diferente. Para elas as ideias, as sementes e as formas de vida não podem ser privatizadas, o acesso não deve ser exclusivo e seus benefícios devem ser compartilhados, disse o coautor do informe, Alejandro Argumedo, cientista da peruana Associação Quéchua-Aymara para a Subsistência Sustentável. Os quéchuas do Departamento peruano de Cuzco (sul do país) empregam o direito consuetudinário para administrar mais de duas mil variedades de batata (Solanun tuberosum) na região onde provavelmente se originou este importante alimento, disse Argumedo ao Terramérica.
Na década de 70, amostras dessas variedades foram armazenadas no Centro Internacional da Batata (CIP), nos arredores de Lima. Enquanto isso, as políticas de modernização agrícola impunham o uso de pesticidas, fertilizantes e variedades melhoradas em grandes monoculturas, causando a perda de muitas variedades tradicionais, disse Argumedo. Para enfrentar esse efeito, seis comunidades formaram o Parque da Batata, de dez mil hectares, e “repatriaram” 400 de suas variedades armazenadas no CIP sob um acordo especial. Outras 300 serão plantadas em outubro, acrescentou.
“O CIP entende que a propriedade intelectual está na comunidade e que o direito consuetudinário é importante para manejar as diferentes sementes”, enfatizou Argumedo. As comunidades estabeleceram seu próprio acordo para compartilhar os benefícios com base em normas consuetudinárias. As batatas são mais do que alimento: são um símbolo cultural em todos os aspectos da vida dos quéchuas, afirmou. “Para obter batata é preciso terra, gente que trabalhe, a Mãe Terra e os deuses da montanha”, descreveu Argumedo.
Como muitos outros povos indígenas, os kunas do Panamá desenvolveram seu próprio protocolo de acesso ao conhecimento tradicional, com base em normas consuetudinárias. Uma proposta feita por um pesquisador alheio à comunidade, por exemplo, tem de ser apresentada no congresso geral kuna, discutida com as autoridades de 49 aldeias e aceita pelos que possuem o saber tradicional, diz o informe do IIED. A perda dessas tradições pode representar a perda de biodiversidade e de conhecimento tradicional, limitando a capacidade das comunidades pobres para se adaptar à mudança climática.
“Manter ecossistemas diversos e resilientes é a ferramenta mais forte para a adaptação”, disse Argumedo. A cosmovisão indígena não tem lugar na Ompi, por isso é improvável que esta proteja normas consuetudinárias, acrescentou. Embora a Ompi seja um fórum internacional para expor os pontos de vista dos aborígines, os países podem sabotar facilmente qualquer forma de proteção mediante acordos comerciais bilaterais. Em seu tratado de livre comércio com os Estados Unidos, o Peru passou por cima do acordo da Comunidade Andina de Nações sobre proteção do conhecimento tradicional, disse Argumedo.
Esse tratado abre a porta para a prospecção biológica de empresas norte-americanas e aos cultivos geneticamente modificados, que podem “destruir a riqueza de nossas paisagens”. Segundo Pimbert, mesmo que a Ompi estabelecesse algumas regras favoráveis ao conhecimento tradicional, Estados Unidos, Canadá e União Européia as ignorariam alegremente. As normas consuetudinárias e o conhecimento tradicional não estão congelados no tempo, são muito dinâmicos e incorporam novos aspectos, como os direitos humanos, acrescentou. Contudo, na Ompi há “um enorme choque de valores”, disse Pimbert.