Brasil: regras protegem a grande propriedade e retardam reforma agrária
Movimentos sociais reivindicam mudanças na Constituição na tentativa de acelerar a democratização do acesso à terra. Justiça também dificulta a execução da política de reforma agrária, que tem alterado pouco a estrutura fundiária do país
Em 2001, organizações da sociedade civil e movimentos sociais do campo articularam uma campanha em defesa de limites para o tamanho das propriedades rurais no Brasil. As fazendas que excedessem o tamanho previsto em lei seriam convertidas automaticamente em patrimônio público e poderiam ser destinadas às 4,5 milhões de famílias sem-terra. Era uma estratégia para tentar acelerar a democratização do acesso à terra, concentrada hoje em latifúndios que ocupam 56,7% das terras agriculturáveis e representam 3% das propriedades rurais, ou seja, extensas áreas administradas por poucos donos.
A campanha apoiava a votação de uma emenda ao artigo 186 da Constituição, que já determina quais são os requisitos para dizer se uma propriedade cumpre sua função social. Pela proposta, além do aproveitamento racional e do respeito às legislações trabalhista e ambiental, as propriedades rurais não poderiam ultrapassar o tamanho de 35 módulos fiscais - que são utilizados como referência pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e calculados para cada município, levando-se em conta a qualidade do solo, relevo, entre outros aspectos.
Segundo a proposta do Fórum Nacional pela Reforma Agrária, nos estados da região Sul um módulo fiscal tem cerca de 25 hectares e as propriedades rurais poderiam alcançar no máximo 875 hectares. Já nos estados do Norte, o tamanho do módulo é calculado em 100 hectares e a propriedade poderia chegar a 3500 hectares. Hoje, o Ministério do Desenvolvimento Agrário considera como grandes propriedades rurais as áreas que ocupam mais de mil hectares.
"A campanha tinha um duplo objetivo: sensibilizar a sociedade civil para um caminho de reforma agrária e sensibilizar os próprios parlamentares", conta Dom Tomás Balduíno, ex-presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Para as organizações sociais, a medida permitiria o uso imediato de terras para assentar famílias acampadas, sem utilizar recursos públicos no pagamento de indenização aos proprietários. Segundo Balduíno, a mobilização teve caráter bastante popular e incentivou a realização de debates e abaixo-assinados por todo o país.
No ano seguinte, porém, a campanha não encontrou espaço na pauta das eleições presidenciais e perdeu força.
Apesar disso, o debate sobre a necessidade de alterar a legislação brasileira em favor da política de reforma agrária permanece e é ponto de acordo entre governo federal e movimentos sociais. O ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, chegou a afirmar, no final do ano passado, que as ações do Poder Judiciário favoráveis aos grandes proprietários eram um dos principais entraves à questão agrária. "Está mais difícil desapropriar terras no país. O atual marco legal não favorece a reforma agrária, seja por causa das indenizações, seja pelo princípio da produtividade", reconhece Caio França, secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
A lei exige o pagamento de uma "justa e prévia" indenização ao titular de qualquer área desapropriada, mesmo que improdutiva. De acordo com França, a compra de terras privadas para criar assentamentos rurais está prevista no plano de reforma agrária e tem verba garantida no orçamento. O problema, segundo ele, são os recursos que tramitam lentamente na Justiça, elevando o valor da indenização a ser paga. "O que torna essa compra mais onerosa ao Estado são as revisões da Justiça que elevam o preço da indenização. A principal rubrica do orçamento do ministério é de R$ 1,7 bilhão para a obtenção de terras.
Além disso, as terras nos últimos anos - com o ‘boom' do agronegócio - têm se valorizado muito". As dificuldades impostas pela legislação são alguns dos aspectos que ajudam a compreender o ritmo lento com que se oferecem assentamentos rurais e, principalmente, novas perspectivas aos milhões de trabalhadores sem-terra.
Proteção social
O meio agrário brasileiro foi sempre dominado pelas grandes propriedades rurais, devidamente beneficiadas por leis e recursos do Estado (ver Concentração de terra na mão de poucos custa caro ao Brasil). Após o golpe militar, em 1964, foi aprovada uma nova legislação sobre a questão agrária. O Estatuto determinava que toda propriedade rural deveria ser um bem produtivo, e não uma mercadoria à espera da especulação imobiliária para ser valorizada. Além disso, estabelecia o pagamento das indenizações das terras desapropriadas para fins de reforma agrária em títulos da dívida agrária. Apesar de sinalizar avanços na questão fundiária na teoria, a política do regime militar, como sabemos, tomou outros rumos com a concessão de créditos aos grandes proprietários e os incentivos para que expandissem seus domínios para as regiões Norte e Centro-Oeste. A bondade estatal foi a principal responsável pelo crescimento do agronegócio baseado na grande propriedade e no cultivo de produtos para exportação.
Os debates sobre a reforma agrária esquentaram mais uma vez durante a Constituinte, em 1988. A pressão popular garantiu a inclusão do artigo na lei que define a função social da propriedade rural. Na mesma lei, entretanto, preservou-se o artigo 185 e a determinação de que as terras produtivas não podem ser desapropriadas, apesar do aspecto econômico estar embutido na função social da terra.
Embora esteja garantido na lei, os movimentos do campo batalham até hoje para que o princípio da função social da propriedade oriente todas as decisões judiciais em casos de desapropriação de terras para fins de reforma agrária.
"Se o governo quer fazer uma obra pública ou uma rodovia, pode desapropriar aquela área mediante uma indenização. Para fazer a reforma agrária já não pode, nem pagando. Isso joga para o Judiciário o papel de julgar o que é produtivo ou não e inviabiliza a reforma agrária", complementa Dom Tomás Balduíno. Quer dizer, mesmo que cometa algum crime ambiental ou trabalhista, o proprietário que argumentar que sua terra é produtiva para evitar a desapropriação poderá ser atendido pela Justiça.
O governo federal, em uma decisão inédita e pioneira, decretou em 2004 a desapropriação da fazenda Cabaceiras, localizada em Marabá (PA). O consultor jurídico do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Carlos Henrique Kaipper, afirma que o caso é emblemático porque, pela primeira vez na história, o desrespeito à legislação trabalhista é o principal argumento para justificar uma desapropriação. A fazenda da empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda é reincidente em autuações por trabalho escravo. A empresa, porém, contestou o decreto e o governo ainda aguarda a decisão do Supremo Tribunal Federal.
"É evidente que a atualização da Constituição, explicitando essas questões trabalhista e ambiental, poderia contribuir para exigir o cumprimento integral da função social da terra. No caso da Cabaceiras, exploramos ao limite esse princípio. Mas ainda não há decisão de mérito e estamos brigando para que a Justiça tenha uma posição definitiva e abra precedentes para outros casos", defende Caio França.
Este mês, por exemplo, a Justiça Federal no Tocantins também decidiu que a Fazenda Bacaba, no município Miranorte, mesmo sendo produtiva, poderá ser desapropriada e utilizada para a reforma agrária porque desrespeitou a legislação ambiental. Segundo a sentença judicial, a fazenda transformou em pastagem os 30% da propriedade - de mais de 2,7 mil hectares - que deveriam ter sido preservados.
Números antigos
Os grandes proprietários rurais que utilizam o argumento econômico para defender suas fazendas contam também com outro aliado: índices de produtividade desatualizados.
São esses os números que determinam se uma propriedade rural alcança ou não o mínimo de sua capacidade produtiva. Os índices, porém, foram calculados em 1980 e não refletem o expressivo aumento da capacidade de produção agropecuária conquistado pelos avanços tecnológicos nas últimas décadas. A revisão desses valores tende a ampliar os números de propriedades rurais que poderão ser reivindicadas para reforma agrária, levando-se em conta apenas a questão econômica.
Os novos cálculos feitos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário foram negociados com o Ministério da Agricultura, mas esperam desde abril de 2005 pela assinatura do Presidente da República. A proposta dos índices das lavouras considerou os dados médios da Pesquisa Produção Agrícola Municipal (PAM), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do período de 1999 a 2003. No caso dos índices de produção pecuária, o ajuste foi feito a partir dos dados do Censo Agropecuário de 1995/1996. Para considerar a diversificação da produção brasileira, o ministério também propõe a inclusão de 37 novos itens na tabela de índices de rendimento de produtos agrícolas. Atualmente, a lista tem 38 produtos vegetais e sete extrativos, vegetais e florestais.
Segundo o ministério, o índice atual de produtividade para lavouras de soja nos estados do Paraná e São Paulo é de 1,90 tonelada por hectare. Com a nova proposta, o índice subiria para 2,9 toneladas por hectare, o equivalente a 48,34 sacas por hectare.
A decisão do governo em não apressar a atualização desses índices é um dos pontos críticos da atual política de reforma agrária, avalia a organização não-governamental Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc). "Além de impedir a desapropriação em áreas estratégicas para a construção de um modelo de um desenvolvimento agrícola alternativo, assentado no desenvolvimento e o fortalecimento da agricultura familiar, essa não atualização também promove a concentração de assentamentos de reforma agrária na região da Amazônia Legal, representando um grande risco à sustentabilidade ambiental", afirmou o instituto em um estudo que analisou a reforma agrária no governo Lula. A organização estima que aproximadamente 66% dos assentamentos estão concentrados nesta região.
O secretário-executivo do MDA reconhece que a dificuldade em desapropriar terras em outras regiões do país tem elevado o número de assentamentos rurais no Norte. Segundo ele, porém, o cenário de intensos conflitos pela disputa de terra também motivou essa política. "Não é verdade que o governo Lula não enfrentou o latifúndio. A compra de terras privadas e a ocupação de terras públicas também são políticas de reforma agrária. É errada a afirmação de que só se desconcentra a terra se há desapropriação", argumenta.
Contudo, as leis e as interpretações judiciais favoráveis aos interesses dos grandes proprietários rurais, além das decisões políticas tomadas ao sabor de alianças e do termômetro eleitoral, explicam a marcha lenta da reforma agrária que pouco altera a estrutura fundiária do país.
Enquanto a política econômica do governo federal for dependente dos superávits comerciais gerados pela agricultura monocultora e exportadora, esse modelo de propriedade vai continuar como hegemônico.