Comida polêmica
Já imaginou se um fabricante de chocolate descobrisse algum aditivo especial para a cobertura de seus doces que mantivesse as pastilhas frescas por mais tempo e as impedisse de derreter?
Ou se cientistas de uma indústria de alimentos reduzissem as partículas de gordura (e, claro, as calorias) de seus sorvetes sem sacrificar o sabor e a consistência? Essas idéias ainda são sonhos de laboratório.
Mas o ponto em comum entre esses projetos e as pesquisas em desenvolvimento de novos produtos realizadas em muitas empresas de alimentos é a nanotecnologia — o nome dado a um crescente número de técnicas de manipulação da matéria em dimensões tão ínfimas quanto as de uma única molécula.
As empresas de alimento ainda são cautelosas com a tecnologia — que trabalha em escala de um bilionésimo de metro — sobretudo frente a consumidores cada vez mais preocupados com a segurança dos alimentos. Mas, ao mesmo tempo, vivem seduzidas com a capacidade da nanotecnologia de criar novas e valiosas formas para substâncias comuns, como determinados ingredientes e até embalagens de produtos, simplesmente ao reduzí-las a dimensões que há bem pouco tempo seriam inimagináveis.
Muitas das promessas da nanotecnologia estão em outras áreas, como eletrônica, geração de energia e medicina. Mas a primeira geração de produtos alimentícios feitos com base na tecnologia — que inclui corantes sintéticos para alimentos, preservativos para óleos de fritura, embalagens com agentes antimicrobianos — já entrou no mercado silenciosamente, segundo o jornal “The New York Times”.
O uso comercial da tecnologia soma US$ 410 milhões de um mercado global de alimentos estimado em US$ 3 trilhões, segundo a Científica, uma empresa britânica de pesquisa de mercado especializada na cobertura da nanotecnologia. A empresa prevê que a fatia de mercado referente à nanotecnologia vai aumentar para US$ 5,8 bilhões até 2012, na medida em que novos usos para a técnica forem sendo descobertos. Atentos à reação adversa de muitos consumidores diante da introdução de grãos geneticamente modificados no mercado, os reguladores da indústria de alimentos esperam ter em breve parâmetros bem definidos, capazes de evitar temores.
O debate já começou na Administração de Drogas e Alimentos dos EUA (FDA, na sigla em inglês), com boa parte das discussões focadas especificamente em alimentos e aditivos alimentares.
Mas nenhuma mudança de política é esperada para este ano.
— Para seu crédito, a FDA está tentando entender o que está acontecendo — disse ao “New York Times” Michael K. Hansen, cientista da União dos Consumidores, um dos trinta grupos que participaram do encontro.
Mas lidar com a nanotecnologia será um grande desafio para a agência, de acordo com um relatório divulgado na semana passada por um ex-funcionário da FDA. Michael R. Taylor aponta a falta de recursos e o fato de a agência ter que proteger os consumidores e, ao mesmo tempo, estimular a inovação Representantes de indústrias e analistas temem que a nanotecnologia enfrente o mesmo destino da engenharia genética, que foi rapidamente aceita como uma grande revolução pelos laboratórios farmacêuticos, mas sofreu uma oposição ferrenha, especialmente na Europa, quando foi usada em grãos, peixes e gado.
A nanociência é capaz de criar novas formas para substâncias comuns
Muitos dos grupos que combatem a engenharia genética na agricultura já estão pedindo aos reguladores para reduzir o uso da nanotecnologia em geral e, em particular, seu uso na indústria alimentícia e cosmética até que mais testes de segurança sejam realizados.
— Estou impressionado com o quão longe a nanotecnologia já foi — afirmou Ronnie Cummins, diretor do Grupo dos Consumidores Orgânicos.
— Comparada à nanotecnologia, a engenharia genética é inofensiva.
Até agora, não houve nenhum estudo que comprovasse problemas de saúde pública ou meio ambiente relacionados à nanotecnologia.
Mas perturbadores testes de laboratório já sugeriram que algumas partículas em escala nano podem representar novos riscos à saúde. Por exemplo, elas poderiam facilmente atravessar barreiras no cérebro que impedem a passagem de partículas maiores.
Mais importante, foram poucos, até agora, os estudos feitos sobre o comportamento dos novos materiais em escala nano nos seres humanos e no meio ambiente. As poucas pesquisas feitas não conseguiram reproduzir as diferentes condições que as nanopartículas encontrariam. E pouquíssimas pesquisas focaram no destino das partículas que são ingeridas, em vez de inaladas ou injetadas.
“A falta de indícios de danos não pode ser uma procuração para uma certeza razoável de segurança”, sustentou a União dos Consumidores em texto apresentado no encontro do FDA. As palavras foram cuidadosamente escolhidas.
“Certeza razoável de segurança”, na terminologia da FDA, é o que as indústrias de alimentos devem demonstrar à agência antes de introduzir no mercado qualquer novo aditivo alimentar.
A União dos Consumidores e outros grupos estão sugerindo que a agência automaticamente classifique todos os novos ingredientes alimentícios em escala nano — inclusive aqueles considerados hoje seguros em escala normal — como novos aditivos.
Eles querem também que os mesmos padrões sejam aplicados a fabricantes de suplementos alimentares já que alguns deles vêm comercializando tradicionais terapias com ervas e minerais com componentes em escala nano o que, segundo eles, aumentaria a eficácia dos produtos. Alguns pedem também a menção obrigatória, nos rótulos, da presença de qualquer ingrediente sintético em escala nano.
Revista O Globo, 22-10-06